Paulo Barbosa
Estará
a poesia de Macau à altura da sua história e de nomes como Pessanha ou Camões?
Os tempos são outros, mas o certo é que há um novo impulso na poesia escrita em
Macau. Jovens, muitos deles agregados pela ASM, estão a criar versos com alguns
pontos comuns. Inglês e chinês são as línguas de expressão dominantes.
São
bilingues, escrevem cruzando línguas e culturas e imprimem nos seus textos as
especificidades do território. O aparecimento de uma nova geração de poetas em
Macau ficou patente na semana passada, quando foi lançada “Just a coin’s worth
of blue”, uma antologia poética publicada pela Associação de Estórias de Macau
(ASM, na sigla inglesa). A obra apresenta quinze “novas vozes” – apenas uma
delas expressa em português – e é representativa de um novo fôlego na poesia
local, segundo Christopher (Kit) Kelen.
O
principal traço que une estes novos poetas passará pelo facto de “escreverem
maioritariamente em chinês e em inglês”, reconhece o mentor da ASM, que é
também professor da disciplina da escrita criativa do mestrado em língua
inglesa da Universidade de Macau (UMAC). Desde que foi criada, em 2005, a
associação já publicou 37 obras, numa demonstração de que há muitas pessoas a
escrever poesia em Macau, “a maioria das quais nunca foram publicadas, por isso
as apelidamos de novas vozes”, comenta Kelen, também ele poeta publicado, autor
do recente “To The Single Man’s Hut”
(“Para a Cabana do Homem Solteiro”, na versão portuguesa).
Para
além do bilinguismo, um traço comum estas “novas vozes” da poesia local passa
pelo facto de muitas delas estarem associadas ao mestrado em língua inglesa da
UMAC. Alguns já estudam e escrevem poesia há anos, outros interessaram-se
verdadeiramente pelo tema graças ao estímulo do professor australiano. A viver
em Macau há pouco mais do que dois anos, Chris Song Zijiang é o melhor exemplo
do primeiro caso. Licenciado em literatura inglesa na Universidade de Shenzhen
e detentor de um bacharelato em filosofia, Chris foi um dos poetas publicados
em “Just a coin’s worth of blue”, para além de ser tradutor de poetas chineses
para inglês e de ingleses para chinês. Na UMAC, onde já é professor assistente,
está a terminar a uma tese de mestrado, que consiste num estudo comparativo da
eco-poesia no trabalho do americano Gary Snyder e do australiano Robert Gray.
Parece
uma hipótese remota ver um chinês de Shenzhen a interessar-se especialmente por
Gary Snyder, um poeta que inspirou Jack Kerouac a escrever “Os Vagabundos do
Dharma”. Elemento da famosa “geração beat”, que revolucionou o panorama
literário americano em meados do século XX, Snyder está ligado à filosofia
budista. Na década de 1970, permaneceu vários anos no Japão, antes de regressar
aos EUA para viver nas montanhas, em retiros interrompidos para participação em
leituras públicas, como fez no ano passado, quando esteve num festival de poesia
em Hong Kong. Ao escolher tão distante objecto de estudo, Chris quis aproximar
poesia e a filosofia, duas das suas predilecções.
“Snyder
interessou-se pelo budismo através dos seus amigos da geração beat, tais como
Alan Watts, Jack Kerouac, Ginsberg ou Corso. Robert Gray interessou-se pelo
budismo também por causa de Alan Watts. Ambos têm muitos interesses comuns e eu
quis muito fazer este estudo comparativo”, conta. O factor descoberta também
pesou: “Snyder continua vivo, por isso penso que escrever sobre ele é mais
interessante e vale mais a pena do que escrever sobre, por exemplo, Wordsworth,
ou Robert Frost, sobre os quais já há muitas teses. Quanto a Snyder, ainda é
possível escrever coisas novas e interessantes.”
Tradutor
de poetas chineses clássicos, o poeta vê diferenças e similitudes nas maneiras
de escrever oriental e ocidental, que se interligam em sítios como Macau.
Segundo analisa, “na poesia clássica britânica, como nos casos de Shakespeare,
ou de Wordsworth, prevalecia uma forma muito estrita de escrever poesia,
através de um formato”. Quase o mesmo se passava na poesia chinesa clássica,
onde os poetas tinham de escrever com uma forma subjacente: “O poema tinha que
ter, por exemplo, 25 caracteres e cinco caracteres em cada verso. Na dinastia Song,
a poesia é feita para ser cantada, com música em fundo. Há muitos estilos de
poesia cantada”, descreve Chris.
