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    O que há para celebrar quando o presente é oposto ao passado?

    Japone Arijuane - Moçambique



    A

     Celebração é, e deve ser, considerada e concebida como o momento alto de uma satisfação interior e exterior; individual ou colectiva. Uma satisfação de cumprimento de uma dada tarefa, luta ou mesmo um desafio; a mesma deve ser encarada com o espírito de missão cumprida. Sendo esta o auge de uma satisfação, deve habitar no interior de toda colectividade contemplada; de todas as individualidades chamadas a celebrar e, nesses moldes, que seja uma celebração sem vencidos e sem vencedores. Não se pode celebrar em nome de famílias enlutados, e muito menos, em nome das vítimas e vitimados; se não, melhor uma reflexão em vez de celebração. Os momentos de reflexão que hajam, quando assim exigirem. E a celebração não seja pela quantidade de anos passados, sem que nestes anos algo se tenha feito para comemorar. A celebração, que seja pela quantidade e qualidade de desafios, tarefas ou lutas ganhas em menor espaço de tempo.
    Passam-se neste mês o 125º aniversário da Cidade de Maputo, será que nós os citadinos desta urbe somos dignos de uma celebração?, ou de uma profunda e colectiva reflexão? E se for celebração, o quê que estaríamos a comemorar?
    Ora vejamos, meus caros maputenses, a demanda demográfico esta cada vez mais incontornável, e esta sem acompanhamento infra-estrutural; como consequência a falta de habitação tornou-se o pão de cada dia; a falta de saneamento do meio, a intransitabilidades nas das ruas, a marginalidade gritante das famílias de baixa renda; que como causa e efeito sobe incansavelmente o índice da “pobreza urbano”, mendicidade, a violência etc. O cancro dos transportes urbanos, hoje municipalizados; mas, mesmo assim, cada vez mais grave a falta destes. E sem esquecer-se dessa questão que já tem carapinhas brancas, a questão do lixo na cidade; que por ser tão grave e crónica alguns fingem em não ver. E o que dizer do elevado consumo de álcool da juventude e não só; que, quando ébrios além de regarem as acácias a urinol, brincam de rali nas vias públicas e mancham indelevelmente as as mesmas ruas a vermelho. A prostituição que antes era na rua do bagamoyo, hoje várias esquinas foram abertas, novos postos se formam em qualquer esquina da “cidade”. Caro munícipes o que há para celebrar? O parque imobiliário do Zimpeto?, cujas casas da vila olímpica que antes mesmo de dois anos clamam o final do jogo? Há desertificação dos jardins, - sem comentários ao zoológico, aliás zoo-ilógico.
    Alguns distraídos, como uma vez alguém chamou opostamente os lúcidos deste país, dirão que celebram as novas construções dentro da cidade. A questão é: aquém beneficiam estas construções?, aos citadinos comuns feito eu e tu?, ou os outros? Estes que mais para além da distracção, dirão o projecto da circular de Maputo, que inclui a ponte sobre KaTembe, não acham ser sedo de mais para celebrar um jogo ainda por jogar?, lembrem-se da memória tão fresca do massacre de Marraquexe. O que celebrar?, a nova subida, sem pressupostos básicos, dos preços dos transportes públicos?, e desta que celebração esperamos? Não será esta semelhante que se deu nos dia 2 e 3 de Setembro?
    Meus caros munícipes desta cidade das acácias urinadas, acham que temos motivos de celebração? Porque que, além de celebração, não chamarmos esta data de reflexão? Reflexão dos 125 anos de um lugarejo de dificuldades, cujo nome é Maputo? Não acham se continuaremos a chamar desta data de celebração haverão vencidos e vencedores? Ou mesmo derrotados e ganhadores? Que haja honestidade!

    O Injectável

    Dany Wambire - Moçambique



    Há doenças que em nós vivem só por questão de fé. Acreditamos religiosamente que por elas estamos assaltados. E para tal, a cura é do nosso conhecido desejo: um determinado fármaco ou tratamento. Ai daquele médico que ouse prescrever o diferente! Por mais que o fármaco ou tratamento seja eficiente, capaz e eficaz, não cura o paciente.
    Em Fim-de-Mundo, pelo menos conheço um com esses hábitos. Ou melhor, com essas doenças. Ele é quem conhece o remédio da sua doença. Sim! Digo, mas não em abono da verdade. Até a doença mais recente dele veio há dias, que deixou o Hospital Periférico de Fim-de-Mundo à rasca.
    Antes, em plena tarde dominical, todas as pessoas viram o vizinho doente, de nome Zecarias Gostavo, a contorcer-se de dores múltiplas. Depois, o corpo dele pedia mais calor, porquanto a doença lhe engendrava frio. E todos saíram a socorrer esse Zecarias Gostavo. Lhe administraram alguma poção de plantas domesticamente preparada, de acordo com os sinais e sintomas da desconhecida doença.
    Passaram-se dias, a doença não se evadia do seu corpo. De livre, mas não de espontânea vontade, pedia prisão no corpo dele. Não lhe importava acelerar julgamento. Ela trataria de fazer justiça pelas impróprias mãos caso a justiça demorasse, matando o doente e a ela mesma. Sim, no homicídio ocorreria o suicídio, em concomitante.
    Se com os conhecimentos da medicina verde, a doença não passava, no hospital seria diferente. Esse foi o pensamento de muitos, depois de lhes fracassar a primeira tentativa. E lá foram, com o doente Zecarias. Rapidamente diagnosticaram-lhe a doença. De pequenas irritações sanguíneas se tratava, que podiam ser tratadas com comprimidos de forma comprida, e com injecção de forma breve.
    A aplicação da injecção estava descartada. Pois, Fim-de-Mundo debatia-se seriamente com problemas de medicamentos para injecções em farmácias públicas. Mas as privadas farmácias tinham-nos em superabundância. Engraçado! O negócio evoluiu: os privados passaram a ser mais fortes que o Estado.
    Então, deram os comprimidos ao doente Zecarias Gostavo. Aliás, tudo dava no mesmo. Era questão de tempo e cumprimento com o tratamento. Em breve tudo estaria controlado e Zecarias pronto para trabalhar estaria. Apenas a sua esposa é que se mantinha céptica, depositando desconfianças naquele tratamento. A seguinte crença, ela guardava: a doença desapareceria, mas o marido pioraria.
    Dito e desfeito, o Zecarias piorou mesmo depois de consumir os fármacos prescritos. Ordenavam-se novas intervenções: de hospitais com melhores condições.
    Transferiram-lhe para o maior e melhor hospital da cidade. De novo, administraram os comprimidos ao paciente, agora impaciente, porque lhe queriam internar no hospital. Como se ele fosse o pior doente de Fim-de-Mundo. Passaram-se muitos dias e Zecarias não melhorava.
    Foi então quando este Zecarias pediu para falar com o médico.
    ― Doutor, minha doença cura com injecção.
    ― Os comprimidos que lhe demos têm mesmo efeito que o da injecção. Não podemos lhe aplicar o mesmo medicamento, pode haver riscos fatais.
    ― A minha doença não é derrotada por comprimidos, doutor. Não se importe com os riscos. Qualquer um corre riscos, por isso nas empresas há subsídios de riscos.  
    Que fazer? Doentes desses são intratáveis. Mas a prática ensinou-lhe outra ciência, a da mentira. Então, ele tomou numa seringa e fingiu estar a introduzir qualquer medicamento. Ele enchia aquele instrumento não era senão de água, que no seguido aplicou-a no traseiro de Zecarias Gostavo.
    E o resultado: ele já estava melhor e a trabalhar. E para os que o vinham visitar, o agradecimento era imedível.
    ― Melhorei graças àquele médico que me deu injecção.

