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    Um dia de cão

    Alex Dau - Moçambique



    O

    sol fulgurante expelia 45 graus célsius, tornando a terra num inferno. Santos e pecadores transpiravam por todos poros.
    Veículos de dez, vinte e mais cavalos marchavam pelo asfalto amolecido pela penetração dos raios solares. Carros fumegantes parados ali e acolá com os radiadores super-aquecidos estavam completamente derrotados pelo incremento da temperatura.
    Era um dia de cão, com o sol implacável a testar a resistência dos seres humanos e não humanos.
    O suor banhava rostos de muitos peões que marchavam sequiosos pelas várias artérias da cidade de Maputo e arredores.
    Um cão tinhoso que escapara diversas vezes das campanhas de abate dos serviços veterinários vagueava com a língua completamente por fora. Estafado, parou. Buscou por uma sombra onde não se misturasse com os humanos, pois estes sempre o escorraçavam.
    Fornos de uma das maiores companhias de produção dum metal precioso prestavam o seu auxílio ao diabo infernizando mais as terras do sul de Moçambique.
    – Quando morrermos, vamos para o paraíso porque no inferno já nós estamos! – desabafou um passageiro que acabava de entrar para o chapa apinhado de indivíduos que seguiam com destino a praia.
    - Esta terra não aquecia assim, agora até parece Tete! – corroborou outro viajante.
    A praia da costa sol era o paraíso mais próximo, para muitos citadinos e não só que buscavam refúgio algures para escapar a vaga de calor que se abatia sobre o sul do País.
    Os serviços meteorológicos não haviam previsto o excesso de calor que nessa sexta-feira se abateria sobre as terras dos changanas e dos rongas.
    Os prejuízos eram enormes, frangos de todas idades sucumbiram ante ao calor infernal, mesmo antes de serem atacadas pela gripe que pulverizava o mundo. Aparelhos de frio de todas as marcas descambaram.
    Bares, tascas e barracas estavam aglomerados de clientes.
    - Mais uma cerveja! solicitava cliente após cliente.
    Raparigas expunham-se pelas artérias da cidade semi-nuas mostrando o que um cego negaria de usufruir, mas ninguém se importava com o atentado ao pudor, estavam todos com as mentes em banho-maria.
    Os chinelos de borracha de dona Glória governanta da casa do senhor Elias enterraram-se no asfalto embebido da avenida 24 de Julho quando ela se dirigia para o mercado municipal.
    Ela foi socorrida por dois garotos que se equilibravam em blocos de cimento colocados em paralelo, foi preciso um equilíbrio acrobático para transportarem a mamana para um lugar seguro. 
    Accionistas da maior e única cervejeira do país babavam-se de contentamento a berma das suas piscinas particulares embebedando-se com cerveja importada.
    Hipertensos de várias idades desembarcavam aflitos nas clínica, hospitais e postos de saúde da capital e arredores, muitos sucumbiram ante a radiação solar e os proprietários das agências funerárias já estavam prontos para lucrar com as mortes excepto com a dos indigentes.
    O sistema de frios da morgue do maior hospital pifou porque o responsável pela manutenção preferiu contratar uma empresa medíocre e ganhar comissão e assim engordar o seu bolso satisfazendo sua ganância. A putrefacção dos corpos incrementava a degradação do ar. Estruturas sanitárias empreenderam diligências no sentido de se livrar dos corpos.
    O ferryboat responsável pela travessia, Maputo-Catembe vice-versa esta complemente repleto de passageiros banhistas e rebentava pelas costuras a ponto da última soldadura efectuada na doca seca começar a romper-se.
    O ferry apitou uma, duas vezes antes de o motor bufar e o cheiro da combustão se propagar pela atmosfera e muitos citadinos absorveram o ar já impregnado que habitou muitos pulmões, arruinando mais os dos fumadores activos também estes sérios contribuintes para degradação do ar que se respira.
    A embarcação ferrugenta balançava nas águas poluídas da baia de Maputo, e no porto navios de médio porte estavam ancorados depois de libertarem seus resíduos maléficos pelo nosso belo indico.
    O ferryboat atracou pelo estibordo, os passageiros banhistas desembarcaram precipitados e ansiosos de efectuarem o seu mergulho, para arrefecer o quente que o organismo alberga.
    O comboio ferroviário rolava sobre os trilhos largando sua baforada que se evolava na atmosfera participando na comunhão maléfica contra o clima.
    Um trovão fez-se ouvir e os ouvintes que sintonizaram a frequência da explosão olharam o céu descoberto e luzidio, os que tinham experimentado a guerra civil aplacaram temendo por um obus. Afinal era um posto de transformação de corrente eléctrica da electricidade de Moçambique que explodira. Labaredas de fogo gigantes serpenteavam o habitáculo do equipamento eléctrico.
    Um transeunte solidário procurava estabelecer contacto com posto de comando dos bombeiros, mas obtém a resposta automática “neste momento não é possível estabelecer a ligação que deseja”.
    Mirones não arredavam pé dos arredores, as explosões sucediam-se uma atrás da outra, um autêntico espectáculo de fogo-de-artifício.
    A cada nova explosão recuavam um dois passos mas não descartavam o espectáculo mesmo com o incremento da temperatura nos lugares que ocupavam.
    Quando finalmente informados, o carro dos bombeiros saiu de rompante. Desembarcaram no local do incidente quando o fogo já havia devorado por completo o posto de transformação.
    O inferno continuar a habitar a terra dos marongas. Ateus tornam-se pagãos, pagãos crentes e crentes em pregadores nessas onze horas em que o calor abrasador domina o sul de Moçambique.
    Preces multi-religiosas propagam-se no éter rogando por melhores tempos.
    O cão vagabundo redescobriu um lugar fresco, talvez o único arejado da cidade e arredores, e repousava cauteloso temendo que um peão manhoso aniquilasse o seu bem-estar.

