Eduardo Quive - Maputo
Muito já ouvimos dizer que um pouco de loucura faz bem para um provável escritor. Mas agora, ao entrevistarmos Andes Chivangue, que apesar de se destacar naquela que se pode chamar Literatura Moçambicana (que ele considera moribunda), tem a humildade de afirmar sem receio “não sou escritor”. E por quê um autor de duas valiosas obras que marcam, de acordo com Ricardo Riso, a ruptura dos tempos literários moçambicanos que se dividem com os tempos sociopolíticos, a não chamar-se escritor? Estamos a nos referir a um dos poucos escritores, apesar das suas dúvidas, que vítima de muita leitura, pauta na sua escrita pela lírica, inquietação e transpiração, o que acaba o levando ao “doloroso” exercício de reescrita. Um escritor que está em constante diálogo com o ego e sempre irritado com o produto final da sua criação. Porquê tantas palavras se o autor fala por si e, inclusive, as suas obras “Alma Trancada nos Dentes” e “A Febre dos Deuses”, apesar de raríssimas no mercado explicam melhor que caminhos trilha este que é jovem quanto pessoa e adulta quanto escriba..
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L: Andes, falemos do leitor, poeta, contista, e de si próprio
como pessoa, o cidadão, em fim, essas pessoas existem?
A.C: Existem sim, mas com quem queres falar primeiro?
L: Podemos começar pelo Andes leitor, como é que te entra o
monstro da leitura?
A.C: Comecei a ler com 16 anos, influenciado por amigos. Comecei
pela leitura pouco instrutiva tal como a banda desenhada e o policial, mas posteriormente
evoluí para coisas mais interessantes. Em 1996 conheci o Danúbio Afonso, hoje
antropólogo, que me introduziu aos livros mais instrutivos. É nessa altura que
entro em contacto com a poesia de Al Berto e os textos de Giovanni Papini e
Loyola. Com o tempo conheci outras pessoas, amigos que me deram a conhecer
autores. Dentre vários posso referenciar o escritor Rogério Manjate. Diria que
o Andes leitor teve imensa sorte, pois teve sempre alguém que lhe mostrasse o
caminho. É neste percurso que acabei lendo coisas que mudaram completamente a
minha vida, a minha maneira de olhar para a literatura e para o mundo no geral.
Infelizmente, nos últimos tempos leio mais material de trabalho, coisas que tem
a ver com a minha profissão. Como decente universitário, para além da pesquisa
inerente à própria actividade, é preciso estar atento ao que se vai publicando
e tudo isso exige imensa leitura, não sobrando assim tempo para a leitura de
laser, a literatura. Esta situação acaba tendo influência ao nível da escrita
criativa, dado a minha escrita resultar da leitura. Portanto, sobre o Andes
leitor eu posso dizer que nos últimos tempos ando mais preocupado com problemas
ligados a governação, desenvolvimento económico e construção de cidadania em
África, no geral, em Moçambique, em Particular.
Como cidadão o Andes anda preocupado
com a constante defraudação do património dos moçambicanos. É absurdo que
perante um roubo como o que ocorreu no INSS as pessoas permaneçam impávidas e
desinteressadas. Acho que são poucos os que têm a consciência de aquele
dinheiro resultar das suas contribuições como trabalhadores. Perante uma
situação daquelas devíamos cobrar responsabilidades, exigir que rolem cabeças,
etc. Mas como se vê, para além da imprensa e alguns comentadores políticos,
muito poucos discutem seriamente o assunto. Isto é grave e constitui um sintoma
de uma doença muito mais séria. Ou seja, começa-se a aceitar o roubo, a
desonestidade e a falta de carácter como valores. Numa sociedade nem todos têm
de ser ricos (ou endinheirados). Aliás, se pararmos para pensar, chegaremos à
conclusão de que o dinheiro é uma ficção e que muitas das necessidades que
temos não são verdadeiras necessidades. Há outras coisas que podem e devem ser
valorizadas tais como o conhecimento, a honestidade, o profissionalismo, etc.
Só com a interiorização de valores como estes últimos é que poderemos construir
o verdadeiro cidadão moçambicano, orgulhoso da sua pertença e história. Portanto,
o Andes escritor, cidadão e docente cruzam-se nesta grande preocupação.
L: Que ambiente ou ambientes propiciaram a sua aproximação
à literatura?