    AFRICANIDADES: O regresso de Mario Vargas Llosa à retórica falaciosa

    Victor Eustaquio - Portugal



    C

    hegou-me às mãos o mais recente livro de Mario Vargas Llosa editado em Portugal, o ensaio «A Civilização do Espetáculo», dois anos depois do romance «O Sonho do Celta», no qual o autor peruano escrevia qualquer coisa como isto: «A independência nunca é concedida a bem. Tem de ser arrancada através de uma acção política e militar, à custa de grandes sacrifícios e heroísmos. Assim conseguiram a sua emancipação todos os povos livres da Terra»
    Neste novo, o Nobel da Literatura reúne vários textos apontados pela editora portuguesa, a Quetzal, como uma “radiografia duríssima (…) do nosso tempo e da nossa cultura”, a começar pelo primeiro onde escreve qualquer coisa como isto: «A banalização das artes e da literatura, o triunfo do jornalismo sensacionalista e a frivolidade da política são sintomas de um mal maior que afeta a sociedade contemporânea: a ideia temerária de converter em bem supremo a nossa natural propensão para nos divertirmos. No passado, a cultura foi uma espécie de consciência que impedia o virar as costas à realidade. Agora, atua como mecanismo de distração e entretenimento. A figura do intelectual, que estruturou todo o século XX, desapareceu do debate público. Ainda que alguns assinem manifestos e participem em polémicas, o certo é que a sua repercussão na sociedade é mínima. Conscientes desta situação, muitos optaram pelo silêncio»
    Distantes no tempo, ainda assim não muito, e aparentemente sobre assuntos diferentes, as duas reflexões têm um denominador comum: a ideia de que, a bem, o mal não é erradicável.
    Se quem subscreve que a libertação de algo que nos oprime “tem de ser arrancada através de uma acção política e militar”, e afirma depois que a figura do intelectual “desapareceu do debate público” e que a acção deste “não tem qualquer repercussão6 na sociedade”, mais não está do que a convidar à sublevação da “alta cultura”, a erudita, conjunto de saberes ao qual acedem apenas as elites (as mesmas que, aliás, Vargas Llosa refere mais à frente). Dito de outra forma, e continuando a seguir o raciocínio do escritor peruano, perante “este mal maior que afeta a sociedade contemporânea”, é urgente que a “classe” erudita, ou seja, aquela que melhor conhece as respostas mais eficazes para satisfazer as necessidades e os desejos humanos – e eis aqui uma definição possível de cultura – promova uma intervenção violenta, porventura de ruptura, mesmo que “à custa de grandes sacrifícios e heroísmos”, pois só “assim conseguiram a sua emancipação todos os povos livres da Terra”.
    Porém, fica a dúvida: que tipo de intervenção e com que grau de violência? E mais: visando que tipo de efeitos?
    É que não é difícil concordar com Mario Vargas Llosa em matéria de diagnóstico: é verdade que assistimos à banalização das artes e da literatura; é verdade que vivemos com paliativos, vergados ao peso de mundo dominado e reduzido à distração e ao entretenimento, já que cultura também é informação (outra definição possível); numa palavra, é verdade que virámos as costas à realidade.
    Mas se o diagnóstico está correcto, o problema reside em saber como se trata esta doença, já que, até agora, tudo o que disse é de natureza empírica. Com efeito, podemos concordar com a evidência de que as artes, a literatura, o jornalismo ou a política se tornaram frívolos, que a “cultura” esvaziou-se de sentido prático, isto é, da capacidade de moldar a realidade, se sucede que esta nos incomoda e carece de uma intervenção que procure a mudança.
    Contudo, mudar o quê, insistimos, e com que efeitos? Até porque, primeiro, precisamos de chegar a consenso quanto ao que entendemos por cultura.  Estamos a falar de cultura material, a herança de saberes de que somos beneficiários, ou de cultura simbólica, a representação social dessa mesma herança, a que está nas nossas cabeças e que dita a forma como nos relacionamos com o mundo, que tanto difere de cabeça para cabeça?
    A problemática é tão complexa que, enquanto não for resolvida, todo e qualquer discurso que assente na interpretação empírica da mesma não passa de mera retórica. E esta é tão-somente a primeira armadilha.
    Se não nos entendemos quanto ao que se deve entender por cultura, como é possível entendermo-nos quanto à forma com que nela se deve intervir? A não ser que façamos como Mario Vargas Llosa e entreguemos o problema às elites.
    Esta não é a primeira vez que o Nobel da Literatura peruano tropeça em terreno minado. Porque se, em boa verdade, é defensor, ao que tudo indica, de soluções radicais de extermínio intelectual, está na hora de o assumir com frontalidade. É que diagnosticar é uma coisa, apresentar uma cura é outra.