    RETALHOS: Ximatanini ou nossa Praia Landinha


    Eduardo Quive - Moçambique


    Meu Deus, quanta água! Muita água! Em todo canto é só ver água e mais água! Tudo se transformou no tão precioso líquido! Vejo gente a bailar nos braços da chuva grande. Eu e Netinho saímos escalando esse mar que os céus cinzentos nos trouxeram no pobre Patrice. Chamamos Simone e Pala. Corremos descalços de calções e sem camisa galgando a terra que se fartava de tanta água. O chão prostrava-se perante o poder de quem está lá em cima. A minha mãe dizia que é Deus. Deus no céu e diabo em baixo das areias do bairro, mas quando fazíamos covas para construir as casas dos nossos palitos, representando aquilo que éramos, ou o que seríamos, lembro-me, aparecia um bichinho gordo que auto locomovia-se rastejando. Aí os mais velhos diziam é “nwinho wa missava”. Dono da terra. Aí mais uma coisa, as areais do meu bairro afinal não eram em que se encontrava o diabo! Então ficávamos felizes.
    A chuva mesmo seria a única barreira para as nossas brincadeiras, mas em vão. Enquanto ela caía eu ainda dentro da casa espreitando cobiçosamente ouvia malta Djossefa, Lulu, Florêncio e outra rapaziada, a cantar “treinador Maxaquene, Treinador Maxaquene”. Cheio de vontade de aliar-se àqueles amigos filhos do tio Pedro e tio Luís que o meu pai chamava-o Ndondondo porque bebia muito Tontonto (três palavrinhas), ao ver os rapazes brincar nas águas da chuva enquanto o tronco estava exposto aos pingos.
    Olhava para o chão quase com as lágrimas a cair e via na minha mão a ameaça de que se saísse, ia apanhar. Mas sempre dá um jeito quando Netinho entrasse em casa. Ele inventava qualquer coisa mas fazia a casa cuspir-me para fora. Aí saímos ambos de calções correndo para lá das bandas do tio Zefanias o pai de Pala onde tinha um tubo que tirava a água das caleiras. Era mesmo bom sentir aquele bater forte das águas da chuva nos nossos corpos. Uníamo-nos todos meninos, eu, Netinho, Simone, Lulu, Djossefa e Florêncio. Corríamos toda rua a fora. Depois pulávamos para as bandas do Singathela onde por causa da força dos pingos e da pequena ventania oportunista, todas as mangas caíam por terra. Apanhávamos aqueles frutos silvestres, mesmo na casa da professora Rossana onde tinham as mangas mais doces. Mas era tudo escondido, aí saber correr era um factor importante.
    Mas o pior mesmo, foi o dia que fomos conhecer a nova casa de Netinho, onde tio Pedro, seu pai, com salário de miséria como professor da escola primária, investia tudo para saírem da rua “O” e viverem felizes em família. O bairro onde morariam chama-se Ndlavela, fica depois de São Dâmaso. E é por lá onde tínhamos a nossa praia Landinha, uma porção de água cercada de terra. Mas não era assim que diziam os mais velhos, chamavam de “mati ya ndabi”, água que vem das cheias. Cheias de 2000. Mas nós não tínhamos esses preconceitos com aquela praia solitária que se instalou para nós meninos pobres do bairro onde tinha tudo, ladrões, sarnas e bilharziose, malária, diarreias, gonorreia e TB aos mais velhos. Agora também eclodiu nova doença. A gravidez.
    E íamos correndo ao Ximatanini como também chamavam. Dias de calor após quase um mês de chuvas torrenciais que encheram-nos as casas, as ruas e até as vidas. Na escola já não íamos a tempo e eram nossas ferias aquelas que as chuvas nos deram. Netinho que era mesmo bom das espertezas pediu-nos que o acompanhássemos lá para nova casa deles.
    Chegamos a praia Landinha e ainda a distância vozes de meninos que gritavam de alegria. Aí corremos ainda mais. Tiramos as camisas e as calças, ficávamos de calções ou mesmo de bicho fora sem temer as diferenças. Praia Landinha estamos aqui hoje nós da rua “O” e queremos tomar banho nas suas águas onde dizem que morreram muitas crianças. Nós que te somos solidários perante as injustiças que as pessoas te dão para não seres reconhecida como nosso Ximatanini onde banharemos os nossos troncos. Onde mulheres com bebés nas costas vem lavar as roupas que sujam na vida.
    Ah! Que saudades daqueles tempos em que os trópicos ardiam sob a nossa pele negra, indefesa do intenso calor típico de Janeiro e Fevereiro e lá no Ximatanini aquela praia de negros e mulatos pobres do subúrbio, afogávamos as nossas diferenças sem história!
    Horas passavam despercebidamente no banho da Praia Landinha. Entrávamos e saíamos correndo e gritando. Éramos felizes e confidentes com o nosso Ximatanini lá do Ndlavela. Só quando a noite começa a ameaçar chegar nos recolhemos, trémulos e mulatos de tanto banho.
    Mesmo com o cessar da tarde evidente, restavam vontades de continuar na alegria de Ximatanini que já era a nossa praia Landinha. Voltávamos a correr para casa como sempre gostávamos. Uma provocação a outros meninos dos bairros que passávamos agitava-nos ainda mais. Corríamos apressados para a porrada que receberíamos em casa. Ou pelo menos eu e Netinho. Já na rua, ainda na entrada chegavam-nos as vozes do medo. Gulherme, irmão mais novo de Florêncio é que vinha a correr para chamar-nos atenção do que nos esperava. Mas eram apenas ameaças de quem não podia afogar-se naquelas águas. Tudo em vão, a praia era nossa e nós tínhamos que nos banhar nela.

    CONTO CONTIGO: ...bem-vindo Doutor!

    Japone Arijuane - Moçambique

    Era uma tarde de Dezembro, o sol no auge dos seus afazeres; as senhoras estavam ali, por baixo da mangueira grande; local onde em tardes como estas deslumbra-se um cenário a capulana e ornamentado a fofocas, aliás, uma das funções mais célebres que gente dessa idade e sexo cumpre categoricamente. As crianças bem de tronco nu corriam por trás de qualquer coisa, desde rodas, arcos e elas mesmas. Perto dali localizava-se a estrada grande, - murampani. O miúdo, viera num aceleramento motorizado, com as mãos encenando o volante de uma motorizada, quando derrapou ao pé das mulheres, ouviu-se sermão, - não tens respeito...?, ele ainda não havia ganhado o fôlego. O papo ao ar das senhoras donas de casa parou no ar, na esperança de ouvirem um justificativo que seja, do tamanho afronto a idoniedade, esbugalhadas olhavam para o miúdo que, como uma galinha procura sustento ao papo, procurava ar para tira as palavras. Quando o mwanamwana pensou que disse algo afinal só havia gaguejado e tanto. O aspecto do miúdo agastava mulheres, aquelas senhoras de idade e responsabilidade alheia, pois quando se é mãe nada tranquiliza as mulheres se não o sosego dos filhos; as mães não vivem suas vidas, mas a dos seus filhos. - Tia… tia Odete... mano Doutor Afonso vem aí... As mulheres precisaram de um tempo para descodificaram a soletração do miúdo, mesmo assim se desfizeram da esteira. A dona, a tal tia Odete, foi a primeira a manifestar um gesto de percepção. Camafulada de intuição feminina; retirou-se dos aposentos, a capulana nas pontas dedo; como se, de uma população de formigas se trata-se, correram uma atrás da outra; no mesmo gesto de uma bengala a tactear o chão. Todas dirigiram-se a estrada, seguindo aqueles olhares cegos de alegria. Lá vinha o Doutor Afonso, agora Doutor, os dentes a substituírem os lábios. Dana Odete reconheceu seu Doutor, bem Doutor; como sempre o quis que fosse assim, estava ele ali vindo; uma pasta nas costas e uma mala na mão. Descera do nguinga-taxi apouco. Guardava a mesma fisionomia que levar a onde hoje vem. A dona Odete parou boquiaberta, lembrando-se do dia que o vi partir; ainda vinha-lhe a lembrança do dia em que teve-o pela primeira vez nas mãos e como era, tão pequeno e meigo seu projecto de triunfar. Não foi por acaso que o baptizou de Doutor logo a nascença. Na altura o país todo vivia uma proliferação do ensino superior, surgiam universidades de noite para o dia, como cogumelo em épocas pós-chuva; surgia e pronto, do nada; e por vezes incógnitas. O nome Doutor era moda, alastrou-se como uma praga de gafanhotos em machambas de arroz, quanto menos se esperava aí estava um doutor, sujo gordo, mas um doutor. Nesta altura bastava só frequentar o ensino superior. Não interessava o curso muito menos o ramo para se ser Doutor. A Odete estava no quinto mês de gestação, quando foi convidada a participar na festa de graduação de um conhecido; um conhecido que quando estudante conhecido por nada ter, além dele mesmo; a pobreza era o que o caracterizava. A partir do dia da graduação a vida mudou, não precisou de seis meses para ter carro e casa própria. Foi a partir desta experiência que a Odete forjou o nome para o seu feto, antes mesmo do mês da luz, o bebé já era Doutor. No décimo segundo mês, as mulheres gritaram -...Bem-vindo Doutor. Na verdade Afonso foi o nome que depois do doutor ter noção das coisas se auto-cognificou, para evitar os berros, mas mesmo assim. E como Afonso doutor não soa bem, ficou Doutor Afonso e vulgarizou-se. Rezam os factos que, um dia, uma família precupadisimaveio a procura do Doutor, feito o inquérito, um membro da tal família padecia de uma doença rara; quando a dona Odete fez presente o seu Doutor, no meio de tanta patologia houve um momento cómico. O doutor Afonso, cresceu sabendo do bem o seu propósito na terra, fazer-se verdadeiramenteum Doutor; ingressar em qualquer ensino superior, esse era o passo certo. Pois quando se interioriza algo, facilmente é a sua exteriorização; a fé mais uma vez mostrou seus dotes a realização, logo que fez o ensino secundário o doutor seguiu sua sina. Foi bem na capital da país que o Doutor foi fazer-se doutor, onde o mesmo viveu durante cinco anos, nos quais nunca havia regressado até então. Quando a dona Odete o tocou as mãos, torrencialmente as lágrimas inundaram o rosto, as outras mulheres melancolicamente reassentavam-se delas mesmas para dar lugar o entusiasmo, aproximaram-se e em coro: Bem-vindo doutor.