A.C: Eu nasci numa casa cheia de livros. Esta foi outra
grande sorte que determinou parte do meu percurso como indivíduo e amante de
literatura. O meu pai é professor de profissão e a minha mãe trabalhava no
Instituto Nacional do Livro e do Disco. Como pode imaginar, a estava cheia de livros
e de discos (de vinil). Foi neste ambiente que cresci. Devo acrescentar que,
contrariamente ao que acontece com outras pessoas que escrevem, os meus pais
não leram para mim estórias de criança à hora de dormir. Como disse anteriormente,
o gosto pela leitura chega-me aos 14 ou 15 anos através de amigos. Ter livros
em casa permitiu-me usa-los para conseguir outros mais.
L: Disse que não fazia uma leitura instrutiva, isso
significa que lia o quê?
A.C: Como já referi, lia policiais e banda desenhada mas
depois fui evoluindo e essa evolução aconteceu rapidamente e passei a devorar
autores como Ngugi Wa Thiongo, Sembene Osmane, Wole Sonyika, e Emile Zola, W.
Somerset Maugham, Dostoievsky, Eríco Veríssimo e tantos outros.
L: Foram leituras de qualidade… hoje parece-me haver
dificuldade por parte da juventude em encontrar esses livros…
A.C: A dificuldade em conseguir bons livros hoje prende-se
com diversos factores. Antes tínhamos o Instituto Nacional do Livro e do Disco
e os livros eram acessíceis, embora houvesse uma tendência para encher o
mercado de literatura russa e chinesa, incluindo montanhas de manuais sobre
marxismo-leninismo. Mas havia coisas para ler. Existia, por exemplo, a colecção
Vozes de África, editada pelo INLD,
com autores como Chinua Achebe, Birago Diop, Mongo Beti, Alex La Guma, Cyprian
Ekwensi, etc. Para além de alguns autores que mencionei anteriormente. Eu tive
a felicidade de encontrar esse material na estante do meu pai. Hoje uma parte
considerável do meu salário vai para livros. E o livro está caro. Há a
considerar também o facto de termos pouquíssimas bibliotecas em condições, o
que não nos permite desenvolver a cultura de frequentar e estar numa
biblioteca. Os nossos decisores políticos não estão preocupados com a cultura.
Como diz Lobo Antunes, uma população inculta e mal formada constitui uma
vantagem para as elites governantes, pois têm de fazer muito pouco para
garantir a sua manutenção no poder. Em Moçambique é o mesmo. Há universidades
que despejam toneladas de graduados por ano mas depois coloca-se o problema de
saber-se se estas pessoas estão pelo menos preparadas para exercer a sua
cidadania como moçambicanos. Ou seja, as pessoas deixam-se distrair com
certificados e o grau, passando o essencial ao lado. Portanto, é preciso que
haja um comprometimento sério com a cultura. E o acesso ao livro constitui um
dos passos. Isentar o livro de taxas no processo de importação não basta. O
Estado tem de dar um sinal no mercado livreiro, transformando-o numa
possibilidade de negócio com benefício para o cidadão através da aquisição de
livros a preços baixos.
O ESCRITOR
L: Disse que o te fez escritor é a leitura… foi no primeiro
contacto com o livro que começou a escrever ou foi depois de muita leitura?
A.C: Primeiro li e depois escrevi. Para mim a escrita
funciona bem quando se lê primeiro. É preciso saber o que o existe para
ousarmos contribuir com alguma coisa. Os círculos de leitores e os núcleos
literários ajudam imenso na partilha de informação e troca de experiência. E os
anos 1996 foram frutíferos nesse aspecto. Tivemos o Xitende em Xai-Xai e a
Oásis em Maputo. Havia outros movimentos noutros cantos do país. Trocávamos
livros, pontos de vista etc. a minha escrita é o resultado desta confluência
vivências. O encontro que motivou a
criação da Revista Literária Xitende (organizado pelo Celso Manguana e
Guilherme Mussane, em Xai-xai) foi decisivo na medida em que eu e os outros
confrades da cidade ganhamos consciência da nobreza do exercício da escrita, o que
motivou maior partilha de livros e opiniões. Portanto, primeiro a leitura e
depois a escrita. E comecei por escrever sonetos, vilancetos e outros textos
ligados a algumas coisas que ia tendo no ensino secundário, durante as aulas.
L: Portanto, inicia-se na poesia?
A.C: A minha maior ambição, se calhar sonho nessa altura, era
ser poeta. Não imaginava se quer que podia um dia escrever prosa. Mas a vida
prega-nos muitas partidas.
