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    AFRICANIDADES: O regresso de Mario Vargas Llosa à retórica falaciosa

    Victor Eustaquio - Portugal



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    hegou-me às mãos o mais recente livro de Mario Vargas Llosa editado em Portugal, o ensaio «A Civilização do Espetáculo», dois anos depois do romance «O Sonho do Celta», no qual o autor peruano escrevia qualquer coisa como isto: «A independência nunca é concedida a bem. Tem de ser arrancada através de uma acção política e militar, à custa de grandes sacrifícios e heroísmos. Assim conseguiram a sua emancipação todos os povos livres da Terra»
    Neste novo, o Nobel da Literatura reúne vários textos apontados pela editora portuguesa, a Quetzal, como uma “radiografia duríssima (…) do nosso tempo e da nossa cultura”, a começar pelo primeiro onde escreve qualquer coisa como isto: «A banalização das artes e da literatura, o triunfo do jornalismo sensacionalista e a frivolidade da política são sintomas de um mal maior que afeta a sociedade contemporânea: a ideia temerária de converter em bem supremo a nossa natural propensão para nos divertirmos. No passado, a cultura foi uma espécie de consciência que impedia o virar as costas à realidade. Agora, atua como mecanismo de distração e entretenimento. A figura do intelectual, que estruturou todo o século XX, desapareceu do debate público. Ainda que alguns assinem manifestos e participem em polémicas, o certo é que a sua repercussão na sociedade é mínima. Conscientes desta situação, muitos optaram pelo silêncio»
    Distantes no tempo, ainda assim não muito, e aparentemente sobre assuntos diferentes, as duas reflexões têm um denominador comum: a ideia de que, a bem, o mal não é erradicável.
    Se quem subscreve que a libertação de algo que nos oprime “tem de ser arrancada através de uma acção política e militar”, e afirma depois que a figura do intelectual “desapareceu do debate público” e que a acção deste “não tem qualquer repercussão6 na sociedade”, mais não está do que a convidar à sublevação da “alta cultura”, a erudita, conjunto de saberes ao qual acedem apenas as elites (as mesmas que, aliás, Vargas Llosa refere mais à frente). Dito de outra forma, e continuando a seguir o raciocínio do escritor peruano, perante “este mal maior que afeta a sociedade contemporânea”, é urgente que a “classe” erudita, ou seja, aquela que melhor conhece as respostas mais eficazes para satisfazer as necessidades e os desejos humanos – e eis aqui uma definição possível de cultura – promova uma intervenção violenta, porventura de ruptura, mesmo que “à custa de grandes sacrifícios e heroísmos”, pois só “assim conseguiram a sua emancipação todos os povos livres da Terra”.
    Porém, fica a dúvida: que tipo de intervenção e com que grau de violência? E mais: visando que tipo de efeitos?
    É que não é difícil concordar com Mario Vargas Llosa em matéria de diagnóstico: é verdade que assistimos à banalização das artes e da literatura; é verdade que vivemos com paliativos, vergados ao peso de mundo dominado e reduzido à distração e ao entretenimento, já que cultura também é informação (outra definição possível); numa palavra, é verdade que virámos as costas à realidade.
    Mas se o diagnóstico está correcto, o problema reside em saber como se trata esta doença, já que, até agora, tudo o que disse é de natureza empírica. Com efeito, podemos concordar com a evidência de que as artes, a literatura, o jornalismo ou a política se tornaram frívolos, que a “cultura” esvaziou-se de sentido prático, isto é, da capacidade de moldar a realidade, se sucede que esta nos incomoda e carece de uma intervenção que procure a mudança.
    Contudo, mudar o quê, insistimos, e com que efeitos? Até porque, primeiro, precisamos de chegar a consenso quanto ao que entendemos por cultura.  Estamos a falar de cultura material, a herança de saberes de que somos beneficiários, ou de cultura simbólica, a representação social dessa mesma herança, a que está nas nossas cabeças e que dita a forma como nos relacionamos com o mundo, que tanto difere de cabeça para cabeça?
    A problemática é tão complexa que, enquanto não for resolvida, todo e qualquer discurso que assente na interpretação empírica da mesma não passa de mera retórica. E esta é tão-somente a primeira armadilha.
    Se não nos entendemos quanto ao que se deve entender por cultura, como é possível entendermo-nos quanto à forma com que nela se deve intervir? A não ser que façamos como Mario Vargas Llosa e entreguemos o problema às elites.
    Esta não é a primeira vez que o Nobel da Literatura peruano tropeça em terreno minado. Porque se, em boa verdade, é defensor, ao que tudo indica, de soluções radicais de extermínio intelectual, está na hora de o assumir com frontalidade. É que diagnosticar é uma coisa, apresentar uma cura é outra.

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