“A ausência de uma coisa não é somente isso,
não é apenas uma falta principal, é uma
subversão de todo o resto, um estado
novo impossível de prever no antigo”
(Marcel Proust)
O estupendo e assustador Romance “COMO DEIXEI DE SER
DEUS”, de Pedro Maciel, Topbooks Editora, 2009, é o top de linha no atual
momento da efervescente literatura brasileira contemporânea de peso e em alto
pique. Humor, concisão perturbadora, erudição, alumbramento e ironia, com
assustadora sonoridade, ritmo e lucidez exacerbadoramente rica, estrambólica
até, por assim dizer. Máximas, epigramas, aforismos (desaforismos?) citações,
fragmentos reflexivos contundentes. Muito mais do que isso. Há recursos brilhantes
na intextualidade, além de alumbrados estados metafóricos. E muito mais do que
isso. Começa a apresentação estética da obra com a capa de um
vermelho-diabólico que parte da obra “Desvio Para o Vermelho “ (êpa!) de Cildo
Meireles. Mas o conjunto é todo um corpo-texto estético de altíssima qualidade
técnico-editorial até.
Elogiado entre outros por Moacir Scliar, o maior
proseador brasileiro categorizado por excelência nos últimos tempos, por Ivo
Barroso, pelo emepebelizado filósofo multimídia Antonio Cícero, e ainda por
Luis Fernando Veríssimo (o maior cronista da imprensa), Pedro Maciel se afirma
e confirma em cada trabalho, e todo mundo que entende do riscado surpreendido
assina embaixo de que ele é mesmo a mais fina flor da espécie literária contemporânea.
Muitíssimo acima da média. Um achado.
Com um seu mundo letral ostentando em esplêndido e
magistral imaginário, algo apocalíptico, (surpreendente fluxo neural e jorro
letral), Pedro Maciel produziu um excelente romance presente-(passado)-futural em
construção, com ecos, estados oníricos, viajações e até certas derramas.
Ficção-show. Antigamente se diria que ele é pinta brava de tão bom.
O pesadelo de Deus. O homem? O espelho? Deus mora nos
fragmentos atemporais? Deus, a consciência do homem... Pensamentos,
sensibilidades, abstrações – o tripé em que fomenta (fermenta) a obra COMO EU
DEIXEI DE SER DEUS. Em entremeios a tudo isso, encantamentos e textamentos. O
tempo-rei costurando veios. “Deus, a alma dos brutos”. E os brutos que
amam-odeiam Deus. Diálogos interligados, incendiando pequenos parágrafos
epigramáticos entre reticências, citações e a pólvora do criar se vislumbrando.
A arte-pura-provocação. A construção-desconstrução de uma babel íntima? O que
foi é. O que será se cabe sendo. Deus não é fóssil. Não é fácil, portanto. O
universo mágico da loucura que não é santa e nem se veste de ouro e prata,
talvez vermelho-coisal, bezerros de ouro à parte...
Sim, um tresloucado anti-romance de Pedro Maciel que
corajosamente (competência é isso) mergulha fundo no aparente lusco-fluxo de
sua sentição/criação, lado pensador/sentidor (não vegetativo), feito “estar” em
fio-terra descascado. Já pensou? Ah, Deus usa os loucos para confundir os
sábios. Está escrito. Santas palavras. Não há origem possível? Não há um
fim em si mesmo. Estar de “star” também. Somos todos eternas poeiras cósmicas?
O Deus S/A se expressa. A essência da busca de séculos,
milênios. Como uma praga-mãe. Quem somos? Quem ou o quê é/seria D.US. Na casa
do pai também há muitas palavras... Somos a imagem e parecença?... Ai de nós,
juros além. O “Bildungsroman” (romance em formação) informa, transforma,
reforma, disforma, forma, metamorfoseia. Essas e outras. Idéias? Propósitos?
Como um concretismo em prosas. E toma Platão, Heráclito, Beckett, Da Vinci,
Dostoiéski. E os livros sagrados, claro, que sem eles não haveria a proposital
(?) provação, provocação, ação literária nesse caso de extremidades que se
tocam, permeiam, tecem, vazam, desnorteiam.
A “desnarração” sem arames e presilhas como fim, fito e
propósito. A voz do narrador (em negrito); a voz que clama no deserto (em
itálico): delírios que nada passam a limpo, antes, com e fundem, feito delírios
sarados do finito ser que cria o transcendentalizar-se. Será o
impossível. Quando se brinca de Deus, com Deus, adeus sanidade. Sorte nossa.
Será o impossível? Ah a notável caixa de pandora da literatura dando bons
refluxos. Estamos no coração das luzes e não nos enxergamos em nós? A função da
escrita enquanto arte é também retrazer o não identificável. Talento tem
gerador próprio. É o caso de Pedro Maciel já elogiado por A Hora dos Náufragos
(Bertrand Brasil, 2006). Ninguém fica lúcido de uma honra pra outra. A
impertinência é que faz a hora, a criação, o desmonte que seja.