    Ricos e pobres num mundo fragmentado

    Victor Eustáquio - Portugal


    África não se entende quanto à globalização, já se sabe. Mas se as elites africanas estão divididas, também fora do continente o tema não é pacífico quando se trata de discutir os efeitos de um mundo ligado em rede sobre os chamados países pobres do sul global. O problema é que por muitas paixões que alimente, a discussão da globalização é um equívoco. É certo que afecta todos os cidadãos do planeta, mas é um equívoco se o debate continuar localizado fora do que está já a jusante, nomeadamente a transnacionalização e, porventura, a hipótese de uma desmundialização. E mais: sem considerar que é na esfera económica que reside o princípio estruturante de toda a dinâmica social, política e cultural das sociedades, subscreva-se ou não o jargão marxista do materialismo histórico e teorias discutíveis como a estafada relação entre infra-estrutura e superestrutura. Em poucas palavras, e dito de forma simples, o desenvolvimento das novas tecnologias no qual se ancora o mundo ligado em rede conduziu a uma mutação acelerada das sociedades, tanto a norte como a sul, da esquerda à direita, entre ricos e pobres, e todos aqueles que andam perdidos pelo meio. Mas por etapas, embora sucedendo-se em catadupa, cada uma delas com claros sinais distintivos. É que, antes da globalização (e que não se confunda com a expansão imperialista que uniu e desuniu o mundo, pois esse foi um movimento de natureza diferente sem qualquer vocação global), o planeta conheceu o fenómeno da internacionalização, a possibilidade do capital procurar e conquistar novos mercados, até então distantes e inacessíveis, com todas as repercussões que daí decorreram para a vida das sociedades. Ora, o princípio da “aldeia global” foi uma consequência inevitável, mas não se esgotou nesse patamar. E aqui começa o mal-entendido. O capital internacionalizou-se, globalizou-se, mas também se transnacionalizou. Por outras palavras, a globalização e a revolução digital puseram em evidência a possibilidade da transnacionalização através da reconfiguração dos mecanismos da reprodução do capital (que ficaram livres dos constrangimentos das fronteiras geográficas). E aqui reside o essencial da questão. É que se as novas tecnologias passaram a estar ao serviço dos cidadãos e das instituições públicas de organização e gestão territorial, soberanas ou nem por isso, também foram parar às mãos do sistema financeiro internacional e das grandes empresas multinacionais; numa palavra, às mãos dos non-state actors (NSAs), isto é, todos os actores e manifestações de poder que não têm o Estado como epicentro, que se movimentam a jusante dos constrangimentos formais do Estado, ou seja, das fronteiras geográficas que ditam os limites da soberania nacional. A emergência dos NSAs, que actuam num espaço transnacional, bem como do conjunto de novas escalas de valores e normas, difundidas à escala global de forma transnacional, põem em evidência vulnerabilidades diferenciadas entre os Estados tradicionais e novos desafios à actuação destes. De resto, estas novas forças transnacionais, enquanto actores sociais, são tanto legítimas (como os poderosos grupos financeiros internacionais) como ilegítimas (de que são exemplo as organizações terroristas e criminosas). E, por vezes, é difícil encontrar uma linha que as separe. Acresce à acção destes novos actores, a mudança estrutural imposta pela difusão de novos valores e normas, que tendem, nalguns casos, a institucionalizarem-se como uma espécie de regimes virtuais. Neste contexto, a qualidade da regulação e gestão territorial, com a imposição de regras e limites, assume uma natureza crucial porque se transformou numa medida de poder, a capacidade de um actor impor a sua vontade sobre outro ou outros actores, concretizando-a, regra geral, num sistema institucionalizado. Contudo, se as novas tecnologias estão ao serviço e nas mãos do sistema financeiro internacional e das grandes empresas multinacionais, são estas pois que melhor conseguem instrumentalizar os media e ditar as regras da sociedade de informação, impondo gostos, modas, estilos, estratégias, políticas, controlando todos os espaços de poder de forma transnacional (sempre com a possibilidade de deslocalizações fáceis), enquanto os Estados e todas as tradicionais instituições de soberania de cada País (presos a territórios e fronteiras físicas) caminham para a sua impotência e caducidade. Resta saber que papel lhes resta, depois de terem mostrado já ser incapazes de negociar, em paridade, com o capital privado internacional. Um sério desafio a que acresce outro: num mundo ligado em rede, vivemos sob a ameaça de problemas que deixaram de ser nacionais e que dificilmente encontram resposta nas soluções propostas pelas organizações supranacionais, na ausência de um hipotético Governo à escala global. A recessão da economia mundial, a crise do crédito e financiamento, a crise energética, a crise de segurança, as mudanças climáticas e os novos problemas de saúde mundial são disso alguns exemplos.

    RETALHOS: Ximatanini ou nossa Praia Landinha


    Eduardo Quive - Moçambique


    Meu Deus, quanta água! Muita água! Em todo canto é só ver água e mais água! Tudo se transformou no tão precioso líquido! Vejo gente a bailar nos braços da chuva grande. Eu e Netinho saímos escalando esse mar que os céus cinzentos nos trouxeram no pobre Patrice. Chamamos Simone e Pala. Corremos descalços de calções e sem camisa galgando a terra que se fartava de tanta água. O chão prostrava-se perante o poder de quem está lá em cima. A minha mãe dizia que é Deus. Deus no céu e diabo em baixo das areias do bairro, mas quando fazíamos covas para construir as casas dos nossos palitos, representando aquilo que éramos, ou o que seríamos, lembro-me, aparecia um bichinho gordo que auto locomovia-se rastejando. Aí os mais velhos diziam é “nwinho wa missava”. Dono da terra. Aí mais uma coisa, as areais do meu bairro afinal não eram em que se encontrava o diabo! Então ficávamos felizes.
    A chuva mesmo seria a única barreira para as nossas brincadeiras, mas em vão. Enquanto ela caía eu ainda dentro da casa espreitando cobiçosamente ouvia malta Djossefa, Lulu, Florêncio e outra rapaziada, a cantar “treinador Maxaquene, Treinador Maxaquene”. Cheio de vontade de aliar-se àqueles amigos filhos do tio Pedro e tio Luís que o meu pai chamava-o Ndondondo porque bebia muito Tontonto (três palavrinhas), ao ver os rapazes brincar nas águas da chuva enquanto o tronco estava exposto aos pingos.
    Olhava para o chão quase com as lágrimas a cair e via na minha mão a ameaça de que se saísse, ia apanhar. Mas sempre dá um jeito quando Netinho entrasse em casa. Ele inventava qualquer coisa mas fazia a casa cuspir-me para fora. Aí saímos ambos de calções correndo para lá das bandas do tio Zefanias o pai de Pala onde tinha um tubo que tirava a água das caleiras. Era mesmo bom sentir aquele bater forte das águas da chuva nos nossos corpos. Uníamo-nos todos meninos, eu, Netinho, Simone, Lulu, Djossefa e Florêncio. Corríamos toda rua a fora. Depois pulávamos para as bandas do Singathela onde por causa da força dos pingos e da pequena ventania oportunista, todas as mangas caíam por terra. Apanhávamos aqueles frutos silvestres, mesmo na casa da professora Rossana onde tinham as mangas mais doces. Mas era tudo escondido, aí saber correr era um factor importante.
    Mas o pior mesmo, foi o dia que fomos conhecer a nova casa de Netinho, onde tio Pedro, seu pai, com salário de miséria como professor da escola primária, investia tudo para saírem da rua “O” e viverem felizes em família. O bairro onde morariam chama-se Ndlavela, fica depois de São Dâmaso. E é por lá onde tínhamos a nossa praia Landinha, uma porção de água cercada de terra. Mas não era assim que diziam os mais velhos, chamavam de “mati ya ndabi”, água que vem das cheias. Cheias de 2000. Mas nós não tínhamos esses preconceitos com aquela praia solitária que se instalou para nós meninos pobres do bairro onde tinha tudo, ladrões, sarnas e bilharziose, malária, diarreias, gonorreia e TB aos mais velhos. Agora também eclodiu nova doença. A gravidez.
    E íamos correndo ao Ximatanini como também chamavam. Dias de calor após quase um mês de chuvas torrenciais que encheram-nos as casas, as ruas e até as vidas. Na escola já não íamos a tempo e eram nossas ferias aquelas que as chuvas nos deram. Netinho que era mesmo bom das espertezas pediu-nos que o acompanhássemos lá para nova casa deles.
    Chegamos a praia Landinha e ainda a distância vozes de meninos que gritavam de alegria. Aí corremos ainda mais. Tiramos as camisas e as calças, ficávamos de calções ou mesmo de bicho fora sem temer as diferenças. Praia Landinha estamos aqui hoje nós da rua “O” e queremos tomar banho nas suas águas onde dizem que morreram muitas crianças. Nós que te somos solidários perante as injustiças que as pessoas te dão para não seres reconhecida como nosso Ximatanini onde banharemos os nossos troncos. Onde mulheres com bebés nas costas vem lavar as roupas que sujam na vida.
    Ah! Que saudades daqueles tempos em que os trópicos ardiam sob a nossa pele negra, indefesa do intenso calor típico de Janeiro e Fevereiro e lá no Ximatanini aquela praia de negros e mulatos pobres do subúrbio, afogávamos as nossas diferenças sem história!
    Horas passavam despercebidamente no banho da Praia Landinha. Entrávamos e saíamos correndo e gritando. Éramos felizes e confidentes com o nosso Ximatanini lá do Ndlavela. Só quando a noite começa a ameaçar chegar nos recolhemos, trémulos e mulatos de tanto banho.
    Mesmo com o cessar da tarde evidente, restavam vontades de continuar na alegria de Ximatanini que já era a nossa praia Landinha. Voltávamos a correr para casa como sempre gostávamos. Uma provocação a outros meninos dos bairros que passávamos agitava-nos ainda mais. Corríamos apressados para a porrada que receberíamos em casa. Ou pelo menos eu e Netinho. Já na rua, ainda na entrada chegavam-nos as vozes do medo. Gulherme, irmão mais novo de Florêncio é que vinha a correr para chamar-nos atenção do que nos esperava. Mas eram apenas ameaças de quem não podia afogar-se naquelas águas. Tudo em vão, a praia era nossa e nós tínhamos que nos banhar nela.