    RETALHOS: De madrugada morreu Mpudzuini


    Eduardo Quive - Moçambique


    Plazz…!!! Mais uma daquelas suas tossicas matinais, estendido aos primeiros raios solares. Hoje é até justo. É manhã de Julho, faz frio em Mapulanguene, mas nem por isso, madala Sope sempre fora assim.
    Aos 87 anos de idade, vive os seus quase quarenta anos de solidão sem arredar o pé daquele banquinho de madeira, com o cobertor sobre os ombros, única herança de outra velhice.
    Passam anos Sope sentado por cima do tempo, as rugas já não são de reclamar, rematiz à mistura do cansaço da vida que não passa para outras esferas já o sossegam como mero sobrevivente.
    Desde tenra idade o velho Sope partilha os dias com o silêncio de gente, barulho das aves, saudades e escarros que são o seu único romper da voz que se cala desde tempos do seu avô. Faz 37 anos que Mpundzuini, seu filho, morreu. O infortúnio deu-se numa escura manhã de Março quando um grupo de homens e mulheres invadiram o dormitório de Mpundzuini acusando-o de roubo de seis patos lá para outro lado do povoado.
    Tão sedo para sua idade, Mpundzuini viu a morte a visitar-lhe na madrugada de um dia que se quer estava ao alcance dos seus ancestrais como destinado o seu fim. Os populares que vinham na fúria da desgraça implantada pelo jovem filho de Sope, sem delongas puseram-se a destruir a cabana onde dormia Mpundzuini, repescando-o de seguida para fora. Daí, seguiram-se vassouradas, pedradas e socarias. Esbofeteavam e insultavam o jovem tido como ladrão.
    O velho Sope apercebeu-se da confusão que se instalara no seu lar sempre sossegado, ainda saiu a gritar que os vândalos parassem, mas era já sem força na sua voz que sempre foi roca. Tossiu e rebentou gritarias, mas não deu em nada. A povoação vizinha estava toda ela intolerante. Como podia lhes roubar patos naqueles tempos de fome à mistura do deixa andar que lhes permitia fazer justiça com as próprias mãos!
    Mpundzuini ainda olhou para seu velho pai atordoado pelo cenário que vivenciava. Sope viu o seu filho sentenciado a morrer de espancamento, ainda que lhe dessem a justa oportunidade de dizer ao menos se cometera ou não o tal delito. Mas não, que tem a falar um ladrão? E ai de quem ousar a defendê-lo.
    Encravado entre a sova dos homens descamisados em pleno cinco da manhã e das mulheres de capulanas até ao cimo da barriga e bem amarradas, tão jovem que era, Mpundzuini amanheceu espatifado e gritando por dentro que não entende o que se passa.
    Lá para o centro do povoado, mesmo defronte à casa do régulo, foi feita uma cova onde seria depositado o corpo do hoje julgado ladrão de patos e sem direito à recurso, condenado à morte. De vistas com a cova o velho Sope que seguia a população agressiva para com seu primogénito, sentiu um parto no coração, manchas de sangue sobravam-lhe no rosto que através dos olhos já tinham a certeza do fim que o filho teria. Aquela cova não era para ser sepultado o Mpundzuini, era sim, para enterra-lo vivo.
    Foi tudo em fracções de segundos. Enquanto a escaramuça persistia, um grupo de homens já tinha preparado a cova que estava na forma horizontal. O outro grupo que vinha doutro lado com o jovem a ser espancado por todos, arrastando-o para aquele sítio, já sabia do que se seguia. Meteram-no na cova que cobria todo seu corpo de pé e de seguida, desataram a enterrar o buraco. Era o fim do castigo que um ladrão que põe fome no povoado merecia.
    O velho Sope ainda lembra-se desse trágico episódio da sua vida e por isso, tosse sem mais algum interesse. Se lhe vem mais um ou dois copos de Uputsu pouco lhe preocupa, que verdade os homens têm para lhe oferecer que lhe possam doar tanto que ver o único filho a morrer de pé, clamando justiça, olhando para seu velho pai tão inútil para salva-lo para morte ainda em vida? Pensa e relembra o velho sem verter nenhuma lágrima. Que dor maior havia por chorar naquele momento em que já 37 anos passavam?

    O PASSO CERTO NO CAMINHO ERRADO: Fala, silêncio e tom


    Nelson Lineu - Moçambique

    Maratona-mo-nos todas as vinte e quatro horas, a meta é alcançar um problema
    uma mão sujando a outra o vencedor é quem detecta
    mais dificuldades em nós; ao atingir a meta
    dissemos é para quem de direito
    que podem ser todos
    menos
    nós.

    E sta maratona descrita por mim é o cenário que vem nos caracterizando em todas esferas do nosso quotidiano. Precisamente aos artistas, aos analistas da praça, aos políticos - incluindo os governantes -, mais parece estarmos a lutar para encontrar problemas do que propriamente resolvê-los ou procurar mecanismos para tal, aceitaria até com palmas se ao menos os novos problemas fossem soluções dos anteriores. Há que definir o que é problema? E para quem é? As indagações deviam servir para abrir caminhos – o contrário do que se tem feito actualmente: servem de pedras, fechando ou tornando o caminho estreito, a maior parte das vezes intransitável com armadilhas que interpretam-nos como imagem no espelho a frágil democracia, enfraquecendo deste modo os nossos instintos de sobrevivência. Mas também como André Maurois penso que sem espírito crítico nenhum homem se pode considerar livre.
    Para esta edição coube-me o desafio resistível, de escrever sobre a AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos). O desencanto é porque quando desembarco nesse barco-escrita a corrente da água deixa-se levar pela admiração, espanto ou indignação. Nesse caso nem uma, nem as duas coisas. Nietzche diz que não devemos ser médicos dos incuráveis. Será que estamos perante esse caso? Será que esse é o motivo do meu pouco entusiasmo?
    Não se trata de optar pela indiferença, pelas minhas posições em certos fóruns em relação a AEMO, o meu silêncio até aqui pode deixar a desejar. Uma vez sobre o silêncio num poema escrevi: “o silêncio também é música, sendo música: mal tocado cria ruído” É caso para dizer que quando se trata da AEMO actualmente, calados ou não o tom é alto - (um adjectivo por caridade). Mas não vou terminar sem partilhar um episódio:
    “Certo dia, numa palestra organizada pelo Movimento Literário Kuphaluxa – uma das actividades do em que um escritor faz uma apresentação com o tema: por que ler? - Um estudante perguntou ao orador que por sinal já foi secretário-geral da AEMO: Com quantos anos pode-se lançar um livro ou tornar-se escritor?” A pergunta a priori parece carecer de sentido. Mas para o estudante tinha e muito, assim como o meu enfado ao tentar escrever sobre o tema proposto. Mas perguntas como essa circulam nas cabeças de muitos moçambicanos.

