A crítica
literária africana pode ser entendida como um sub-sistema dentro dos sistemas
literários nacionais. O seu campo apresenta uma estrutura em que avultam
problemáticas de natureza epistemológica. Abordar a crítica das literaturas
africanas é levantar questões acerca do sujeito e do objecto do discurso, dos
métodos, princípios operatórios e das condições da sua eficácia. Não pretendo
introduzir a ideia de crítica a partir do nada. Pelo contrário, parto do
pressuposto da precedência dos fundamentos da crítica relativamente ao
surgimento das literaturas escritas. Segundo Locha Mateso, "a crítica
literária na África tradicional é uma actividade de multiplas facetas(...)
concentra os critérios de apreciação que correspondem à finalidade conferida
à obra por um determinado grupo social" .
Pius Ngandu
Nkashama, Ecritures et Discours Littéraires,Paris, L'Harmattan, 1989, p.241.
O seu objecto
é constituído por um conjunto de textos resultantes de dois sistemas de
comunicação: a comunicação oral e a comunicação escrita. Do primeiro temos a
literatura oral e do segundo temos a literatura escrita. Alguns autores põem
em causa os canones da literatura escrita, tal como têm sido apresentados. É
o caso do professor nigeriano Emmanuel Obiechina que, no estudo dedicado à
literatura panfletária de Onistsha, leva a concluir que essa categoria de
textos não pode ser negligenciada, apesar de os seus destinatários serem
aqueles segmentos sociais com baixo rendimento e gostos diferentes dos da
classe média.
Perante este
quadro heterogéneo de textos, a posição e a atitude dos sujeitos dos
discursos críticos têm-se revelado polémicas. É que o elenco de tais sujeitos
também não tem sido homogéneo. Não são apenas africanos entre eles. Contam-se
também criticos não africanos. Contudo, a variedade de textos assim como os
problemas que se colocam na sua recepção têm suscitado suspeitas quanto a
relativa ineficácia da utensilagem teórica e crítica ocidental. Donde se
compreendem as posições de certos críticos africanos a este propósito.
Eldred Jones
observa que "as literaturas africanas apresentam uma importância capital
para os africanos e deve-se, naturalmente sobre esta matéria esperar dos
críticos africanos opiniões substanciais" . Estas considerações
impõem-se com algum vigor ao serem transpostas para o plano institucional do
ensino. No dizer de P.Ngandu Nkashama" as literaturas africanas
transformaram-se em verdadeiras paradas económicas, dando direito a vantagens
e lucros em moeda sonante ". Aludindo o comportamento dos
"colegas" das universidades ocidentais, acrescenta:
"evidenciando sem escrupulos uma incompetência notória(...) os homólogos
africanos não são considerados senão nas relações de beligerância, enquanto
obstáculos a eliminar(...)com um pouco de condescendência eles reduzem-no ao
triste papel de mendigo, pedinchão de esmolas facilmente manipulável" .
Mais adiante
poder-se-à ver uma manifestação dos debates entre criticos africanos e não-
africanos e as modalidades dessa conflitualidade que não parece ser apenas
uma "deslocada hostilidade", como diz Solomon Ogbede Iyasere.
Locha Mateso,
La Littérature Africaine et sa Critique, Paris, ACCT/Karthala, 1986,p.55.
Eldred Jones, African Literature Today (Editorial), nº7,1982
Por outro lado,
os próprios críticos não-africanos revelam-se insatisfeitos com os
instrumentos que utilizam. Edgar Wright refere que o crítico ocidental que se
dedica ao estudo das modernas literaturas africanas enfrenta duas grandes
obstruções:"a primeira reside em saber se qualquer teoria geral pode
funcionar, quando aplicada a uma cultura que é completamente diferente nas
suas origens daquela que constitui o suporte material da teoria(...); a
segunda relaciona-se com o público leitor e a intencionalidade do autor"
.
Em 1973, a
Sociedade Africana de Cultura promoveu a realização do colóquio de Yaoundé
sob o tema: O crítico africano e o seu povo como produtor de civilização. A
presidir a sua realização estava o seguinte argumento:
"Cada
sociedade tem as suas normas de apreciação. Estas são parte integrante da sua
ética da vida.
As correntes
externas, por mais generosas que sejam, não saberia substituir o esforço
pessoal de pesquisa e de confrontação que apenas permite esclarecer os juízos
através do contexto especifico de uma civilização"(...)
