Mbate Pedro - Moçambique
À
Com uma poética essencialmente vocal, com um notável cuidado sobre a linguagem e uma contenção grega quase a resvalar à austeridade, Manuela Xavier escreve para a música que há dentro das palavras e à canção que, insubmissa, cresce por detrás delas. Daí talvez, que uma larga parte de Contar Ser Gregos seja, a meu ver, musical, como aliás atesta, o poema “Viver cem gurus”, página 64: “Todos dias vivem cem gurus/todos altares dormem maduros/vastos algozes espremem impuros/porque se espumam em apuros/”. Ou até o poema, “Murmúrios de Zim”, página 47: “Correntes que chamam por mim/numa tertúlia a benigna sem fim/gritam alto murmúrios de zim/fincando pé cortes doces em pudim/”.
Por outro lado, o recorrente experimentalismo lúdico, a que somos convidados a assistir, desde o título da obra, Contar Ser Gregos ou Contar SeGredos, assume, a meu ver, a imagem central na poesia da autora. Há neste livro, uma constelação de trocadilhos bem conseguidos e que, com alguma originalidade, sobrepõem-se uns aos outros como as costuras de um vestido de noiva. Vejamos alguns exemplos: “…Porque me obrigas/quando te queres abrigar…/porque eu sinto e tu és sentido? ”; “ mas o fogo não afaga o fogo”; “o estudo que me diz que tu és tudo”; “…do meu furto/faço futuro/...do teu fato/faço factura/”.
Uma Emmy Xyx terrivelmente satírica e profundamente irónica, características que quase pouco se vê no nosso actual panorama poético feminino. Repare-se, por exemplo, como opera, a ironia, no poema Bala pedida (não bala perdida!), na página 16: “a bala pedida encontrou/volumes imensos a flutuar/de madrugada à noite soou/nada há a lamentar”. E num outro texto, intitulado, “Erres de heróis” (não erros dos heróis), lemos: “os erres dos heróis são apagados?/Os erres são livres de ficar?/Quantos erres tem o vento?/ Quantos ventos tem o mar?/”.
Se é verdade que, como Lobo Antunes um dia escreveu, a verdadeira arte é aquela que resulta do trabalho árduo e do sofrimento do artista, para que depois o leitor tenha o prazer do texto, e não o contrário, não deixa também de ser verdade dizer que Contar Ser Gregos requer um leitor sem nevoeiro dentro de si, como diria o bom do Eugénio de Andrade. Talvez seja por isso, que Manuela Xavier alerta-nos, neste fragmento do poema “Escrituras”, página 39: “…o que é preciso é saber ler,/conforme as escrituras/”.
Jorge Luís Borges dizia, amiúde, que o essencial da boa literatura e da arte no geral, é a metáfora e a maneira como o autor se insinua nela. Contar Ser Gregos, obra que reúne 53 poemas, (a)Grega desde simples imagens subtis à outras de uma violentação e tensão metafórica, equiparáveis ao que encontramos, na poesia escatológica de um Andes Chivangue, cá entre nós ou na de um Luis Miguel Nava, escritor português. Cumprindo aquilo que é a função da literatura genuína: a de produzir uma tensão muito mais fundamental do que a própria realidade. Escute-se alguns fragmentos: “…a andorinha …/ enterrou a sua viagem/”; “ …barbas emprestam ao pano/a solidez do ser fino/”; “...diz-me porque o medo/vai atrás das primaveras/”; “…até nos mares tens cebolas…”.
A poesia de Emmy Xyx, distancia-se, com um discurso singular, do lirismo amoroso em voga no actual momento literário em Moçambique e, praticado pela maioria das poetisas publicadas, criando uma voz própria, limpa e que através dela, o sujeito poético manifesta a sua denúncia (Contar SeGredos) e o seu desencanto com, passo a citar: “… a coscuvilhice nacional, …as verdades mintas do tamanho dum boi…, com os chulos…, com os vastos algozes que espremem impuros…, com o fim que continua ferozmente a começar pelo princípio…, e…com os que gozaram sem sanções”.
Agora, pergunto: o que os leitores procuram nos livros, para além de uma nota perdida (não pedida!) de quinhentos meticais? Porque a literatura, como certa vez disse Ferreira Gullar, não melhora em nada a nossa condição de vida. Muito pelo contrário. A arte, tem tirado dos artistas quase tudo e a muitos de nós, a pobreza deixa-nos como herança apenas um fio da sua baba. O que os leitores procuram nos livros? Os leitores ávidos e atentos ou leitores que do leite fazem leitura, como observa Manuela Xavier. Esses, que procuram nos livros o amor e o despertar às coisas belas, fim primário e irreductível da verdadeira arte. Esses, a quem se pede a preciosa e psiquiátrica paciência de quem escuta o outro a Contar SeGredos. Porque a vida, sem o amor às coisas belas, fica uma coisa terrível e insuportável! E talvez, seja por isso, a meu ver, que o sujeito poético, em Contar Ser Gregos, alerta-nos, que mesmo com o Chão-País torto, iniciará a canção, mesmo com o Chão-País coxo, elevará o nome da nação, mesmo com o Chão-País roto, encherá os sinais, mesmo com o Chão-País porco encontrará desencontros e mesmo com o Chão-País morto, saberá dançar.
Para terminar, que mais dizer, para além do facto de “Contar Ser Gregos”, despertar em nós, uma das grandes metáforas das nossas vidas: a de Contarmos um dia Ser Gregos. Afinal, não há em cada um de nós um pouco do Maníaco de Atenas? O personagem de Machado de Assis que por dormir ao relento, todos os dias, em frente ao porto de Pireu passou a julgar que todos os navios que atracavam lá eram de sua propriedade.
Talvez a ignorância e a ingenuidade enganem-me, mas Contar Ser Gregos, é, a meu ver, um dos mais puros livros de poesia, feita por mulheres, que até hoje publicou-se em Moçambique.
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