    CONTO CONTIGO: Maxaquenina

    Japone Arijuane - Moçambique

    Bem na palma da cidade de Maputo, agarra-se um subúrbio, uma selva cercada a cal e cimento; selva onde o cifrão traz crinas e jubas, e goza de um eterno reinado. Maxaquene, como quem diz - familiares, ergue-se na assombração da vida humana; entre madeira e zinco, ecoa o rugir de um clamor desnutrido pela desigualdade socializada da cidade. A vida corre asfaltada de raiva e tinha, e vai latindo de lamentações como um canino ao anoitecer da convivência social; estendida à rápida metamorfose e ladra o ser suburbano aliás, sub-humano. “Elas” são sempre o sacrifício da família, o garante dos demais membros verem o amanhã; ver a mesa pelo menos uma vez ao dia. Ter filhas, ser chulo, é algo indiferente. Elas exibem-se no tropel da vida e alimentam a cidade de gemidos, gozos e delírios outrora ocultos à gente da mesma idade. Era, é, e não se sabe até quando será assim a vida, nas maxaqueninas. Essas atletas a mercê da fome, num jogo em que quem ganha o presente perde o futuro e muito mais. Mas o que fazer quando a única saída é só para boca do tubarão? As bonitas vivem pela beleza, as feias procuram outro argumento para encarar a vida, não tendo outro, estas presas a fome e nada. A Maxaquenina eleita aqui, como protagonista, era reunida de uma pigmentação preconceituosa do ser (mulata), quanto mais for clara a pele, maior é o escuro do futuro. É essa a regra e a alma do subúrbio, regra não-negra, desalmada na vastidão não-branca. A Maxaquenina julgava-se na sentença máxima de pertencer a cor; uma rainha (dês) coroada da cor doada violentamente. Só compatibilizava-se pelas mesmas epidermes místicas, as igualitárias oriundas de um passado comum, de mercadores árabes a colónias europeias; que a convivência suburbana esbarra ao preço do pão. Para ela, tudo valia a pena; era a cor o seu preferencial e companheirismo ideal. Vinha sempre uma alma nua, ancorada em mares mistos e místicos; independentemente da faina, labutava neste desconceituo ofício da vida. É triste quando o que achamos que nos é igual de outro, o outro não valoriza. A convivência suburbana é uma aventura sem viagem alguma; um tempo sem compromisso com a hora. A Maxaqunina era, talvez pelo esforço via-se quase, linda; trazia um fogo guardado, que o mesmo afugentava os negrinhos e aquecia os homens de cor; em vivências mal concebidas. Pois, a maldade sentir-se-á triste pela tal comparação; ela passava a vida nas piores das formas que uma moça do seu porte e cor poderia passar. Engraçado, dava tudo para manter aquela aparecia barata, aquela aparência aparentada dela mesma. A preocupação era a aparência, não a essência. Uma vez, no dia em que, não se sabendo por que razão, conseguiu somas consideráveis de cifrão. Pegou e gastou, em o quê? Roupa e cabelo. Dizia a mãe:

    - Você nem cama têm, mal come; porque tchunabeibes e tizagens?, coisas caras... minha filha, tenha juízo. Juízo era realmente algo que nem a binóculos a filha contemplaria. A maxaquenina pensava rápido e curto; um pensar típico e suburbano. Aliás, um pensar que qualquer um pode, desde que pense em pensar. Pensar para logo vencer! A Escola é pensar para esperar; esperar é paciência, no subúrbio paciência traz derrota, e escola serve para ter boneca; sonho de toda menina; ela, não querendo ser excepção até na quinta classe foi suficiente para concretizar o sonho, suficiente para deixar de sonhar e ter o seu boneco; um bebé malnutrido, aliás sem nutrição; mas feliz para ele, pois seus companheiros foram anulados enquanto feto, outros jogados vivos na sarjeta. - Que sobreviva assim que estás, quem sabe no futuro... os outros nem presente tiveram. Dizia a Maxaquenina, quando o bebé fazia o que bem sabia fazer: chorar, chorar e chorar.   
    O tempo dá azo aos seus ensinamentos tardiamente. Quanto ao exemplo desses exercícios fazia-lhe frente, virou frango para os mesmos negrinhos: assado, cozido, por vezes cru. Hoje, os sem cor, os sem alma não a erotizam, ninguém por nada, mergulha neste (mar) morto que um dia foi praia quente e os coloridos navegaram-na descamisados; uma praia virgem e exploraram-na todo atractivo erótico. Hoje paisagem, somente onde o tempo faz delas histórias de uma viagem estática. Uma viagem que traz ao mundo da pequena selva (Maxaquene) dentro da já suburbana cidade de Maputo, mais sentido ao ciclo vicioso; mais índice a obscenidade.  