"Quem
poderá melhor que os criadores africanos apreciar a necessidade de sentir a
condição do seu povo, ou indicar aos escritores a via a seguir, os obstáculos
a evitar? Trata-se de integrar o criador africano na vida da sua civilização
e de libertá-lo da dominação excessiva do Ocidente".
Estes são os
postulados básicos do colóquio que durante quatro dias reuniu cerca de 50
especialistas das literaturas africanas, entre os quais alguns europeus e
americanos. Os debates subdividiam-se em três eixos, nomeadamente: Teoria - o
povo e a actividade crítica; Doutrina a crítica em África; Pedagogia- Crítica
e comunicação.
Pius Ngandu Nkashama, Ob.Cit.
Edgar Wright, "Critical Procedures and the Evaluation of African
Literature", in The Critical Evaluation of African Literature, ed. Edgar Wright (London,
Heinemann,1978)p.8
Apesar da
leitura das comunicações que, reputei de importância imediata cujos
resultados merecerão desenvolvimentos ulteriores, limito-me, em primeiro
lugar, a fornecer referências das conclusões a que chegaram os participantes.
No primeiro
atelier destacam-se as definições de crítica e povo. A crítica é entendida
como "uma actividade de reflexão cujo objecto é a criação artistica; uma
ciência cujo objecto é explicar o produto cultural criado e sua
difusão". Por povo entende-se "o conjunto de uma comunidade
partilhando uma mesma cultura e tendo línguas comuns que realizam as funções
de referências".
Lançou-se
alguma precisão sobre o conceito de crítica africana sendo entendida como o
reflexo da visão do mundo própria do povo e em particular da sua estética.
Relativamente às condições necessárias para a emergência e difusão da
actividade crítica são indicadas duas que subentendem a necessidade de
políticas culturais nacionais: condições políticas, no âmbito das quais se
considera a liberdade de expressão e a democratização da informação;
condições técnicas do discurso em que destacam os níveis da crítica, as
modalidades e técnicas de crítica, as tendências da crítica tradicional e
actual; e o aspecto ideológico de toda a crítica.
Estas
condições convalidam a necessidade de autonomização efectiva da crítica e a
constituição do seu objecto. De resto, o exercício do discurso integra
igualmente esse objecto.
No segundo
atelier debatia-se a indissociabilidade da crítica de outros domínios como a
educação e a comunicação, havendo entre eles uma apertada conexão com a
problemática linguística. Ficou consagrada uma recomendação às altas
instâncias dos Estados Africanos, dentre elas a OUA.
Recomendava-se
a adopção de "uma política sistemática de formação de linguistas
africanos(...)" bem como "a multiplicação e desenvolvimento de
editoras africanas que se encarreguem de publicar obras inter-universitárias
por serem indispensaveis para o renascimento cultural do continente.
No terceiro
atelier, as conclusões visavam completar algumas definições fornecidas no
primeiro. A obra literária - no contexto das literaturas africanas - foi
definida como "um discurso oral ou escrito organizado exprimindo uma
visão do mundo numa perspectiva estética". Em sentido amplo, a crítica é
analisada enquanto "reacção de um individuo ou de um público manifestada
diante de uma obra literária, sendo por isso compatível com a ideia de um
certo pluralismo. Atribuem-se determinadas funções ao crítico africano. A
tarefa que lhe é conferida como primordial reside na formação de formadores
nos vários níveis de ensino e no quadro de programas de animação cultural. E
na qualidade de criador, considera-se que o crítico" deve contribuir, de
modo permanente, para a promoção do espírito criador, entendendo-se que
qualquer acto de promover a leitura visa uma multiplicação das actividades
criadoras.
Foi ainda
proposta a criação de uma Associação de Críticos Africanos.
O colóquio de
Yaoundé constitui um dos importantes pontos de referência, na história das
reflexões africanas.
Do conjunto
das comunicações apresentadas, prenderam a minha atenção, pela lucidez e
vertente de focagem, nomeadamente os textos de M.aM.Ngal:"O artísta
africano: tradição, crítica e liberdade criadora; de Pierre Ngijol "A
crítica literária africana na literatura tradicional oral"; de Nguessan
Kotchy e H.Memel-Foté": A crítica na África tradicional"; de
Noureini Tidjani - Serpos "A crítica africana: os critérios de
recepção"; e de Mohamadou Kane "Sobre a crítica da literatura
africana moderna ". Retomarei a leitura de alguns destes textos
posteriormente.