    O PASSO CERTO NO CAMINHO ERRADO: Crise como Oportunidade

    Nelson Lineu - Moçambique



    O homem pode transformar obstáculos em meios para atingir os seus próprios fins.
    Francis Bacon

    Para Abel e Marcos era impressionante como os jornais, rádios, telejornais entre outro meios de comunicação social falavam da crise financeira que se quer mundial em Moçambique; em vez de alarmante a notícia chegava num tom parecido com tudo menos melancólico; como se tratasse de igualdade com os países que estavam verdadeiramente em crise - digo verdadeiramente porque foi lá onde se criou essa situação e nós como pedra vamos para onde nos lançam -, como que finalmente existisse algo íntimo que nos ligasse de verdade com esses países. O pensamento vinha desse modo porque partilhar as dores muitas vezes é mas sincero, verdadeiro e instrumento eficaz para a união.
    Ambos estavam sentados no seu local habitual, de baixo de uma mangueira, onde poliam as suas ideias nos finais de semana, assim como este. Podia-se ouvir a conversa do outro lado do muro, numa barraca. Queriam estar lá mas não podiam, de um lado por não beberem, que era a condition sine qua non. Abel não podia beber por questões de saúde e Marcos porque não podia usar o seu salário que era mais magro que ele para tal. Por outro lado era porque a conversas dos ocupantes das cadeiras da barraca eram mesquinhas, segundo eles, assentavam-se mais em lamentações e reclamações.
    É peremptório referir que eles ficaram amigos por necessidade e só eram no final de semana. Das vezes que frequentaram a barraca eram motivo de zombaria, traziam ideias ou propostas para acabar com aquelas lamentações. “Se nem os governantes e pessoas estudadas não resolviam os problemas, quem eram eles? Tinham que cair na realidade”, ouviam da boca dos legítimos ocupantes da barraca quando não estivesse ocupada com o copo. Para esses a culpa não era do governo, tanto que as coisas eram assim porque tinham que ser, quem seria insensível até ao ponto de ver as coisas como estavam, podendo e não fazer nada, ficando no luxo da sua casa?! A conversa dos dois naquele sábado como apontado a cima era por causa da crise, essa era a posição de Abel: - Não nos sentimos piores porque como os outros países estamos em crise. Como os outros, Abel ficou assustado quando alguém do Governo deu-se o trabalho de dizer que a crise não nos afectaria, mas mais tarde a mesma pessoa fez o não dito pelo feito.Com a desculpa de que só tinha dito aquilo para não nos alarmar. - Quanto a mim é nessa desprotegida protecção que faz com que as crianças em grande não consigam criar os seus próprios mecanismos de defesa – sentenciou, Abel.
    De tanto conversarem, as ideias de um não fugiam muito a do outro, cabiam um acrescentar algo ou tirar dependendo do assunto. Daí que o Marcos rematou: - A nossa crise vê-se que é por causa da diminuição das doações – já que o nosso estado soberano que é não consegue cobrir o seu orçamento - a nossa medida de austeridade não seria deixarmos de ser criança, isto é, crescermos criando os nossos mecanismos de defesa? Crise é um momento de transformação profunda que pode ser para pior ou para melhor, essa é a oportunidade. Pode ser que não tenhamos mais, e não nos queixemos como sempre desta vez por não aparecerem outras crises.
    cE � = s �߸ ��� tyle='margin-bottom:0in;margin-bottom:.0001pt;text-align: justify'>Em casa não parava. E sempre que o marido lhe exigia satisfações, ela prontamente respondia-o.
    ― Não me incomode se não, vou-te denunciar.
    ― Denunciar, fiz o quê?
    Peniscilina dizia que iria ao gabinete de atendimento à mulher vítima de violência doméstica para apresentar a queixa de que o seu marido, quando se envolvera com ela, há dez anos atrás, ela era menor, contando apenas com catorze anos de idade. Houve nessa altura violência sexual, acreditava ela.
    Você abusou-me e violou-me sexualmente ― ameaçava, bêbeda Peniscelina quando lhe apetecia.
    Não foi violência sexual, mas sim agressão sexual ― retrucava Salomau, concluindo no seguido, ― todo sexo é violento. Mesmo o consentido.
    Não paravam as discussões. Ainda, uma vez, Salomau seguiu a esposa numa barraca para que ela viesse à casa e tomasse conta do recado doméstico. E ela respondeu, com violência verbal.
    ― Por que me persegue? Não vês que eu não te quero?!
    ― Se não me quisesses, ias procurar feiticeiro para pôr-me na garrafa?
    E seguiam outros palavreados e palavrões, indescritíveis.