    RETALHOS: Um amigo em terras desconhecidas

    Eduardo Quive - Moçambique


    Santos em algures da Ilha de Luanda durante a caminhada na calçada ainda em construção, encontrou-me a falar de peito trancado sobre quão custava-me conhecer os nomes daquela cidade, sei que o lugar chama-se ilha, uma autêntica face do futuro que Luanda procura para si, investindo rigorosamente na (re)construção.
    Santos vem de longe, mas tão perto para si que muito gosta da vista marítima que acompanha os sons da maquinaria da Monta-Engil Angola.
    Lá vem o menino de 10. De lá vem para cá vai. Santos caminha para junto de um desconhecido que sou para si. Pára e conversa. Giro a sua volta e inicio uma nova marcha a favor da direcção que ele toma.
    Lado a lado, Santos conversa. Vai andando enquanto contempla a sua cidade que está ansiosa para o futuro.
    Inquilino da sua amizade, também converso feliz por ter achado, finalmente, um amigo nesta terra que me é difícil relacionar com as coisas, com as gentes, com os códigos e com as ruelas. Uns verdadeiros mussques ditos e bem descritos por Luandino Vieira nos derradeiros momentos da (re)novação de que Luanda é vitima. A ilha é mesmo um lugar inexistente. O potencial que este invisível cercado de mar tem é de embalar emoções
    Santos tem noção disso e por isso vai cantando e contando.
    _ Antes a estrada era aqui, agora é ali. Isto está mesmo a mudar – reconhece, Santos, o meu amigo.
    Ele conta-me que está a caminho de casa, mas antes passará de casa de alguns amigos. Diz-me que foi “enxotado” da sala de aulas porque não trazia o caderno da prova. Mas não é assim que contou.
    _ De onde vens?
    _ …da escola.
    _ Ah, que bom! Eu também estudo. A que horas entraste?
    _ Entro às seis horas.
    _ … E sais a esta hora?
    _ Não.
    _ Não! Então porque é que te encontras aqui? Fugiste?
    _ Não fugi, tinha prova.
    _ Então como foi?
    _ Não fiz porque não trazia o caderno da prova. Esqueci em casa.
    _ Como assim? Tu tens a prova e deixas o caderno em casa? Eu nunca deixo o caderno.
    O rapaz calou-se e consentiu, para de repente voltar à conversa.
    _ Em que escola você estuda?
    _Bem, eu estudo na Escola de Jornalismo em Moçambique. Sou moçambicano. Consideram-me jornalista.
    Santos levanta a cabecinha e olha-me já com desdém. “Não é possível que este gajo seja jornalista, está a gozar comigo” imagino que ele pensa enquanto continua com o riso irónico para a minha cara.
    Olho para aquele menino com emoção. “Ele é meu amiguinho” – digo para mim mesmo.
    _ Sabes que tenho um sobrinho assim como tu? Ele anda na 5ª classe.
    _ Tenho um amigo na 4ª e eu vou passar para li encontrar.
    _O meu sobrinho chama-se Helder e tu?
    _ Meu nome é Santos. Os meus amigos chamam-me de Kutchu, mas a minha mãe
    chama-me de Santos.
    _ Santos, grande nome! Eu também sou Santos.
    _Mentira…
    _ Pois, menti mesmo. O meu nome é Edu, Eduardo… Edu.
    _ És Eduardo.
    _ Isso mesmo.
    E vai se fazendo esta amizade enquanto contra-peamos a calçada olhando para o mar, os peixes, homens e as respectivas mulheres quase nuas.
    _ Eu vou daqui – aponta a estrada.
    _ E vais atravessar a estrada, sozinho!
    _Não. Estou contigo.
    Segurei na sua mão e atravessamos para a direcção que ele bem conhece. Apercebido que fui “vitima”das tentações deste grande amigo, já não me saem perguntas. Apenas cumpro ordens inspirado no letreiro da Base Marinha de Luanda cuja ilustração é do presidente José Eduardo dos Santos “Comandante em Chefe, às suas ordens. Ordene, ordene, ordene”diz o cartaz.
    Calo-me e contemplo. Angola é um país de ordens também! Santos bem sabe as dar. Ordena-me e eu cumpro. “Às suas ordens, Santos”. Caminhamos agora intercalando as casas sobrepostas, cheirando a peixe e outros mariscos com águas turvas à mistura. “Isto é Mafalala!” reconheço as igualdades. Aqui há cães vadios. Cães que atentam a moral, fazendo sexo na rua no olhar dos homens. Cães que matchimbam na rua atentando a saúde pública. Isto é mesmo Mafalala e Chamanculo, Unidade “7”, Urbanização, Maxaquene e etc. É daqui que saem os poetas, dançarinos, timbileiros, actores e outros grandes artistas.
    Mulheres cobertas de capulanas sentadas de pernas para o ar conversam num silêncio inquietante. As raparigas, mulheres adultas e crianças, decoradas a moda Tchuna-Baby, vão mostrando as suas pernas decoradas de varizes que nem se quer respeitam a idade. Aqui, os homens andam sem camisas e as raparigas apenas de panos que só lis cobre os seios. É tudo gente de Santos.
    Enquanto caminhamos ele saúda essa gente. Os homens de calções e descamisados, uns com peixes nas mãos, mulheres de mini-saias e jeans rasgado. Mulheres adultas na moda. São todos conhecidos de Santos.
    Casa pintada a cor-de-rosa e com antena de TV digital é da sua avó. E me mostra esses lugares, o meu amigo, preocupado em apresentar-me, principalmente à sua tia-mãe, como ele intitula e à sua mãe.
    Chegados no seu beco, Santos saúda a sua tia que o indaga sobre o porquê de estar ali naquela hora “já para casa”, vociferou. Logo na porta da varanda, o único quintal que a casa tem, saúda uma mulher que não consigo ver o rosto. É sua mãe.
    Calado, senti que era aquele, o fim da nossa amizade, pois aos que me perguntavam apenas dizia que o ajudava a atravessar a estrada.
    Ele apresentou-me as pressas à sua mãe que zangada pela sua chegada antes da hora habitual, nem se que presta-me alguma atenção.
    _ Ele é meu amigo mãe.
    Da sala saia uma menina. Tão linda! Devia ser irmã de Santos. Olha para mim e pisca os olhos em jeito de saudação. Que criança linda e espertinha! Mas não me alongo, dispenso-me da família e do meu grande amigo, o Santos.
    Dia inesquecível este 17 de Abril de 2012. Dia ímpar naquela ilha anexa à cidade de Luanda onde nem amigos tinha, além de poetas. Agora, um já figura a minha lista. Seu nome é Santos.

    A Conversa entre o Chá e a Solidão


    Celso Munguambe - Moçambique

    A solidão:
    - já viste como a rua anda movimentada esses dias?
    O Chá:
    - nem digas, logo que amanhece as pessoas colocam o pé fora de casa, algumas nem tem tempo de tomar o pequeno almoço como deve ser , outras nem tomam.
    A Solidão:
    é verdade. Outras fazem tudo por dinheiro , são capazes de matar, mentir, fingir gostar de alguem, até chorar. Para depois no final ficarem sozinhas com o dinheiro,mansões, carros de luxo que de nada valem quando tidos só, ou seja, podem servir até para ela comprar um homem mas já mais irá comprar o amor, amizade, afecto verdadeiro porque isso não se compra, conquista-se.
    O Chá:
    - os tempos mudaram meu querido amigo, as pessoas pensam que dinheiro compra tudo, quando falamos de amor nos dias de hoje já nem se sabe se ele existe. É certo que o dinheiro é importante para nossa sobrevivência no dia-a-dia: para comprarmos bens materiais, termos uma refeição condigna , mas ele não é tudo.
    A Solidão:
    - é isso ai meu companheiro, mas há pessoas que não entendem isso que cham que com o dinheiro podem fazer e desfazer e terem o que bem entenderem.
    Enfim, é assim que correm os dias de hoje
    O Chá:
    - sem dúvidas, não recordas do que dizia o magnifico presidente Samora M. Machel?
    A Solidão:
    - não, o que?
    O chá:
    - “ um ambicioso é capaz de tudo, vender a pátria só porcausa da sua ambição, do seu interesse individual. Não sei se um ambicioso muda, mas a minha experiência prova que não, muda de táctica, mas não elimina a ambição”.
    A Solidão:
    - e alguns venderam mesmo, sem dó nem piedade e venderam também a vida de um homem, que era um impecílio para os seus interesses gananciosos... é melhor eu para por aqui antes que comece a falar coisas que não devo
    O chá:
    - é verdade se não vais acabar como o jornalista ou aquele do ex Banco Austral que agora é Barclays.
    Mudando de assunto, é de notar também alguns aspectos positivos.
    A Solidão:
    - quais?
    O Chá:
    - a nossa gente tem sonhos, é trabalhadora batalhadora e perseverante.
    A Solidão:
    - é verdade pode perder a batalha mas não perde a guerra.
    O Chá:
    - com muito barrulho e várias greves os orgãos competentes acabaram por reabilitar a principal via de acesso a cidade de Maputo e que da acesso as outras provincias do nosso país. Promoveram também a recolha de lixo na cidade e arredores, montaram postes de iluminção em algumas ruas, enfim...
    A Solidão
    - não fez mais do que o seu trabalho...

