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    1 HORA ( Em casa de Narguiss)*

    Lilía Momplé - Moçambique


    Q ue força é esta que não a deixa levantar-se e correr para o seu Abdul que , já impaciente, quase derruba a porta aos pontapés. “ Não grita...Espera só pouco”, roga ela, tremendo de receio que ele se vá embora.
    Mas Abdul não se vai embora, continua a dar pontapés na porta e a gritar como se alguém, lá fora, lhe estivesse a fazer mal. E ela sem poder abrir aporta. Está tão perto, só alguns passos, poucos, tão poucos que ela resolve ir de rastos, já que não consegue pôr-se de pé. Lutando contra a força que a paralisa, avança com lentidão que os gritos de Abdul tornam insuportáveis.
    Está quase...um pouco mais...agora é só levantar o braço, alcançar a fechadura e rodar a chave...uma, duas vezes. Mas o braço pesa-lhe... pesalhe tanto...não consegue...não...
    Narguiss acorda a transpirar, apesar do cacimbo de Maio que entra pela porta de rede que liga a cozinha á varanda. “ Afinal tudo pode ser um sonho...Abdul não vem”, lamenta ela, desiludida, á sua volta.
    Foi um sonho terrível, mas Abdul. Era melhor do que estar assim sozinha, sem marido, no dia de Ide.
    Não se lembra de ter adormecido sentada, com a cabeça apoiada nos braços cruzados sobre a mesa da cozinha. Lembra-se, no entanto, do pesadelo de onde acaba de emergir e da estranha sensação de ter visto Abdul através da porta que ele batia com os pés por ter as mãos cheias de embrulhos.
    “Mas pode ser tudo sonho, mesmo. Abdul não está aqui”, geme baixinho. Experimenta mexer as pernas e os braços e constata, aliviada, que lhe obedecem perfeitamente. Tudo foi mesmo sonho. Abdul não veio e nada lhe tolhe os movimentos. Porém... os gritos e o barulho esquisito que chega da rua não é sonho, não. São reais e cortam o silêncio da madrugada, com assustadora nitidez.
    Curiosa. Narguiss rebola o corpo imenso até á porta de rede e sai para a varanda. A princípio não quer acreditar no que vê. Supõe mesmo ter mergulhado num novo pesadelo, tão estranho lhe parece tudo.
    Na varanda do primeiro andar , mesmo em frente, o casal que lá vive e que ela só conhece de vista, desfaz-se em gritos. Ela grita apenas por socorro e ele, embrulhado no que parece lençol, repete qualquer coisa que Narguiss não consegue compreender. De vez em quando, grita também por socorro.
    Apesar da escuridão da noite sem lua e d acácia rubra que os oculta um pouco, Narguiss consegue vê-los agora, perfeitamente, iluminados por holofotes manejados da rua. O homem continua a bradar qualquer coisa incompreensível e a mulher não para de pedir socorro. De repente, põem-se a correr de um lado para outro lado, na exígua varanda, numa dança
    macabra.
    Narguiss não sabe se as balas que os atingem vêm de dentro de casa ou dos homens dos holofotes que também disparam sem cessar. Mas , quando os vê cair, desta ela a gritar.
    - Está matar gente... muanene inluco... está matar gente... ali... muanene inluco...
    Não vê o homem que, da rua, lhe aponta a arma pois toda atenção está centrada na varanda da flat em frente. As balas atingem-na, certeiras, no pescoço e no peito e ela espanta-se da sensação de infinita paz que a acompanha na queda. Já nada a faz sofrer, nem o Ide sem ver a lua, nem as filhas sem casar, nem mesmo o Abdul.
    Como se o enorme corpo se recuasse a ceder, dá uma volta sobre si mesma e , escorregando lentamente, Narguiss cai por fim, sentada, com as costas apoiadas no gradeamento da varanda. E é assim que, pouco depois, as filhas alertadas pela gritaria e pelos tiros, a vêm encontrar.

    *in Neighbours  pag 107 e 108, 3ª Edição da autora 2008
    Glossário
    muanene inluco – Meu Deus – Língua Macua- falada no norte de Moçambique
    particularmente na Provincía de Nampula
    ____________________________________
    Lilía Maria Clara Carriére Momplé nasceu a 19 de Março de 1935, na Ilha de Moçambique, fez o ensino secundário na então Lourenço Marques( hoje Maputo). Frequentou o 2º ano de Filologia Germânica e licennciou-se em Serviço Social no Instituto Superior do Serviço Social de Lisboa, viveu em londres, Baía, São Paulo. De volta á Moçambique,trabalhou no Ministério da Cultura,onde foi Directora do Fundo para o Desenvolvimento Artsitíco-Cultural, Secretária Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos. É membro da Southern African Writers Council.
    Em 1997 participou no International Writing Program, na Universidade de Iowa, nos Estados Unidos de América.

    Obras Publicadas:
    Ninguém Matou Suhura 1988 – Contos
    Neighbours 1995- Romance
    Os olhos da Cobra Verde 1997- Contos
    As suas obras estão Publicadas na Itália, África do Sul,etc.

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