Defendendo
que “o formato rígido é semelhante entre as poesias clássicas oriental e
ocidental”, o poeta universitário diz que os movimentos modernistas destruíram
essa formatação. A ocidente, depois da I Guerra Mundial, começou a ser escrita
poesia em estilo livre, abandonando os formatos tradicionais. A poesia chinesa
passou então a ser mais influenciada pelo Ocidente e, após a Revolução Cultural,
“também os chineses começaram a escrever em estilo moderno, através do acesso
que tiveram à poesia ocidental”, argumenta Chris. Actualmente, “as poesias
chinesa e ocidental são muito similares em termos de estilo”, mas persistem
diferenças no conteúdo: “Os chineses nunca se tornam tão radicais. [risos].
Pura e simplesmente, não fazem isso.”
Quando
instado a ensaiar alguns traços comuns para a poesia feita em Macau, Chris Song
hesita antes de tentar uma definição: “Em Macau há a poesia portuguesa, que é
uma parte importante da história do território. Há também a poesia chinesa,
escrita por pessoas naturais de Macau. Há também alguma poesia escrita por
pessoas que passaram por Macau. Isso engloba pessoas que escrevem em chinês e
pessoas que escrevem em inglês.”
Poetas bilingues
Talvez
se tenha que analisar o método de escrita para encontrar um ponto forte que
seja comum a muitos dos poetas de Macau. Chris Song avalia-se como um poeta
bilingue, embora esteja mais próximo do chinês, a sua língua-mãe. Escreve
indiscriminadamente em ambos idiomas, sendo-lhe difícil definir qual vem
primeiro. “Por vezes, começo a escrever um poema e sinto que não estou a chegar
a lado nenhum, ponho-o de lado. Uns tempos depois volto a pegar nele e penso
que talvez pudesse continuá-lo em inglês. Quando acabo de trabalhar a estrutura
e o conteúdo do poema, faço duas versões, a chinesa e a inglesa”, conta.
Trata-se
de uma nova forma de escrever, “que beneficia muito o poeta bilingue, porque se
pode criar algo de novo numa linguagem quando se está a pedir algo de
emprestado a outra”, continua Chris Song. “A poesia é uma luta contra o cliché,
por isso leva a linguagem até aos extremos, explora uma forma extrema. Às
vezes, colocando duas línguas numa forma extrema, pode haver um ponto de
contacto entre elas. Um cliché em inglês pode ser algo de muito novo em chinês,
ou vice-versa.”
É
esta originalidade, provocada pelo cruzamento entre duas línguas e pelo método
de tradução directa dos caracteres chineses para o inglês, que faz com que este
poeta vá ser publicado numa revista de poesia americana, a “Amistad”: “Eles
aceitaram, acharam que era algo de novo e que nunca tinham visto algo assim. É
claro que o Robert Frost tem razão quando diz que ‘a poesia é aquilo que se
perde na tradução’, mas ele não se está a referir apenas à mera tradução de uma
língua para outra, tem a ver também com o processo de simbolização daquilo que
o poeta quer dizer para a sua língua, algo se perde nesse projecto. Também os
leitores podem ter uma interpretação muito diferente da do escritor e este pode
ficar com a impressão de que o leitor não captou a sua intenção.”
Menn
Chow, outro dos poetas que faz a sua estreia na antologia da ASM, destaca
também a característica multilinguística dos novos poetas de Macau. “A maioria
de nós sabe, pelo menos, duas línguas. Macau é um local complexo, por exemplo
eu e você estamos a falar em inglês e não em chinês ou português, que são as
duas línguas oficiais. O inglês tornou-se mais popular do que o português por
motivos comerciais e também dada a influência de Hong Kong. Aqui parece que o
mandarim e o português são estranhos às pessoas locais. Há as línguas oficiais,
mas as pessoas usam outras para comunicar. No estilo de escrita chinês, o
cantonês e o mandarim são escritos da mesma maneira, mas eu prefiro escrever
num estilo mais próximo do cantonês e não no chinês correcto. Assim sou mais
expressivo, posso jogar mais com as imagens poéticas”, explica, admitindo que
usa a mesma informalidade com o inglês.
Ligado
ao design, às instalações artísticas e à fotografia, Chow escolheu agora
“explorar o ultra-fantástico mundo da literatura inglesa” e está a ultimar o
seu primeiro livro de poemas, que terá como título “poems from love, death and
you”. O jovem, que trabalha no Creative Macau, interessou-se pela composição de
poemas, com os quais tenta “explorar os formatos, porque diferentes meios podem
ajudar a expressar as ideias”. Chow escreve num estilo pessoal e diz mesmo que
a sua poesia é a sua biografia. Tal como Chris Song, também este poeta tem um
método bilingue, começando poemas num idioma e “mudando-os” para outro. Ou
misturando ambas as línguas, como num dos poemas publicados na antologia, onde
joga como facto de no chinês tradicional o caracter que representa a ideia de
amor ter um coração no meio, o que não acontece no simplificado.