    1 HORA ( Em casa de Narguiss)*

    Lilía Momplé - Moçambique


    Q ue força é esta que não a deixa levantar-se e correr para o seu Abdul que , já impaciente, quase derruba a porta aos pontapés. “ Não grita...Espera só pouco”, roga ela, tremendo de receio que ele se vá embora.
    Mas Abdul não se vai embora, continua a dar pontapés na porta e a gritar como se alguém, lá fora, lhe estivesse a fazer mal. E ela sem poder abrir aporta. Está tão perto, só alguns passos, poucos, tão poucos que ela resolve ir de rastos, já que não consegue pôr-se de pé. Lutando contra a força que a paralisa, avança com lentidão que os gritos de Abdul tornam insuportáveis.
    Está quase...um pouco mais...agora é só levantar o braço, alcançar a fechadura e rodar a chave...uma, duas vezes. Mas o braço pesa-lhe... pesalhe tanto...não consegue...não...
    Narguiss acorda a transpirar, apesar do cacimbo de Maio que entra pela porta de rede que liga a cozinha á varanda. “ Afinal tudo pode ser um sonho...Abdul não vem”, lamenta ela, desiludida, á sua volta.
    Foi um sonho terrível, mas Abdul. Era melhor do que estar assim sozinha, sem marido, no dia de Ide.
    Não se lembra de ter adormecido sentada, com a cabeça apoiada nos braços cruzados sobre a mesa da cozinha. Lembra-se, no entanto, do pesadelo de onde acaba de emergir e da estranha sensação de ter visto Abdul através da porta que ele batia com os pés por ter as mãos cheias de embrulhos.
    “Mas pode ser tudo sonho, mesmo. Abdul não está aqui”, geme baixinho. Experimenta mexer as pernas e os braços e constata, aliviada, que lhe obedecem perfeitamente. Tudo foi mesmo sonho. Abdul não veio e nada lhe tolhe os movimentos. Porém... os gritos e o barulho esquisito que chega da rua não é sonho, não. São reais e cortam o silêncio da madrugada, com assustadora nitidez.
    Curiosa. Narguiss rebola o corpo imenso até á porta de rede e sai para a varanda. A princípio não quer acreditar no que vê. Supõe mesmo ter mergulhado num novo pesadelo, tão estranho lhe parece tudo.
    Na varanda do primeiro andar , mesmo em frente, o casal que lá vive e que ela só conhece de vista, desfaz-se em gritos. Ela grita apenas por socorro e ele, embrulhado no que parece lençol, repete qualquer coisa que Narguiss não consegue compreender. De vez em quando, grita também por socorro.
    Apesar da escuridão da noite sem lua e d acácia rubra que os oculta um pouco, Narguiss consegue vê-los agora, perfeitamente, iluminados por holofotes manejados da rua. O homem continua a bradar qualquer coisa incompreensível e a mulher não para de pedir socorro. De repente, põem-se a correr de um lado para outro lado, na exígua varanda, numa dança
    macabra.
    Narguiss não sabe se as balas que os atingem vêm de dentro de casa ou dos homens dos holofotes que também disparam sem cessar. Mas , quando os vê cair, desta ela a gritar.
    - Está matar gente... muanene inluco... está matar gente... ali... muanene inluco...
    Não vê o homem que, da rua, lhe aponta a arma pois toda atenção está centrada na varanda da flat em frente. As balas atingem-na, certeiras, no pescoço e no peito e ela espanta-se da sensação de infinita paz que a acompanha na queda. Já nada a faz sofrer, nem o Ide sem ver a lua, nem as filhas sem casar, nem mesmo o Abdul.
    Como se o enorme corpo se recuasse a ceder, dá uma volta sobre si mesma e , escorregando lentamente, Narguiss cai por fim, sentada, com as costas apoiadas no gradeamento da varanda. E é assim que, pouco depois, as filhas alertadas pela gritaria e pelos tiros, a vêm encontrar.

    *in Neighbours  pag 107 e 108, 3ª Edição da autora 2008
    Glossário
    muanene inluco – Meu Deus – Língua Macua- falada no norte de Moçambique
    particularmente na Provincía de Nampula
    ____________________________________
    Lilía Maria Clara Carriére Momplé nasceu a 19 de Março de 1935, na Ilha de Moçambique, fez o ensino secundário na então Lourenço Marques( hoje Maputo). Frequentou o 2º ano de Filologia Germânica e licennciou-se em Serviço Social no Instituto Superior do Serviço Social de Lisboa, viveu em londres, Baía, São Paulo. De volta á Moçambique,trabalhou no Ministério da Cultura,onde foi Directora do Fundo para o Desenvolvimento Artsitíco-Cultural, Secretária Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos. É membro da Southern African Writers Council.
    Em 1997 participou no International Writing Program, na Universidade de Iowa, nos Estados Unidos de América.

    Obras Publicadas:
    Ninguém Matou Suhura 1988 – Contos
    Neighbours 1995- Romance
    Os olhos da Cobra Verde 1997- Contos
    As suas obras estão Publicadas na Itália, África do Sul,etc.

    A prostituta que me provou o teste

    Izidro Dimande - Moçambique


    Sexta-feira. Na cidade. Meia-noite. Lua cheia. Verão de Dezembro.
    As miúdas alegres na carne masculina que enfileirava a rua delas. Os guardas mais ricos ficavam no aluguer dos sítios.
    Eu (Mbopene), Xiguimane, Muzila vestidos de roupa de passeio descemos a cidade baixa com a ejaculação na mente. Mente esta que estava alcoolizada de tantas garrafas derrubadas no covil da Xitique. Mulher incerta e experiente na arte de vender aos assalariados que mês á mês colhia do cantineiro, do camionista que chegava ao mercado vender hortícolas e legumes, do armazenista que descarregava vagões de produtos contrabandeados, do mulungo do escritório.
    Descemos nos cânticos de alegria e no provoco dos inocentes que cruzaram caminho com os três assalariados.
    Mulheres expostas na rua como se de manequins das lojas fossem caminhavam em direcções incertas a vender o que entre as pernas lhes é sagrada.
    No silêncio dos homens atenciosos e na boca larga do Muzila ouviu-se uma frase grave, aterrorizadora, inerte, grossa, má, que deixou os homens de verdade silenciosos, as mulheres da rua a vociferarem, os seguranças das boates a entrarem na zaragata.
    - Calma ai! Não foi isso que ele queria dizer e não se referia a senhora.
    - A quem dizia, eu ouvi, foi esse cão duma figa que disse.
    - Vais apanhar que nunca viste hoje, nos estão aqui a fazer a vida e tu se não queres nada fica em tua casa. Seu nquenho.
    - Pega ai, e vocês não se metam se não apanham também, leva o gajo para lá em cima. E vocês ficam aqui. Quem seguir apanha, juro mesmo. Este tipo vai aprender.
    Sumiu na escuridão da garagem daquele edifício. Fiquei lúcido. Pensei na polícia. Pensei em fugir. Pensei na milícia. Pensei.
    - Agora vás dizer de novo aqui que disseste na rua ou vás fuder com a malta.
    - Juro que não dizia a vocês.
    Gritos de dor, de tristeza, de amparo. Ninguém ouve. Fraqueza do homem.
    - Tira-lhe as calças e a camisa e a cueca se tiver.
    Nu. Amarrado contra dois postes de canalização de água ali colados a parede. Gritava. A primeira tirou a calcinha. Nua ia ficando. A outra apalpava-lhe o que o homem preserva. Outra metia um lencinho a boca para lhe silenciar. Apalparam-lhe. Acariciaram-lhe. Chuparam-lhe como se de rebuçado fosse.
    Ficou erecto mesmo com dor. Calou-se com lágrimas de medo.
    - Vais dizer mas aqui?
    Silencio mudo.
    A nua segurou-o e introduziu na miúda. Fez movimento que animais em cio, sentiu
    prazeres, gemiam na doçura do acto sexual. Ia perdendo o directo ao medo, ia perdendo o medo a vida, ia ficando com mas prazeres.
    Saiu e entrou a outra, mas brava na arte de satisfazer o cliente mexeu com tudo, sentiu sua vagina delirar, sentiu sua vagina amadurecer, sentiu o pénis fazer-lhe sentir o prazer da vida. Mijou.
    - Agora vai dizer aos teus amigos aquilo que você pronunciou na rua. Saíram de volta ao serviço. Feliz e ele enforcado com o sexo grátis.
    Teve medo de voltar a ver seus amigos, quando no fundo da escuridão ouviu vozes se aproximando em seu auxílio.
    - Então? O que te fizeram Muzila.
    - Sexo sem protecção.
    - Vamos a policia faz queixa, se te transmitiram o sida a força.
    Um ano depois enquanto Muzila cuidava dos seus afazeres, surgiu uma mulher com meia-idade, a cara era linda, o vestuário a medida. Perguntou quando custava o produto olhando para a prateleira ao lado.
    Quando os olhos se cruzaram, Muzila ficou minutos a discernir suas lembranças.
    - Conheço a senhorita de algum lado.
    - Todos me conhecem.
    - Mas não me recordo.
    Pagou a conta e saiu. Minutos depois Muzila seguia para confirmaram o local.
    - Desculpa senhorita, trabalha na baixa da cidade?
    - Onde?
    - Desculpe, na rua!
    - Sim, porquê? Já estivemos juntos.
    Silêncio.
    -Sim, recorda do jovem que a um ano foi obrigado a fazer sexo por ter ofendido três senhoritas e os homens todos ali presentes ajudaram-nas.
    - Sim lembro-me.
    - Sou eu!
    Silencio. Olhares. Perguntas por fazerem-se.
    - Como está?
    - Casada há 6 meses com um estrangeiro e mãe de um bebé de três meses.
    - A tua amiga que também me possuiu.
    - Morreu!
    - De doença?
    - Não foi isso que levou a te possuirmos, de desconfiar que nos éramos umas cheias de SIDA.
    - Foi!