Haverá alguma
razão para sustentar que a diferença entre a crítica dos africanos e a
crítica dos não africanos representa uma polarização irremediável?
Num artigo
publicado em 1969, na revista Présence Africaine, o nigeriano Joseph Okpaku
demarcava o alcance e os limites da intervenção das duas críticas. Observa
que "o primado da crítica das artes africanas deve ser conferido aos
africanos fazendo uso de padrões africanos". Por outro lado, "o
papel do critico ocidental é diferente",. "A única actividade
válida deste último consiste em interpretar as literaturas africanas e outras
artes para audiências ocidentais". Com efeito, as posições que fazem a
apologia dessa primazia são bem mais antigas. Remontam aos anos dos
congressos de escritores negros. Nessa época a investigadora belga Lylian
Kesteloot, escreveu:" Estou convencida de que só os críticos africanos
serão capazes de destilar toda a essência, sabor, significado e poesia, toda
a " suculência" dos frutos" de sua herança ancestral para
maior glória da literatura mundial".
O debate foi
tomando outras feições, tendo chegado a opor, mesmo entre críticos africanos,
negadores e defensores do monopólio do discurso crítico legítimo. Encontramos
algumas destas manifestações na revista African Literature Today,
especialmente no seu número dedicado à crítica (Focus on Criticism). No
editorial desse exemplar Eldred Jones, que é editor da revista, advoga já a
tese do primado da crítica endógena. No mesmo encalço alinha Thomas Melone,
quando em 1970, escrevia: "A situação hoje nos impõe uma revisão total
do processo. Trata-se de restituir ao povo o privilégio de que foi detentor
durante os tempos imemoriais(...) O problema essencial consiste em não perder
de vista o que na tradição constituia a base da crítica artistica e literária
tal como o povo a exercitava .
Joseph Okpaku, "Tradition,
Culture and Criticism", Présence Aricaine, 70, 2º trimestre,
1969,pp.137-146
Solomon
Ogbede Iyasere, no texto inserido na revista mencionada, sustenta que
"não é por sermos africanos que as nossas explicações serão melhores que
as do crítico não-africano". Ele reage ao requisitorio produzido por
Ernest Emenyonu contra o crítico americano Bernth Lindfors. Este ataque
suscitou outros comentários da parte de Solomon O.Iyasere. Condena Emenyonu
por agir "como se fosse um cego perante uma qualidade relevante como é a
distinção das situações e factos, ele fecha os olhos à distinção entre a arte
e a realidade, representação artistica e reprodução fotografica" .
Entre os
negadores da primazia da crítica endógena encontram-se aqueles que sem o
declararem explicitamente atestam o chamado "mimetismo da palavra".
Quer dizer exercem a crítica em dois níveis: recuperando as variáveis de
postulados teóricos ocidentais (únicos susceptíveis de ser considerados como
tais e de funcionar como metodologia coerente); e no outro nível o discurso
da crítica literária parece, limitado não marcado por quaisquer limites
metodológicos .
Os argumentos
aduzidos pelos defensores da primazia da crítica endógena são de peso para
serem apontados como tendencialmente prevalecentes. A lista de testemunhos é
de certo modo abundante. Mas o que importa é identificar os recortes do
paradigma novo.
Thomas Melone, Op.Cit.
Solomon Ogbede Iyasere," African Critics on African Literature: A study
in misplaced hostility", in African Literature Today (Focus on Crticism)
de. Eldred Jones(London,Heinemann,1982), nº7.pp.20-27
Pius Ngandu Nkashama, Op.Cit.
Apesar dessa
oposição assente na consideração do primado dos critérios de apreciação,
várias têm sido as tentativas para a elaboração de respostas. Grande parte
destes esforços são empreendidos no contexto do e pesquisa das universidades.
Actualmente ensaiam-se, um pouco por todo o continente, novas vias para os
estudos das literaturas africanas.
Segundo Elo
Dacy, no quadro da universidade congolesa o discurso crítico apresenta-se em
quatro correntes, nomeadamente a linguística, a anti-representação, a
antropologica e a ecológica . As duas primeiras caracterizam-se por serem
negadoras. Negam, respectivamente, o reconhecimento de uma identidade
congolesa da literatura escrita em francês; a segunda, a existência do
romance africano em geral e do romance congolês em particular. A corrente
antropológica representada pela professora francesa, Arlette Chemain, é uma
crítica formalista que arranca de pressupostos ocidentais. Transfere os
métodos da crítica ocidental para os textos africanos. Finalmente, a corrente
ecológica representada por nomes de pesquisadores congoleses, "propõe-se
a reintroduzir a obra no contexto da sua produção e contextualizar os
instrumentos de análise" .