Nascido
em Macau, Chow conhece bem a cidade e atribui à impermanência o facto de muitos
poetas, chineses e portugueses, não se tornarem conhecidos. Por isso, faz um
apelo a uma maior fixação. “Apenas passam algumas temporadas aqui. Precisamos
de muitas pessoas jovens que fiquem em Macau e que falem sobre o que é
território”. Chow louva o trabalho da ASM enquanto associação pioneira para a
promoção de contos e poesia, que “está a recrutar muito ‘sangue novo’”.
Tradutora
e poeta, Iris Fan inclui-se nesse novo conjunto de valores “recrutados” pela
ASM. Na sua opinião, a poesia feita em Macau tem características diferentes,
que a fazem diferente daquela que é feita na China interior. O que terá a ver
com o facto de Macau “ser uma cidade que é diferente das cidades do interior
historicamente e que está a passar por mudanças e tem também a ver com os
poetas que escrevem sobre ou em Macau, e que têm várias origens culturais”.
Subjacente a todo esse trabalho poético está “a identidade de Macau, que
necessita de ser mais analisada, não só na poesia, mas também em outras formas
literárias”, opina Iris Fan.
Outra
“nova voz” lançada pela ASM, Dodo Gao, começou a escrever poemas devido à frequência
das aulas de escrita criativa de Kit Kelen. E “viciou-se”, por assim dizer:
“Nestes meses, sinto que foi criado um hábito e agora dou por mim a apontar as
ideias que me impressionam na minha vida diária. Desde que comecei a escrever,
tenho estado mais alerta para observar e sentir o que se passa à minha volta”.
Para esta autora, é importante escrever poemas porque a “escrita é uma
evidência do crescimento pessoal e testemunho das mudanças por que passa a
vida”. Debby Sou, escritora e pintora de Macau que, no início da década de
1990, estudou língua portuguesa durante dois anos em Coimbra, é mais
enigmática: “Não sei porque escrevo, talvez tenha a ver com o facto de ter
nascido para isso e a poesia é uma das formas que uso”, conta outra das autoras
de “Just a coin’s worth of blue”.
Poetas portugueses
procuram-se
Kit
Kelen bem tenta encorajar mais pessoas a escrever também em português, mas
Leonor Macedo é a única poeta da antologia que se expressa no idioma luso. A
autora contribui com três poemas, cuja versão original é em inglês, mas que
estão também “elaborados em português”. A participação no livro ocorreu em
consequência da assistência às aulas de poesia e tradução Kelen. “Participei
nas tarefas da aula, incluindo a criação e tradução de poemas. Devido a esta
participação, o professor convidou-me a ter parte no livro de poemas que estava
a construir com alguns alunos e outro poetas de Macau já editados”, recorda.
Frisando
que as temáticas são diversas e variam de autor para autor, Leonor Macedo encontra
algumas especificidades na poesia escrita em Macau. “Existe, de facto, uma
poesia que pode ser chamada de ‘poesia de Macau’, poesia ligada ao lugar, que
tem principalmente a ver com o modo como a pessoa sente ou vê Macau, e explora
a sua relação com o sítio. São, muitas vezes, poemas que falam do ‘antes’ e do
‘agora’ e exploram os temas da memória e da mudança e que, muitas vezes, se
fixam em sítios específicos e característicos da cidade”, descreve. Uma
temática expectável tendo em conta o contexto histórico e social de Macau, na
opinião da autora. “Mas os ‘jovens poetas macaenses’ que tive oportunidade de
ler não escrevem só sobre Macau, e acho que isso também é importante.”
Quanto
ao nível qualitativo da poesia escrita em Macau pela nova geração, Leonor
confessa não ter um conhecimento extenso do assunto. “Mas do que conheço e do
que estudei quando estive em Macau [a poeta encontra-se em Portugal], fiquei
muito bem impressionada. Há uma grande quantidade de escritores de qualidade,
vários dos quais tive o prazer de conhecer durante este processo. Como leitora,
fiquei muito satisfeita com as coisas que li”, argumenta.
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*Artigo publicado no dia
10 de Junho de 2010 no blogue: http://pontofinalmacau.wordpress.com
com o título “Quem são os novos poetas de Macau”.
Link oficial do texto: http://pontofinalmacau.wordpress.com/2010/06/10/quem-sao-os-novos-poetas-de-macau/
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