    CRONICONTO: Os vizinhos de lado

    Dany Wambire - Moçambique



    Pediram-me ou me ordenaram a escrever. Que eu pegasse mesmo na pena, pois, segundo eles, já tinham me visto, fingitivo, a traduzir vozes de certas almas, que ultimamente faziam do meu corpo, das minhas mãos, suas ilegítimas propriedades. E eu finjo e fujo, para não cumprir com as ordens destas almas que não conseguem pôr a escrito as suas inquietações e satisfações. Ainda, apresento falsos argumentos. Sim, me vou digladiando nas argumentiras.
    ― Vocês estão a me incriminar. Qualquer dia vou preso por causa das vossas declarações.
    Como era de esperar, ninguém se comove com a minha injustificação. Defendem-se, essas vozes, que há um direito que lhes assiste, o de liberdade de expressão. Que testemunharão a meu favor, caso qualquer indivíduo apresente uma queixa à justiça, se por mim entender-se ofendido.
    E se se deseja exemplo de alguém que este hábito tem, de encomendar escrita das suas inquietações, tenho Infelisberto Descansado. Este é quem ultimamente me vem bater à porta para lhe escrever a estória dos seus vizinhos de lado. Como o próprio Infelisberto diz, esses vizinhos discutem em demasia, acima do anormal. Trinta horas por dia, coisa inaceitável.  
    Digo-lhe que não posso escrever este assunto, bastante sensível. Afinal, ele bem sabia que em assuntos de casais não se deve pôr a colher. Eu só escreveria caso o assunto transmutasse ao contrário, de sensível ao insensível. Mas ele insiste, dizendo:
    ― Não é caso de vida ou morte, mas o assunto merece um documento escrito.
    Não resisto. Não é meu forte recusar a pedidos. Gosto é desafiar ordens ou mandos arrogantes, e não a pedidos humildes. Então, fui escrevendo, traduzindo em escrito a voz deste Infelisberto.
    Começou por dizer que o seu vizinho, Salomau Maugente casou-se com a enteada, logo após a morte da mãe desta última, por sinal esposa desse Salomau. Os dois viveram juntos, enfrentando más-línguas. Peniscilina, a enteada, passou a ser em concomitante irmã, madrasta, mãe dos filhos de Salomau.
    Diz-se que tudo andava às maravilhas. Chegaram mesmo a ter muitos filhos. Coube ao primeiro receber um nome que fenecesse com todas más-línguas dos demais. O nome foi adoptado e adaptado em inglês: Letspeak. Queria-se dizer que pessoas podiam falar, mas essas falas não afectariam a sua relação. Muito pelo contrário: estimulava-os a ter mais filhos.
    Aconteceu, todavia, que ultimamente os problemas faziam constantes visitações à relação dos dois. Até melhor é dizer que os problemas foram aparecendo como se fossem os sangues que visitam às mulheres em cada mês. Peniscilina foi entendendo que a sua relação era incomum: ela separava-se do Salomau em idade a trinta anos. Sendo a maior para Salomau, obviamente.
    Frustrada, começou a beber álcool até acabar a decepção. Acabou a frustração, mas nasceu nela o gosto pela bebida, passando a fazer-lhe companhia no seu dia-a-dia. Quer dizer: no tremendo exercício de alívio da frustração, nasceu-lhe um vício.
    Em casa não parava. E sempre que o marido lhe exigia satisfações, ela prontamente respondia-o.
    ― Não me incomode se não, vou-te denunciar.
    ― Denunciar, fiz o quê?
    Peniscilina dizia que iria ao gabinete de atendimento à mulher vítima de violência doméstica para apresentar a queixa de que o seu marido, quando se envolvera com ela, há dez anos atrás, ela era menor, contando apenas com catorze anos de idade. Houve nessa altura violência sexual, acreditava ela.
    Você abusou-me e violou-me sexualmente ― ameaçava, bêbeda Peniscelina quando lhe apetecia.
    Não foi violência sexual, mas sim agressão sexual ― retrucava Salomau, concluindo no seguido, ― todo sexo é violento. Mesmo o consentido.
    Não paravam as discussões. Ainda, uma vez, Salomau seguiu a esposa numa barraca para que ela viesse à casa e tomasse conta do recado doméstico. E ela respondeu, com violência verbal.
    ― Por que me persegue? Não vês que eu não te quero?!
    ― Se não me quisesses, ias procurar feiticeiro para pôr-me na garrafa?
    E seguiam outros palavreados e palavrões, indescritíveis.

    CONTO CONTIGO: ...bem-vindo Doutor!