Nas
universidades dos países anglófonos, as posições estendem-se desde as
correntes sociologicas às neo-marxistas e neo-científicas. Tal é o caso da
Nigéria onde, segundo Grace A.Adebayo, a crítica neo-marxista, representada
por Femi Osofian, Biodun Jeyifo, Odia Ofeinum, é praticada de modo
determinista e normativo como prova de que "a crítica literária africana
seguiu tenazmente na peugada da crítica europeia, em nós que tanta
desconfiança nos suscita" .
O princípio
da década de 70 marca a emergência de uma corrente pragmática na África
Oriental, liderada pelo escritor e professor universitário queniano, Ngugi wa
Thiong'o. Desenvolvendo a tese da endogeneidade da crítica com Henry
Owuor-Anyumba e Taban Lo Liyong (ugandês), lança o projecto de abolição do
Departamento de Inglês na Universidade. Defendem a constituição do
Departamento de Literatura e Línguas Africanas. Os fundamentos de tal tese
assentam na necessidade urgente de afastar o aspectro de uma África que fosse
vista como simples extensão do Ocidente, procurando instituir, portanto, uma
visão afrocêntrica dos estudos literários .
Elo Dacy,
"La Critique à l'Université", Notre Librairie (Littérature
Congolaise), nº92-93 Mars-Mai 1988,pp.198-202
Grace Aduke Adebayo," A crítica do romance da África Ocidental de língua
francesa e inglesa:- evolução e estado actual" África - Literatura, Arte
e Cultura, Vol.III, nº11, Lisboa, Jan-Jun.,1981,pp.10-18
Ora, este grupo parte de pressupostos de inspiração marxista na análise do
fenómeno literário. Donde animados por um certo desejo de síntese, três
críticos nigerianos, considerados também de inspiração marxista (Chinweizu,
O.Jemie,IMadubuike) aprofundam essa focagem no livro Toward the
Decolonination of African Literature, Abiola Irele, um dos eminentes críticos
nigerianos, classifica as teses iconoclastas destes três como sendo resultado
de um "naive romanticism". O que os aproxima aos marxistas, diz
A.Irele, é o facto de partirem da ideia prescritiva e ortodoxa da crítica.
Depois de
muitas hesitações e resistências, a Universidade de Ifé, na Nigéria,
procederia a uma reorganização do Departamento de Inglês. Em 1977, dava lugar
a três novos Departamentos . Tudo isto ocorria perante a rejeição da mudança
que se verificava na Universidade de Ibadan, a primeira a ser criada e onde
se formam a primeira geração de professores de literatura, escritores e
criticos nigerianos.
No plano de
estudos da Universidade de Ifé identificam-se os seguintes Departamentos:
Departamento de Língua Inglesa; Departamento de Literaturas em Língua
Inglesa; Departamento das Línguas Europeias Modernas. As literaturas
africanas são leccionadas no âmbito dos dois últimos.
O processo de
autonomização das literaturas africanas foi provocando, embora com alguma
lentidão, o abandono das denominações generalistas elaboradas na base de
critérios raciais. A historiografia regista influências profundas que o
movimento panafricanista e posteriormente a Negritude exerceram sobre a
ideologia dos escritores africanos. Estas literaturas foram durante muito
tempo designadas como sendo negro-africanas.
O tipo de
argumentos utilizados para justificar tais desingnações é-nos dada por Lylian
Kesteloot, na sua Anthologie Négro-Africaine:" Consideramos a literatura
negro-africana como manifestação e parte integrante da civilização africana.
E mesmo quando é produzida num meio culturalmente diferente, anglo-saxónico
nos Estados Unidos, Ibérico em Cuba e no Brasil(...) O espaço da literatura
negro-africana cobre não apenas a África ao sul do Sahara, mas todos os
cantos do mundo onde se estabeleceram comunidades Negras, sob os auspícios de
uma história turbulenta que arrancou ao Continente centenas de milhões de
homens como escravos(...)" .
Biodun
Jeyifo, "The debate on literary pedagogy in África: the Ife
experience", in AAVV, Littératures Africaines et Enseignement, Actos do
Colloque International de Bordeaux, 15-17 Mars 1994, organizado por Centre
d'Etudes Littéraires Maghrehines, Africaines et Antillaise e R.C.P.-C.N.R.S
nº732 Littératures Africaines Imprímées, Bordeaux, Presses Universitaires de
Bordeaux, pp.735-391.