L: E como explica essa mudança ou partilha da mesma pessoa
para vários géneros literários?
A.C: É uma coisa muito complexa e que só se pode explicar
pelas coisas que lia. Houve uma fase durante o meu percurso em que trabalhei intensamente
a escrita criativa. Exercitei entusiasticamente três géneros, nomeadamente a
crónica, o conto e a poesia. Mas com o tempo passei a escrever mais contos do
que poesia.
L: “Alma Trancada nos Dentes”, seu primeiro livro. Pode o
coração caber na boca?
A.C: O que acontece é que hoje eu acho esse título um pouco
falhado. Este livro é muito denso sob ponto de vista de imagens, tendo propositadamente
procurado trabalhar a metáfora até à náusea, à exaustão. E é por isso que ele é
um pouco pesado até um certo momento. Mas eu quis trazer esta tensão, digamos,
esta confluência de vozes, sabores e memória. E o título Alma Trancada nos Dentes, nessa altura, pareceu-me bom, porque parecia
aglutinar essa simbiose. Mas com o tempo percebi que outras opções talvez
fossem melhores, podia ter testado mais ainda a sensação de limite. Enfim, diria
que caí na minha própria armadilha. Para se compreender melhor o que pretendo
dizer, talvez fazer referência aos autores que me influenciaram da fase em que
escrevia a “Alma”. Foram basicamente quatro.
O primeiro autor foi Manuel Gusmão, com
o livro Migrações do Fogo. O livro
preocupa-se em, como o próprio autor diz, explorar a palavra até ao limite,
como uma corda de violino esticada. Recorre a alguma técnica cinematográfica, o
que dá ao livro uma densidade imagética espectacular. O segundo autor é
Ferreira Gullar, para mim o maior poeta vivo em língua portuguesa. A poesia do
Gullar é qualquer coisa do outro mundo. Tentar imitá-lo só pode resultar
naquilo que ele chama de fluir à toa. Mas constituiu uma boa base para
encontrar o meu próprio caminho, a minha voz interior. O terceiro poeta é
Herberto Hélder, que nem sequer se pode tentar imitar. Trata-se duma poesia
para ir sendo digerida ao longo da vida. O quarto é o poeta espanhol Leopoldo
Maria Panero e as suas elucubrações em torno da morte e da loucura.
L: Ao ler-se
a sua obra e como aqui já o disse, pode notar-se a preocupação em fazer uma
poesia diferente, preocupando-se muito com as técnicas e estética. Tinha já em
mente contrariar o cenário literário que se vivia na altura?
A.C: Eu só posso explicar isso tendo como referências o
Xitende. O Xitende surge num contexto em que tanto eu, como Dó Midó das Dores,
e outros membros do movimento tínhamos acesso à coisas que eram escritas lá
fora. Feliz ou infelizmente isto tornou-nos muito críticos em relação àquilo
que se escrevia cá dentro, a forma como os escritores viviam e produziam
literatura. Portanto, quisemos escrever alguma coisa que se demarcasse da
abordagem desenvolvida naquela altura. É por isso que sempre que escrevemos nos
preocupamos com essas mudanças. Se repararem a obra do Midó, A Bíblia dos Pretos, há uma
particularidade, aliás, há várias, mas tem uma dimensão muito grande para além
da carga poética e da forma como ele aborda o assunto; tem uma carga filosófica
muito forte e que não se encontra muito na nossa literatura.
A nossa ideia era tentar contribuir
com alguma coisa e trabalhamos até ao limite. E acho que foi essa preocupação em
escrever qualquer coisa diferente que nos permitiu chegar a algo relativamente
diferente sob ponto de vista de criação literária. Já nessa altura as nossas
referências tinham deixado há muito de ser autores moçambicanos, o que trouxe
esse perfume de alguma coisa diferente na escrita. Essa preocupação sempre
existiu, mas como deve saber há muito que se inventou a pólvora. Contudo, é
muito boa aquela fase em que se acredita que se pode fazer algo novo, pois
dá-se tudo e trabalha-se com garra.
L: E portanto, assim foi até ao conto, ao escrever A Febre
dos Deuses, que maneira de contar é aquela? Acho que é uma das melhores obras
que já li e com o justo prefácio de Ungalani Ba Ka Khosa que te acha um contista
quase que formal.