    O conto do pequeno Édipo


    Suleiman Cassamo - Moçambique

    O HOMEM tamborilou os dedos no balcão. Pediu, com uma voz cinzenta: -Uma cerveja. Pediu como quem pede ao ar. Isto é, sem dar inteira conta nem da mulher de preto, sentado no banquinho, nem do miúdo, jogando guêime. A mulher abriu uma média. O homem ignorou aquela, e apalpou as garrafas no fundo da caixa térmica. O rapazito suspendeu o jogo, e olhou-o com cara de poucos amigos. - Vá brincar lá dentro - berrou a mulher, indicando a saída que dava para o resto da casa. Por sinal a única porta da barraca. O balcão-janela dava para a rua, e estava, assim, o cliente, único àquela hora, de costas para a rua. Decidiu-se pela cerveja que a mulher lhe estendia. Afinal, estava tudo gelado por igual, e a quente, e a sede, tanta, que ele virou o primeiro copo num instante. - Que tal? - perguntou a mulher, tentando animá-lo. Ia já no mar alto da vida. Navegação difícil, pelos vistos. Emanava dela uma discreta tenacidade, a dor sem queixume, a arte de sobreviver. Não há remo mais lesto que o coração feminino. - Que tal, é boa? O homem tinha a língua presa. O humor azedo, ao fim de um dia de trabalho, é coisa normal. Ainda bem; por estes anos, de repente, Deus trocou-nos cogumelos por barraca. Entre o "chapa" e a casa, uma pausa para relaxar. À terceira média, soltou, mesmo a língua, dizendo: - Boa. A mulher parou de acender a vela, e encarou-o. Melhor, encararam-se. À luz
    tremelicante do fósforo, ela surgiu da roupa da viuvez. Era como acender a própria beleza. O menino estava à porta, espiando aquele momento mágico. A mulher virou-se para o garoto. Pela primeira vez, conheceu nele a cólera. - Suca daqui! - ordenou a viúva. Mas o puto voltaria sempre: mãe o meu guêime, mãe: tem um rato dentro da pasta; mãe um refresco; estou com fome, mãe… - Dá-lhe um pacote de "Maria" - disse o cara. E acrescentou, peremptório: - na minha conta. Mas isso, se é que ele não sabia, não o compraria. Quando muito, o seu momentâneo sumiço. À quinta média, o cliente tinha já, não só a língua mas também o espírito solto, um verdadeiro poeta. Mudou-se para o canto do balcão onde à luz da vela, a mulher escolhia folhas de couve para o jantar. Como se o bafo da cevada fosse o suco da própria poesia, cochichou: - Boa como a própria dona? Nisso o menino reentrava. Não gostou daquela súbita intimidade. O peito cheio de ar, incapaz de falar, fixou o cliente com olhos de cobra. - Xixi cama! - berrou o homem. O puto deu um passo em frente. E descarregou os pulmões: - Rua-rua-rua! Pegando num vasilhame, avançou para o balcão. Estava em causa não propriamente o lugar do seu pai, mas o seu próprio. Qual pequeno Édipo, avançou pois, disposto a morrer. Eterno é o labirinto dos afectos, e por isso, estória sem desfecho, esta.
    A prostituta que me provou o teste
    S exta-feira. Na cidade. Meia-noite. Lua cheia. Verão de Dezembro.
    As miúdas alegres na carne masculina que enfileirava a rua delas. Os guardas mais ricos ficavam no aluguer dos sítios.
    Eu (Mbopene), Xiguimane, Muzila vestidos de roupa de passeio descemos a cidade baixa com a ejaculação na mente. Mente esta que estava alcoolizada de tantas garrafas derrubadas no covil da Xitique. Mulher incerta e experiente na arte de vender aos assalariados que mês á mês colhia do cantineiro, do camionista que chegava ao mercado vender hortícolas e legumes, do armazenista que descarregava vagões de produtos contrabandeados, do mulungo do escritório.
    Descemos nos cânticos de alegria e no provoco dos inocentes que cruzaram caminho com os três assalariados.
    Mulheres expostas na rua como se de manequins das lojas fossem caminhavam em direcções incertas a vender o que entre as pernas lhes é sagrada.
    No silêncio dos homens atenciosos e na boca larga do Muzila ouviu-se uma frase grave, aterrorizadora, inerte, grossa, má, que deixou os homens de verdade silenciosos, as mulheres da rua a vociferarem, os seguranças das boates a entrarem na zaragata.
    - Calma ai! Não foi isso que ele queria dizer e não se referia a senhora.
    - A quem dizia, eu ouvi, foi esse cão duma figa que disse.
    - Vais apanhar que nunca viste hoje, nos estão aqui a fazer a vida e tu se não queres nada fica em tua casa. Seu nquenho.
    - Pega ai, e vocês não se metam se não apanham também, leva o gajo para lá em cima. E vocês ficam aqui. Quem seguir apanha, juro mesmo. Este tipo vai aprender.
    Sumiu na escuridão da garagem daquele edifício. Fiquei lúcido. Pensei na polícia. Pensei em fugir. Pensei na milícia. Pensei.
    - Agora vás dizer de novo aqui que disseste na rua ou vás fuder com a malta.
    - Juro que não dizia a vocês.
    Gritos de dor, de tristeza, de amparo. Ninguém ouve. Fraqueza do homem.
    - Tira-lhe as calças e a camisa e a cueca se tiver.
    Nu. Amarrado contra dois postes de canalização de água ali colados a parede. Gritava. A primeira tirou a calcinha. Nua ia ficando. A outra apalpava-lhe o que o homem preserva. Outra metia um lencinho a boca para lhe silenciar. Apalparam-lhe. Acariciaram-lhe. Chuparam-lhe como se de rebuçado fosse.
    Ficou erecto mesmo com dor. Calou-se com lágrimas de medo.
    - Vais dizer mas aqui?
    Silencio mudo.
    A nua segurou-o e introduziu na miúda. Fez movimento que animais em cio, sentiu
    prazeres, gemiam na doçura do acto sexual. Ia perdendo o directo ao medo, ia perdendo o medo a vida, ia ficando com mas prazeres.
    Saiu e entrou a outra, mas brava na arte de satisfazer o cliente mexeu com tudo, sentiu sua vagina delirar, sentiu sua vagina amadurecer, sentiu o pénis fazer-lhe sentir o prazer da vida. Mijou.
    - Agora vai dizer aos teus amigos aquilo que você pronunciou na rua. Saíram de volta ao serviço. Feliz e ele enforcado com o sexo grátis.
    Teve medo de voltar a ver seus amigos, quando no fundo da escuridão ouviu vozes se aproximando em seu auxílio.
    - Então? O que te fizeram Muzila.
    - Sexo sem protecção.
    - Vamos a policia faz queixa, se te transmitiram o sida a força.
    Um ano depois enquanto Muzila cuidava dos seus afazeres, surgiu uma mulher com meia-idade, a cara era linda, o vestuário a medida. Perguntou quando custava o produto olhando para a prateleira ao lado.
    Quando os olhos se cruzaram, Muzila ficou minutos a discernir suas lembranças.
    - Conheço a senhorita de algum lado.
    - Todos me conhecem.
    - Mas não me recordo.
    Pagou a conta e saiu. Minutos depois Muzila seguia para confirmaram o local.
    - Desculpa senhorita, trabalha na baixa da cidade?
    - Onde?
    - Desculpe, na rua!
    - Sim, porquê? Já estivemos juntos.
    Silêncio.
    -Sim, recorda do jovem que a um ano foi obrigado a fazer sexo por ter ofendido três senhoritas e os homens todos ali presentes ajudaram-nas.
    - Sim lembro-me.
    - Sou eu!
    Silencio. Olhares. Perguntas por fazerem-se.
    - Como está?
    - Casada há 6 meses com um estrangeiro e mãe de um bebé de três meses.
    - A tua amiga que também me possuiu.
    - Morreu!
    - De doença?
    - Não foi isso que levou a te possuirmos, de desconfiar que nos éramos umas cheias de SIDA.
    - Foi!
    Poesia e Contos de Autores Africanos moçambicano (n.1962)