    Japone Arijuane - Moçambique

    Era uma tarde de Dezembro, o sol no auge dos seus afazeres; as senhoras estavam ali, por baixo da mangueira grande; local onde em tardes como estas deslumbra-se um cenário a capulana e ornamentado a fofocas, aliás, uma das funções mais célebres que gente dessa idade e sexo cumpre categoricamente. As crianças bem de tronco nu corriam por trás de qualquer coisa, desde rodas, arcos e elas mesmas. Perto dali localizava-se a estrada grande, - murampani. O miúdo, viera num aceleramento motorizado, com as mãos encenando o volante de uma motorizada, quando derrapou ao pé das mulheres, ouviu-se sermão, - não tens respeito...?, ele ainda não havia ganhado o fôlego. O papo ao ar das senhoras donas de casa parou no ar, na esperança de ouvirem um justificativo que seja, do tamanho afronto a idoniedade, esbugalhadas olhavam para o miúdo que, como uma galinha procura sustento ao papo, procurava ar para tira as palavras. Quando o mwanamwana pensou que disse algo afinal só havia gaguejado e tanto. O aspecto do miúdo agastava mulheres, aquelas senhoras de idade e responsabilidade alheia, pois quando se é mãe nada tranquiliza as mulheres se não o sosego dos filhos; as mães não vivem suas vidas, mas a dos seus filhos. - Tia… tia Odete... mano Doutor Afonso vem aí... As mulheres precisaram de um tempo para descodificaram a soletração do miúdo, mesmo assim se desfizeram da esteira. A dona, a tal tia Odete, foi a primeira a manifestar um gesto de percepção. Camafulada de intuição feminina; retirou-se dos aposentos, a capulana nas pontas dedo; como se, de uma população de formigas se trata-se, correram uma atrás da outra; no mesmo gesto de uma bengala a tactear o chão. Todas dirigiram-se a estrada, seguindo aqueles olhares cegos de alegria. Lá vinha o Doutor Afonso, agora Doutor, os dentes a substituírem os lábios. Dana Odete reconheceu seu Doutor, bem Doutor; como sempre o quis que fosse assim, estava ele ali vindo; uma pasta nas costas e uma mala na mão. Descera do nguinga-taxi apouco. Guardava a mesma fisionomia que levar a onde hoje vem. A dona Odete parou boquiaberta, lembrando-se do dia que o vi partir; ainda vinha-lhe a lembrança do dia em que teve-o pela primeira vez nas mãos e como era, tão pequeno e meigo seu projecto de triunfar. Não foi por acaso que o baptizou de Doutor logo a nascença. Na altura o país todo vivia uma proliferação do ensino superior, surgiam universidades de noite para o dia, como cogumelo em épocas pós-chuva; surgia e pronto, do nada; e por vezes incógnitas. O nome Doutor era moda, alastrou-se como uma praga de gafanhotos em machambas de arroz, quanto menos se esperava aí estava um doutor, sujo gordo, mas um doutor. Nesta altura bastava só frequentar o ensino superior. Não interessava o curso muito menos o ramo para se ser Doutor. A Odete estava no quinto mês de gestação, quando foi convidada a participar na festa de graduação de um conhecido; um conhecido que quando estudante conhecido por nada ter, além dele mesmo; a pobreza era o que o caracterizava. A partir do dia da graduação a vida mudou, não precisou de seis meses para ter carro e casa própria. Foi a partir desta experiência que a Odete forjou o nome para o seu feto, antes mesmo do mês da luz, o bebé já era Doutor. No décimo segundo mês, as mulheres gritaram -...Bem-vindo Doutor. Na verdade Afonso foi o nome que depois do doutor ter noção das coisas se auto-cognificou, para evitar os berros, mas mesmo assim. E como Afonso doutor não soa bem, ficou Doutor Afonso e vulgarizou-se. Rezam os factos que, um dia, uma família precupadisimaveio a procura do Doutor, feito o inquérito, um membro da tal família padecia de uma doença rara; quando a dona Odete fez presente o seu Doutor, no meio de tanta patologia houve um momento cómico. O doutor Afonso, cresceu sabendo do bem o seu propósito na terra, fazer-se verdadeiramenteum Doutor; ingressar em qualquer ensino superior, esse era o passo certo. Pois quando se interioriza algo, facilmente é a sua exteriorização; a fé mais uma vez mostrou seus dotes a realização, logo que fez o ensino secundário o doutor seguiu sua sina. Foi bem na capital da país que o Doutor foi fazer-se doutor, onde o mesmo viveu durante cinco anos, nos quais nunca havia regressado até então. Quando a dona Odete o tocou as mãos, torrencialmente as lágrimas inundaram o rosto, as outras mulheres melancolicamente reassentavam-se delas mesmas para dar lugar o entusiasmo, aproximaram-se e em coro: Bem-vindo doutor.

    RETALHOS: De madrugada morreu Mpudzuini


    Eduardo Quive - Moçambique


    Plazz…!!! Mais uma daquelas suas tossicas matinais, estendido aos primeiros raios solares. Hoje é até justo. É manhã de Julho, faz frio em Mapulanguene, mas nem por isso, madala Sope sempre fora assim.
    Aos 87 anos de idade, vive os seus quase quarenta anos de solidão sem arredar o pé daquele banquinho de madeira, com o cobertor sobre os ombros, única herança de outra velhice.
    Passam anos Sope sentado por cima do tempo, as rugas já não são de reclamar, rematiz à mistura do cansaço da vida que não passa para outras esferas já o sossegam como mero sobrevivente.
    Desde tenra idade o velho Sope partilha os dias com o silêncio de gente, barulho das aves, saudades e escarros que são o seu único romper da voz que se cala desde tempos do seu avô. Faz 37 anos que Mpundzuini, seu filho, morreu. O infortúnio deu-se numa escura manhã de Março quando um grupo de homens e mulheres invadiram o dormitório de Mpundzuini acusando-o de roubo de seis patos lá para outro lado do povoado.
    Tão sedo para sua idade, Mpundzuini viu a morte a visitar-lhe na madrugada de um dia que se quer estava ao alcance dos seus ancestrais como destinado o seu fim. Os populares que vinham na fúria da desgraça implantada pelo jovem filho de Sope, sem delongas puseram-se a destruir a cabana onde dormia Mpundzuini, repescando-o de seguida para fora. Daí, seguiram-se vassouradas, pedradas e socarias. Esbofeteavam e insultavam o jovem tido como ladrão.
    O velho Sope apercebeu-se da confusão que se instalara no seu lar sempre sossegado, ainda saiu a gritar que os vândalos parassem, mas era já sem força na sua voz que sempre foi roca. Tossiu e rebentou gritarias, mas não deu em nada. A povoação vizinha estava toda ela intolerante. Como podia lhes roubar patos naqueles tempos de fome à mistura do deixa andar que lhes permitia fazer justiça com as próprias mãos!
    Mpundzuini ainda olhou para seu velho pai atordoado pelo cenário que vivenciava. Sope viu o seu filho sentenciado a morrer de espancamento, ainda que lhe dessem a justa oportunidade de dizer ao menos se cometera ou não o tal delito. Mas não, que tem a falar um ladrão? E ai de quem ousar a defendê-lo.
    Encravado entre a sova dos homens descamisados em pleno cinco da manhã e das mulheres de capulanas até ao cimo da barriga e bem amarradas, tão jovem que era, Mpundzuini amanheceu espatifado e gritando por dentro que não entende o que se passa.
    Lá para o centro do povoado, mesmo defronte à casa do régulo, foi feita uma cova onde seria depositado o corpo do hoje julgado ladrão de patos e sem direito à recurso, condenado à morte. De vistas com a cova o velho Sope que seguia a população agressiva para com seu primogénito, sentiu um parto no coração, manchas de sangue sobravam-lhe no rosto que através dos olhos já tinham a certeza do fim que o filho teria. Aquela cova não era para ser sepultado o Mpundzuini, era sim, para enterra-lo vivo.
    Foi tudo em fracções de segundos. Enquanto a escaramuça persistia, um grupo de homens já tinha preparado a cova que estava na forma horizontal. O outro grupo que vinha doutro lado com o jovem a ser espancado por todos, arrastando-o para aquele sítio, já sabia do que se seguia. Meteram-no na cova que cobria todo seu corpo de pé e de seguida, desataram a enterrar o buraco. Era o fim do castigo que um ladrão que põe fome no povoado merecia.
    O velho Sope ainda lembra-se desse trágico episódio da sua vida e por isso, tosse sem mais algum interesse. Se lhe vem mais um ou dois copos de Uputsu pouco lhe preocupa, que verdade os homens têm para lhe oferecer que lhe possam doar tanto que ver o único filho a morrer de pé, clamando justiça, olhando para seu velho pai tão inútil para salva-lo para morte ainda em vida? Pensa e relembra o velho sem verter nenhuma lágrima. Que dor maior havia por chorar naquele momento em que já 37 anos passavam?

    O PASSO CERTO NO CAMINHO ERRADO: Fala, silêncio e tom


    Nelson Lineu - Moçambique

    Maratona-mo-nos todas as vinte e quatro horas, a meta é alcançar um problema
    uma mão sujando a outra o vencedor é quem detecta
    mais dificuldades em nós; ao atingir a meta
    dissemos é para quem de direito
    que podem ser todos
    menos
    nós.