A partir da
década de 70 e 80, a tendência dominante da crítica designa as literaturas
africanas no plural, confinando-as aos espaços nacionais. Passam a aser
publicados estudos e antologias que obedecem ao critério da nacionalidade
literária. Para M. a M. Ngal, este critério tem a sua validade na medida em
que o conjunto de actos criadores que a literatura representa
"estabelece com as línguas nacionais, uma relação de pertença
linguística (...) É neste sentido que às produções intelectuais abstractas
tais como as literaturas filosóficas se autorizam qualificativos como a
filosofia francesa, filosofia alemã".
Chinweizu,O.Jemie
e I.Madubuike, no livro já mencionado, produzem interrogações interessantes
sobre os critérios para uma definição do objecto do discurso crítico: as
literaturas africanas. Enquanto tal, elas "não podem ser definidas com
uma simples, concisa, anotação de dicionário, através da enumeração das
condições necessárias e suficientes". Por isso, recorrem a uma definição
extensional em que as semelhanças de família são empregues de modo pragmático
para se determinar os casos duvidosos e de fronteira que poderiam ser
incluidos no indiscutível canone das literaturas africanas.
OS CASOS PARADIGMÁTICO
DO PRIMADO DA CRÍTICA ENDÓGENA
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Dentre aqueles autores africanos que rejeitam
vigorosamente a tradição crítica ocidental e lançam pilares para um novo
paradigma, de um corte epistemológico, figuram os nomes de J.P.Makouta
Mboukou, Mahamadou Kane e M. a M.Ngal. Esta é a apreciação de Locha Mateso.
A introdução de um novo paradigma emerge de um
princípio importante para as literaturas. É o princípio do relativismo
histórico. Por outras palavras, o primado da crítica literária endógena
resulta do reconhecimento de uma situação de natureza ontologica cujas
potencialidades motivam a adopção de critérios que sustentam a
caracterização das literaturas africanas. Ora, a crítica literária
legitima-se a partir da recepção da obra literária. E o que se sugere com a
ideia do primado da crítica endógena é a adequação do exercício da leitura
às experiências das sociedades africanas.
Lilyan
Kesteloot, Anthologie Negro-Africaine (Littérature de 1918 à 1981),
Verviers, Les Nouvelles Editions Marabout, 1978, p.5-6
Na verdade, Mohamadou Kane e J.P. Makouta Mboukou são
dois dos referidos autores que no espaço da língua francesa realizam
abordagens inovadoras. É evidente que a originalidade das suas metodologias
não esgotam o que de um modo geral fazem igualmente os seus confrades do
espaço de língua inglesa. Lamentavelmente o objecto de análise de Locha
Mateso reduz-se às literaturas de língua francesa. Tal é a consequência da
balcanização linguística do continente.
No entanto, os tipos de análise realizados por
Mohamadou Kane e Makouta Mboukou têm várias semelhanças com as que são
produzidos por alguns críticos de língua inglesa.
O nigeriano Ernest Emenyonu autor de "The Rise
of the Igbo Novel", aproxima-se, quer de Mohamadou Kane, quer de
Makouta Mboukou ao inventariar os elementos dos contextos e universos
culturais subjacentes às obras literárias de escritores de origem igbo,
nomeadamente Pita Nwana, que escreveu"Omenuko", um romance em
língua vernácula, Ciprian Ekwensi e Chinua Achebe. E.Emenyonu chega à
seguinte conclusão: o facto de a literatura igbo ser na sua grande parte
escrita em inglês não lhe retira qualquer valor enquanto arte concebida
pelo génio igbo, de acordo com uma visão do mundo igbo, uma ética igbo e
padrões igbo" .
J.P.Mboukou tece as mesmas considerações quando se
refere ao contexto sócio-linguístico do romance africano. Assevera que
"não é exagero dizer que haverá tantos contextos linguísticos quanto a
diversidade de escritores negro-africanos" . Por isso forjou a noção
do duplo contexto linguístico que se analisa na presença indelével da
língua materna dos escritores coexistindo com a língua de origem europeia.
Não se limitando ao contexto linguístico, o crítico congolês entende que a
leitura de um romance africano pressupõe ainda outros contextos: o
geográfico, o sócio-etnológico, o sócio-histórico. Eles representam signos
cuja decifração permite atingir a mensagem romanesca. Além disso, a
abordagem de Makouta Mboukou dá particular destaque aos
"não-ditos". Ou seja, os elementos não verbais que entram na
constituição das situações pressupositivas complexas.