A.C: O conto é um género muito difícil, é o que te posso
dizer. É muito complicado. Se lhe disser que ainda hoje ando a procura de
ensaios e de contistas que aprimorem a minha escrita não vais acreditar. “A
Febre” é o resultado da minha convivência com a frase curta de Ernest Hemingway
e de Ignácio de Loyola Brandão. O livro Dentes
ao Sol de Loyola Brandão é uma obra notável. O autor transforma o sórdido e
corriqueiro em intriga e diegese. A Febre
dos Deuses é um pouco isso e mais. Através da frase enxuta e relativamente
fluida procuro dialogar com os moçambicanos sobre alguns problemas prementes
desta sociedade. Os textos “O Sacrifício”, “João Namburete” e outros que
constam do livro não são mais do que um retrato da atrocidade e desumanidade
que aos poucos se vão tornando um lugar-comum no país. O livro chama atenção
para a degradação de toda uma sociedade e fá-lo da forma mais directa possível.
Há pessoas que se sentem chocadas com as opções linguísticas usadas nalguns dos
textos mas o que está ali escrito não são mais do que as mesmas palavras que
recebemos nos nossos celulares ou mails todos dias. O que ali aconteceu foi a
transposição do discurso urbano. E acho estranho que algumas pessoas não o
reconheçam, quando estes mesmos indivíduos entre amigos usam exactamente aquele
vocabulário.
L: Os contos que constam desse livro têm traços do
quotidiano que vivemos, terá tido a intenção de fazer relato de coisas que
viveu?
A.C: Não. De forma alguma. A escrita não se pode basear nas
coisas vividas, então não seria literatura e não faria sentido. Qualquer
escrita ou conto que se preze tem de apresentar um conflito, isso é o mínimo
que se pede. Se fosse escrever uma estória, por exemplo, sobre meu trabalho
como docente, sem nenhum conflito ou diegese construída, não seria um conto. Aquele
livro tem uma particularidade interessante, é o resultado das coisas que ouvi,
li, eventualmente de algum potencial Andes no futuro. O que fiz naqueles textos
foi pegar nessas coisas e dei-lhes a volta. Trabalhei o material, dei-lhe
ossatura e alguma geometria. É basicamente isso. Entretanto, porque toda a
ficção assenta numa certa realidade, facilmente as pessoas visualizam as
estórias com factos de alguma forma conhecidos. Ouvimos quase todos os dias
notícias de mulheres cujos maridos, devido ao alcoolismo ou alguma insanidade
qualquer, golpeiam as suas mulheres com catanas ou outros objectos
contundentes. Para saber de alguma estória triste de prostituição já nem é
preciso ir à Rua Araújo ou à 24 de Junho, as residências universitárias
femininas dão-nos um quadro muito mais triste e deprimente. Mas voltando à tua
questão, essa aproximação dos textos ao quotidiano foi algo feito
conscientemente. E mesmo quando decidi reeditar o livro procurei preservar
isso. A maior parte dos textos foram reescritos, tirei-lhes os adereços, os
cosméticos, sempre à procura dessa perfeição inalcançável….
L: De facto
um livro é o culminar de muita escrita e reescrita…
A.C: Acho que nenhum autor fica contente com o seu livro
mesmo depois de terminado. O que acontece é que depois nos cansamos dele e
perdemos também alguma capacidade de identificar erros e algumas falhas.
Cansámo-nos e decidimos entregar. Mas todo autor tem sempre a necessidade de
reescrever, refazer, de dizer de outra forma, porque as pessoas a cada dia que
passa evoluem, vê outras coisas, essa é que é a questão.
Muitos daqueles textos excepto “O
Sacrifício”que para mim é o melhor texto daquele livro. Aliás, é um texto que
me caiu do céu. É um dos poucos textos em que não tinha nenhum referente, que
só me sentei e comecei a escrever, o texto ficou fechado logo a primeira. Foi o
único texto que não reescrito, desconstruído. Tudo o resto é resultado das
coisas que ouvia, das conversas enfim.
L: Nas suas
abordagens vê-se com frequência assuntos como loucura, conflitos familiares,
marginalidade, machismo e o sexo. Aliás, acho que descreve muito bem os actos
sexuais…
A.C: No livro “A Febre dos Deuses” pode haver tudo menos a
descrição de um acto sexual. Aliás, acho que não saberia dizer-lhe ao certo o
que é exactamente descrever bem um acto sexual.
L: Mas a loucura e o sexo o que lhe dizem como pessoa?