    E sta maratona descrita por mim é o cenário que vem nos caracterizando em todas esferas do nosso quotidiano. Precisamente aos artistas, aos analistas da praça, aos políticos - incluindo os governantes -, mais parece estarmos a lutar para encontrar problemas do que propriamente resolvê-los ou procurar mecanismos para tal, aceitaria até com palmas se ao menos os novos problemas fossem soluções dos anteriores. Há que definir o que é problema? E para quem é? As indagações deviam servir para abrir caminhos – o contrário do que se tem feito actualmente: servem de pedras, fechando ou tornando o caminho estreito, a maior parte das vezes intransitável com armadilhas que interpretam-nos como imagem no espelho a frágil democracia, enfraquecendo deste modo os nossos instintos de sobrevivência. Mas também como André Maurois penso que sem espírito crítico nenhum homem se pode considerar livre.
    Para esta edição coube-me o desafio resistível, de escrever sobre a AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos). O desencanto é porque quando desembarco nesse barco-escrita a corrente da água deixa-se levar pela admiração, espanto ou indignação. Nesse caso nem uma, nem as duas coisas. Nietzche diz que não devemos ser médicos dos incuráveis. Será que estamos perante esse caso? Será que esse é o motivo do meu pouco entusiasmo?
    Não se trata de optar pela indiferença, pelas minhas posições em certos fóruns em relação a AEMO, o meu silêncio até aqui pode deixar a desejar. Uma vez sobre o silêncio num poema escrevi: “o silêncio também é música, sendo música: mal tocado cria ruído” É caso para dizer que quando se trata da AEMO actualmente, calados ou não o tom é alto - (um adjectivo por caridade). Mas não vou terminar sem partilhar um episódio:
    “Certo dia, numa palestra organizada pelo Movimento Literário Kuphaluxa – uma das actividades do em que um escritor faz uma apresentação com o tema: por que ler? - Um estudante perguntou ao orador que por sinal já foi secretário-geral da AEMO: Com quantos anos pode-se lançar um livro ou tornar-se escritor?” A pergunta a priori parece carecer de sentido. Mas para o estudante tinha e muito, assim como o meu enfado ao tentar escrever sobre o tema proposto. Mas perguntas como essa circulam nas cabeças de muitos moçambicanos.

    CONTO CONTIGO: Maxaquenina

    Japone Arijuane - Moçambique

    Bem na palma da cidade de Maputo, agarra-se um subúrbio, uma selva cercada a cal e cimento; selva onde o cifrão traz crinas e jubas, e goza de um eterno reinado. Maxaquene, como quem diz - familiares, ergue-se na assombração da vida humana; entre madeira e zinco, ecoa o rugir de um clamor desnutrido pela desigualdade socializada da cidade. A vida corre asfaltada de raiva e tinha, e vai latindo de lamentações como um canino ao anoitecer da convivência social; estendida à rápida metamorfose e ladra o ser suburbano aliás, sub-humano. “Elas” são sempre o sacrifício da família, o garante dos demais membros verem o amanhã; ver a mesa pelo menos uma vez ao dia. Ter filhas, ser chulo, é algo indiferente. Elas exibem-se no tropel da vida e alimentam a cidade de gemidos, gozos e delírios outrora ocultos à gente da mesma idade. Era, é, e não se sabe até quando será assim a vida, nas maxaqueninas. Essas atletas a mercê da fome, num jogo em que quem ganha o presente perde o futuro e muito mais. Mas o que fazer quando a única saída é só para boca do tubarão? As bonitas vivem pela beleza, as feias procuram outro argumento para encarar a vida, não tendo outro, estas presas a fome e nada. A Maxaquenina eleita aqui, como protagonista, era reunida de uma pigmentação preconceituosa do ser (mulata), quanto mais for clara a pele, maior é o escuro do futuro. É essa a regra e a alma do subúrbio, regra não-negra, desalmada na vastidão não-branca. A Maxaquenina julgava-se na sentença máxima de pertencer a cor; uma rainha (dês) coroada da cor doada violentamente. Só compatibilizava-se pelas mesmas epidermes místicas, as igualitárias oriundas de um passado comum, de mercadores árabes a colónias europeias; que a convivência suburbana esbarra ao preço do pão. Para ela, tudo valia a pena; era a cor o seu preferencial e companheirismo ideal. Vinha sempre uma alma nua, ancorada em mares mistos e místicos; independentemente da faina, labutava neste desconceituo ofício da vida. É triste quando o que achamos que nos é igual de outro, o outro não valoriza. A convivência suburbana é uma aventura sem viagem alguma; um tempo sem compromisso com a hora. A Maxaqunina era, talvez pelo esforço via-se quase, linda; trazia um fogo guardado, que o mesmo afugentava os negrinhos e aquecia os homens de cor; em vivências mal concebidas. Pois, a maldade sentir-se-á triste pela tal comparação; ela passava a vida nas piores das formas que uma moça do seu porte e cor poderia passar. Engraçado, dava tudo para manter aquela aparecia barata, aquela aparência aparentada dela mesma. A preocupação era a aparência, não a essência. Uma vez, no dia em que, não se sabendo por que razão, conseguiu somas consideráveis de cifrão. Pegou e gastou, em o quê? Roupa e cabelo. Dizia a mãe:

    - Você nem cama têm, mal come; porque tchunabeibes e tizagens?, coisas caras... minha filha, tenha juízo. Juízo era realmente algo que nem a binóculos a filha contemplaria. A maxaquenina pensava rápido e curto; um pensar típico e suburbano. Aliás, um pensar que qualquer um pode, desde que pense em pensar. Pensar para logo vencer! A Escola é pensar para esperar; esperar é paciência, no subúrbio paciência traz derrota, e escola serve para ter boneca; sonho de toda menina; ela, não querendo ser excepção até na quinta classe foi suficiente para concretizar o sonho, suficiente para deixar de sonhar e ter o seu boneco; um bebé malnutrido, aliás sem nutrição; mas feliz para ele, pois seus companheiros foram anulados enquanto feto, outros jogados vivos na sarjeta. - Que sobreviva assim que estás, quem sabe no futuro... os outros nem presente tiveram. Dizia a Maxaquenina, quando o bebé fazia o que bem sabia fazer: chorar, chorar e chorar.   
    O tempo dá azo aos seus ensinamentos tardiamente. Quanto ao exemplo desses exercícios fazia-lhe frente, virou frango para os mesmos negrinhos: assado, cozido, por vezes cru. Hoje, os sem cor, os sem alma não a erotizam, ninguém por nada, mergulha neste (mar) morto que um dia foi praia quente e os coloridos navegaram-na descamisados; uma praia virgem e exploraram-na todo atractivo erótico. Hoje paisagem, somente onde o tempo faz delas histórias de uma viagem estática. Uma viagem que traz ao mundo da pequena selva (Maxaquene) dentro da já suburbana cidade de Maputo, mais sentido ao ciclo vicioso; mais índice a obscenidade.  