Ernest Emenyonu, The Rise of the
Igbo Novel, Ibadan, University Press Limited, 1987,p.189
J.P.Makouta Mboukou, Introduction a l'étude du Roman Négro-Africaine de
Langue Française, Nouvelles Editions Africaines, 1980,p.268
Na sua monumental obra crítica"Roman Africain et
Tradition", Mohamadou Kane começa por reconhecer expressamente a
existência de pontos de convergência entre a sua perspectiva metodológica e
a de outros investigadores do espaço anglófono. Menciona, por exemplo, os
nomes dos nigerianos Emmanuel Obiechina e Joseph Okpaku que também defendem
a "especificidade da literatura africana, a continuidade do discurso
narrativo de uma literatura [tradicional] a outra [moderna] e a importância
da sobrevivência das 'formas tradicionais' no romance africano" .
Mas, a originalidade desse estudo de Mohamadou Kane
reside na extensa perquirição do tema da identidade alicerçada nas
isotopias da tradição.
Outros investigadores como Isidore Okpewho estendem a
captação destas sobrevivências aos domínios da poesia. Na sua antologia
"The Heritage of African Poetry", que compreende as literaturas
escritas em inglês, português e francês, e as tradições da poesia oral,
I.Okpewho procura encontrar os pontos de ancoragem para a ideia segundo a
qual as literaturas orais africanas influenciam profundamente as
literaturas africanas actuais.
Apesar do radicalismo de que são acusados os autores
de "Toward the Decolonization of African Literature" dão uma
importante contribuição para a refutação das teses da crítica eurocêntrica.
Corroboram a ideia da precedência da oralidade sobre o romance e a poesia.
Expendem uma abundante réplica, passando em revista, por exemplo os ataques
desferidos contra a estética do romance. Nesse excurso,incidem sobre aspectos
estrurais como espaço e tempo; trama e diálogo; personagens e descrição .
Já em 1973, na comunicação ao colóquio de Yaoundé,
preocupado com os fundamentos das novas tendências do discurso sobre as
literaturas africanas, Mohamadou Kane recusava a dependência insidiosa dos
críticos perante os instrumentos de inspiração europeia. Lamentava a
hegemonia da crítica de Paris de que dependia a consagração e a glória dos
escritores africanos. O mérito das obras era determinado na base de
critérios da literatura francesa, passando ao lado do essencial.
Mohamadou Kane, Roman Africain
et Tradition, Dakar, Nouvelles Editions Africaines, 1982,p.19-20
Chinweizu, et al., Toward the Decolonization of African Literature (African
Fiction and Poetry and their critics), Enugu Fourth Dimension Publishing,
1980
A situação não deixa de ser paradoxal se se
privilegiarem os públicos africanos. M. a M.Ngal, na sua intervenção no
referido Colóquio, considera que as literaturas africanas modernas não
atingem senão alguns milhares de pessoas. Por conseguinte, "a grande
maioria a que os críticos se devem dirigir são analfabetos"."E
mesmo quando sabem ler a maior parte não possui um nível de instrução que
lhes permite ler as línguas ocidentais nas quais o Africano é forçado a
escrever se pretender uma larga audiência".
Ainda segundo M.a M.Ngal, "o problema essencial
da crítica é (...) revelar ao público não apenas as profundezas dos
significantes mas encontrar as técnicas mais apropriadas para decantar os
significados".
Para aquele crítico zairense, a criação literária é
uma forma de proceder à releitura da tradição. Ela efectua-se a partir de
um "vasto texto virtual e objectivo da tradição". Enquanto
leitura, a crítica, no entender de Ngal, há-de fazer apelo a conexões e pontos
de apoio disponíveis na tradição.
A historiografia literária é também um domínio
importante. O investigador e crítico beninense Guy Ossito Midiohouan
procurou contribuir para uma redifinição das condições do desenvolvimento
das literaturas em língua francesa, com o seu livro "L' idéologie dans
la Littérature Négro-Africaine d' Expression Fraçaise". Ele chega a
conclusão de que "o aparecimento e a evolução histórica dos
géneros(romance, teatro e poesia) tem a sua explicação fundamentada, não em
argumentos filosóficos, mas na convergência de factores identificáveis:
ensino, vida intelectual e cultural, meios de edição, público
destinatário" .
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