Pedro Maciel é sim um puro “neoriobaldo” em
contracorrente: “A gente vive pra desmistificar”. E administrar as
contundências dos mitos também. Entre o sótão e o porão de si mesmo (tantos sis
em si), Pedro Maciel maravilhosamente desestrutura o osso de ostra do romance formal.
Um de-quê de Borges, de Garcia Marques, de Cortazar, de Kafka Lispectoriano...
E ainda assim, o lugar de si tem cabimento. Para que a lógica perversa das
estruturas con(m)-flitos(filtros) religiosos? Pedro Maciel regurgita de
alguma forma no sensível, a imaginação. E imagina são. Torrentes. A mutação das
rotas-rusgas. A reflexão dos sobreviventes de antes, depois e durante.
O romance que se atirou frente a janelas de
alma-mente-coração. A alma diversa. A vida (vida?) diversa. Um romance que diz versos.
Janelas de fugas criacionais. Quase pequenas pinceladas multi-historiais. O não
lugar, o são ser, os não personagens. Deus e o diabo na terra do nunca, na
terra do Self. E escurez. Sozinhez. A originalidade da obra clássica de Pedro
Maciel surpreende, assusta, intriga, corrói (des)valores, desmistifica, toca o
indizível. Toca circuitos, escritas. Todo criador toca seu Deus quando cria?
Dito e farto.
Você lê o romance-vanguarda e se sente também de alguma
forma inconcluso, na incompletude “deusal” de si mesmo. E capitula. Sente e
ouve vozes nas entrelinhas. Como se refém de um ponto de interrogação à beira
do abismo de ser Ser, e de pensar ser filho de um Deus. Só por Deus. Ou
vermelho-coiso? A dualidade dúbia da dúvida atroz.
Pedro Maciel enumera os zeros. Do nada ao infinital.
Pedro Maciel nomina o inominável. Do pré ao pós, feito um assim
ser-permanecer-se. Cada um sabe onde aperta o cale-se. Ele escrevendo
questiona, intriga, alucina. E cintilantemente se entrega na obra que dá muito
o que falar, o que não falar, o que calar, o que atiçar... Coisa do demo
também? Periga ver. Sai de baixo.
Vejam/leiam os “joios” preciosos:
“Ontem visitei a cidade em que nasci; ninguém me
reconheceu(...)/deuses não têm Deus quando lembram do homem(...)/Se Deus
existisse todo mundo ficaria sabendo(...)/Há cabeças que mesmo cortadas emitem
pensamentos(...)/Pelo amor de Deus se vai ao inferno(...)/A linguagem sempre
esconde o pensamento(...)/O homem pensa e Deus ri(...)/Quando nasci os deuses
já estavam mortos(...)”
Lendo Pedro Maciel enloucresço. Também pudera, com essas
contações mexendo com os “sagrados” laços dos entes...
Sim, mas, mexer com Deus é um vespeiro. No entanto, modo
de dizer, se eu quiser falar com Deus agora, tenho que saber a Pedro Maciel que
tem a chave literal da porta do céu; da porta do Self. Na casa do pai há muitas
erratas?
Disse Kateb Yacine:
“É preciso que nosso sangue se inflame
E que nos incendiemos
Para que os espectadores se comovam
E o mundo abra enfim os olhos
Não sobre nossos desejos
Mas sobre as chagas dos sobreviventes”
....................................................................
“Um dos traços essenciais da literatura na sociedade dita
pós-moderna, consiste na rarefação dos gêneros, na interpenetração dos modos,
na mistura arbitrária de espécies e modelos literários, numa constante e ousada
intertessitura das formas (...)” disse Hildeberto Barbosa Filho (in, Raro
Encontro da Poética com a Beleza, Sol Negro, Augusto Ferraz, Nossa Livraria
Editora, PE, 2008). Pedro Maciel é desta safra e gabarito.
Pedro Maciel na verdade introspectou um deus dúbio, um
deus-Dublin, um deus irado e vingativo. O homem é o destempero de Deus na
“herrança” da criação? Ora, sob a ótica de Darwin, quem mandaria Deus pentear
macacos? Pedro Maciel teve a coragem de. A terra é o aterro sanitário do
espaço, onde estão depositados todos os vermes, e ainda de alguma maneira
estamos balançando no cipó das aparências, o rabo entre as pernas? Para um
artista de peso, viver não é só ab ana r o rabo. Tudo pode ser ou não ser. Eis
questão. Ler “Deus” de Pedro Maciel é estar na prestação de prós e contras.
A arte como Proteu pode assumir qualquer forma. Prometeu
trazendo o incêndio do céu para a terra? Ah Orfeu enfeitiçando a natureza com
sua música, sua mística... Escrever é colocar palavras nem tão sagradas nas
bocas dos mistérios...
Literalmente, sem tirar e nem pôr, com Pedro Maciel Deus
literalmente escreve torto por deslizes tortos também. Um Deus gauche? Onde já
se viu isso?
Bingo. Ou, quero dizer, eureka.
Pedro Maciel com COMO EU DEIXEI DE SER DEUS fez um puta
livraço.
Deus está nu.
Nem toda escrita sem uniforme são oráculos.