    Antônio – o menino e o silêncio


    Neide Medeiros Santos - Brasil*
    Neide Medeiros

    As palavras são portas e janelas. Se debruçamos e reparamos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancamos as portas, o enredo do universo nos visita.
                ( Bartolomeu Campos de Queirós)

    “Heróis contra a parede – estudos de literatura infantil e juvenil”  (Cultura Acadêmica, 2010), livro organizado por Vera Teixeira de Aguiar, João Luís Ceccantini e Alice Áurea Penteado Martha trata de assuntos delicados que costumam ser relegados pela crítica.
    No prefácio, Lígia Cadermatori afirma que os textos, compostos com diversidade de assuntos e falados por vozes autorais, não se esquivam de enfrentar temas árduos. “É uma leitura provocativa de representações de crianças e jovens de nosso tempo, postos contra a parede pelas mais diversas e lancinantes razões, e o encontro com questões que hoje se impõem na pauta das discussões do gênero.” ( 2010:p.10)
    Preconceito racial, pedofilia, abuso sexual, violência, bullying, todos esses assuntos são tratados de forma muito séria por escritores e ensaístas. Nada é apresentado de forma velada. A realidade da ficção e da vida é mostrada sem subterfúgios. Os temas apresentados  estão muito presentes na produção literária contemporânea e este livro procura oferecer uma “contribuição significativa “ para todos aqueles que lidam com questões ligadas à infância e à juventude: professores, psicólogos, bibliotecários, educadores de um modo geral.
    “Antônio” (Escrita Fina: 2012), de Hugo Monteiro Ferreira, escritor pernambucano, trata de um desses temas – o problema da pedofilia. De forma muito sutil e simbólica, o narrador introduz um personagem ( uma mão) que era grande, forte, que segurava em Antônio e o impedia de falar.
    De quem era essa mão tão possessiva? Como agia? Há apenas sugestões, o menino silenciava, não contava nada a ninguém, mas aquela mão o atormentava, ela sempre aparecia nas horas que os pais se ausentavam.
    Mesclando o medo de Antônio da mão, que era uma espécie de “bruxa malvada”, a narrativa segue outras direções: há histórias contadas por Olga, a babá que cuidava do menino com desvelos de mãe,  e  histórias contadas pela professora na escola. Interessante que essas histórias tinham sempre um desfecho trágico. Olga trazia o relato de “A menina enterrada viva” e a professora “O soldadinho de chumbo”.
    Quando ouvia a triste história da menina que foi enterrada viva, ele pensava: será que a mão seria capaz de enterrá - lo debaixo da mangueira que havia no quintal?
    Depois que a professora contou a história do soldadinho de chumbo, pediu que as crianças falassem o que sentiram ao ouvir a história. A maioria falou que ficou triste com a morte da bailarina e do soldadinho e que o escritor não devia ter deixado o final assim tão triste. Antônio ficou calado, nada disse. A professora sentiu que havia algo mais no silêncio de Antônio. No término da aula, chamou o menino  e perguntou:
    “ – Antônio, você quer me dizer algo?” (2012:41)
    E veio a revelação do menino:
    “ – Eu queria que o Tio não tivesse mão. Se ele fosse feito o Soldadinho, ele não fazia o que Le faz. Só que o soldadinho não tinha perna, mas o Tio é pra não ter mão.” (2012:41)
    Com esse diálogo entre a professora e Antônio, estava desvendado todo o medo e o silêncio contido do menino durante tanto tempo. A narrativa prossegue, a babá tomou conhecimento do poder nefasto da mão, os pais também, e todos reunidos  encontram uma solução para o caso.
    Em entrevista concedida pelo autor, ele afirmou que escreveu este livro como alerta para as crianças aprenderem a se  defender das mãos bobas que andam fazendo mal, muitas vezes disfarçadas no  meio da família, nas escolas, em locais que não imaginamos que elas possam estar.
    Não poderia de deixar de fazer referências ao trabalho ilustrativo de  Camila Carrosine – Antônio é retratado sempre com os olhos assustados e a mão é escura, tema a aparência de uma  mão de fantasma, aparece como uma sombra nas paredes.  
    Este livro de Hugo Monteiro Ferreira apresenta um “herói contra a parede”. Seria um livro meramente didático se não fosse o tratamento literário dado pelo escritor ao tema. As coisas vão se revelando lentamente, sem atropelos, sem causar impactos.
    As recorrências aos contos infantis – ‘ A menina enterrada viva” e “ O soldadinho de chumbo” foram elementos motivadores para o desvelamento do problema que tanto afligia o menino. 

    *Neide Medeiros Santos é Crítica literária FNLIJ/PB

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