    RETALHOS: Um amigo em terras desconhecidas

    Eduardo Quive - Moçambique


    Santos em algures da Ilha de Luanda durante a caminhada na calçada ainda em construção, encontrou-me a falar de peito trancado sobre quão custava-me conhecer os nomes daquela cidade, sei que o lugar chama-se ilha, uma autêntica face do futuro que Luanda procura para si, investindo rigorosamente na (re)construção.
    Santos vem de longe, mas tão perto para si que muito gosta da vista marítima que acompanha os sons da maquinaria da Monta-Engil Angola.
    Lá vem o menino de 10. De lá vem para cá vai. Santos caminha para junto de um desconhecido que sou para si. Pára e conversa. Giro a sua volta e inicio uma nova marcha a favor da direcção que ele toma.
    Lado a lado, Santos conversa. Vai andando enquanto contempla a sua cidade que está ansiosa para o futuro.
    Inquilino da sua amizade, também converso feliz por ter achado, finalmente, um amigo nesta terra que me é difícil relacionar com as coisas, com as gentes, com os códigos e com as ruelas. Uns verdadeiros mussques ditos e bem descritos por Luandino Vieira nos derradeiros momentos da (re)novação de que Luanda é vitima. A ilha é mesmo um lugar inexistente. O potencial que este invisível cercado de mar tem é de embalar emoções
    Santos tem noção disso e por isso vai cantando e contando.
    _ Antes a estrada era aqui, agora é ali. Isto está mesmo a mudar – reconhece, Santos, o meu amigo.
    Ele conta-me que está a caminho de casa, mas antes passará de casa de alguns amigos. Diz-me que foi “enxotado” da sala de aulas porque não trazia o caderno da prova. Mas não é assim que contou.
    _ De onde vens?
    _ …da escola.
    _ Ah, que bom! Eu também estudo. A que horas entraste?
    _ Entro às seis horas.
    _ … E sais a esta hora?
    _ Não.
    _ Não! Então porque é que te encontras aqui? Fugiste?
    _ Não fugi, tinha prova.
    _ Então como foi?
    _ Não fiz porque não trazia o caderno da prova. Esqueci em casa.
    _ Como assim? Tu tens a prova e deixas o caderno em casa? Eu nunca deixo o caderno.
    O rapaz calou-se e consentiu, para de repente voltar à conversa.
    _ Em que escola você estuda?
    _Bem, eu estudo na Escola de Jornalismo em Moçambique. Sou moçambicano. Consideram-me jornalista.
    Santos levanta a cabecinha e olha-me já com desdém. “Não é possível que este gajo seja jornalista, está a gozar comigo” imagino que ele pensa enquanto continua com o riso irónico para a minha cara.
    Olho para aquele menino com emoção. “Ele é meu amiguinho” – digo para mim mesmo.
    _ Sabes que tenho um sobrinho assim como tu? Ele anda na 5ª classe.
    _ Tenho um amigo na 4ª e eu vou passar para li encontrar.
    _O meu sobrinho chama-se Helder e tu?
    _ Meu nome é Santos. Os meus amigos chamam-me de Kutchu, mas a minha mãe
    chama-me de Santos.
    _ Santos, grande nome! Eu também sou Santos.
    _Mentira…
    _ Pois, menti mesmo. O meu nome é Edu, Eduardo… Edu.
    _ És Eduardo.
    _ Isso mesmo.
    E vai se fazendo esta amizade enquanto contra-peamos a calçada olhando para o mar, os peixes, homens e as respectivas mulheres quase nuas.
    _ Eu vou daqui – aponta a estrada.
    _ E vais atravessar a estrada, sozinho!
    _Não. Estou contigo.
    Segurei na sua mão e atravessamos para a direcção que ele bem conhece. Apercebido que fui “vitima”das tentações deste grande amigo, já não me saem perguntas. Apenas cumpro ordens inspirado no letreiro da Base Marinha de Luanda cuja ilustração é do presidente José Eduardo dos Santos “Comandante em Chefe, às suas ordens. Ordene, ordene, ordene”diz o cartaz.
    Calo-me e contemplo. Angola é um país de ordens também! Santos bem sabe as dar. Ordena-me e eu cumpro. “Às suas ordens, Santos”. Caminhamos agora intercalando as casas sobrepostas, cheirando a peixe e outros mariscos com águas turvas à mistura. “Isto é Mafalala!” reconheço as igualdades. Aqui há cães vadios. Cães que atentam a moral, fazendo sexo na rua no olhar dos homens. Cães que matchimbam na rua atentando a saúde pública. Isto é mesmo Mafalala e Chamanculo, Unidade “7”, Urbanização, Maxaquene e etc. É daqui que saem os poetas, dançarinos, timbileiros, actores e outros grandes artistas.
    Mulheres cobertas de capulanas sentadas de pernas para o ar conversam num silêncio inquietante. As raparigas, mulheres adultas e crianças, decoradas a moda Tchuna-Baby, vão mostrando as suas pernas decoradas de varizes que nem se quer respeitam a idade. Aqui, os homens andam sem camisas e as raparigas apenas de panos que só lis cobre os seios. É tudo gente de Santos.
    Enquanto caminhamos ele saúda essa gente. Os homens de calções e descamisados, uns com peixes nas mãos, mulheres de mini-saias e jeans rasgado. Mulheres adultas na moda. São todos conhecidos de Santos.
    Casa pintada a cor-de-rosa e com antena de TV digital é da sua avó. E me mostra esses lugares, o meu amigo, preocupado em apresentar-me, principalmente à sua tia-mãe, como ele intitula e à sua mãe.
    Chegados no seu beco, Santos saúda a sua tia que o indaga sobre o porquê de estar ali naquela hora “já para casa”, vociferou. Logo na porta da varanda, o único quintal que a casa tem, saúda uma mulher que não consigo ver o rosto. É sua mãe.
    Calado, senti que era aquele, o fim da nossa amizade, pois aos que me perguntavam apenas dizia que o ajudava a atravessar a estrada.
    Ele apresentou-me as pressas à sua mãe que zangada pela sua chegada antes da hora habitual, nem se que presta-me alguma atenção.
    _ Ele é meu amigo mãe.
    Da sala saia uma menina. Tão linda! Devia ser irmã de Santos. Olha para mim e pisca os olhos em jeito de saudação. Que criança linda e espertinha! Mas não me alongo, dispenso-me da família e do meu grande amigo, o Santos.
    Dia inesquecível este 17 de Abril de 2012. Dia ímpar naquela ilha anexa à cidade de Luanda onde nem amigos tinha, além de poetas. Agora, um já figura a minha lista. Seu nome é Santos.

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