A.C: Os textos que abordam o sexo, só para reiterar, acho que
não descrevem o acto sexual em si, porque descrever o acto sexual implicaria
descrever os preliminares, o próprio acto e provavelmente o fim dele e o estado
psicológico das pessoas depois de terminar. Mas as partes do livro ou do texto
que fazem referência ao sexo, procuram introduzir um momento crítico nas acções
dos personagens ao longo de todo o texto. E tudo tem a ver com opções que cada
autor escolhe. Podia, simplesmente, deixar o leitor intuir. Mas aqui devo
culpar o adolescente Andes por ter optado por aquele caminho em detrimento de
outros muito mais interessantes sob o ponto de vista de enriquecimento do
diálogo leitor-escritor. Sim, o adolescente Andes porque aquelas estórias foram
escritas entre os meus 20 e 23 anos.
L: Mesmo porque estamos a falar de sexo e loucura que são
questões que muitas vezes são atribuídas aos escritores por exemplo, pode falar
do seu vício?
A.C: O meu primeiro vício é a música. Desde os meus nove anos
de idade que oiço música. Até cheguei a tentar ser música. Fundei uma banda e
tenho algumas coisas gravadas. Tive o privilégio de trabalhar com o falecido
Tony Django dos K-10. Mas por diversas razões acabei por desistir. Portanto, o
que lhe posso dizer é que sou um músico falhado.
Outro grande vício que tenho são
livros. Tenho uma compulsão muito grande pelos livros. Não poço entrar numa
livraria com dinheiro e sair sem um livro.
L: Nunca teve medo de ficar louco?
A.C: Isso é verdade. Não só tive medo como achei que já
estivesse louco.
L: Quando e como é que foi isso?
A.C: Toda a gente tem neuroses e eu tive várias. Uma delas,
por exemplo, tinha a ver com a minha relação com espaço. Eu passava muito tempo
dentro do quarto e havia aqui um problema porque sempre que saísse não podia deitar-me
(leio deitado ainda hoje) sem que antes espreitasse por todos os compartimentos
a certificar-me se a coisa (que até hoje não sei bem o que é) que me atormentava
não estava lá. Eu já era crescido, tinha mais de 20 anos. O que ilustra o meu
estado de espírito nessa altura é o facto de ter feita amizade com uma árvore,
cheguei inclusive a dar-lhe nome, chamava-se Joshua. O Midó das Dores escreveu
um poema muito simpática sobre a minha relação com a árvore.
L: Hoje descobri que já esteve na rádio Cidade e durante 12
anos esteve a editar a revista literária Xitende, qual é sua relação com o
jornalismo?
A.C: A minha relação com o jornalismo é de biscateiro. Eu não
me posso considerar um jornalista, não sou e nem posso ter essa pretensão. Se
fiz jornalismo é porque queria sobreviver e…
L: Mas sabe-se que a vida do jornalista é quase miserável
porque pouco ou nada se ganha nessa profissão, terá sido por isso que pautou por
outras coisas?
A.C: Eu nunca quis ser jornalista. Surgiu-me a oportunidade
de trabalhar num jornal como responsável de uma página de actualidade
internacional e aproveitei a oportunidade, procurando inovar a forma como se
apresentavam as notícias internacionais. O que os outros jornais fazem é
colocar na página do internacional, notícias de agências noticiosas
estrangeiras. Eu ia as notícias dessas agências e confrontava com a opinião de analistas
nacionais. Por outro lado, ser jornalista num país como o nosso, a pessoa
sujeita-se a muita humilhação e alguma estagnação, incluindo a morte quando se
pretende realmente fazer coisas sérias. Ainda não estamos totalmente livres. A
partir daí podes inferir o resto. Em parte foi também por isso que optei por
outras actividades.
L: Fale-nos
do vosso Núcleo Literário Xitende, em particular da idealização da revista do
mesmo nome.
A.C: Foi uma coisa difícil. Fui editor do Xitende durante 12 anos, o que foi
simplesmente um acto de coragem se se considerar a escassez ou mesmo inexistência
de recursos. O Xitende não tinha nenhum financiamento ou patrocinador, nada,
nós fazíamos aquilo sem apoios.
É verdade que fomos sortudos nalgum
momento. Houve gente de boa-fé em Xai-Xai que nos ajudou com papel, fotocópias
e impressões, sem que tivéssemos de pagar, o que ajudou imenso.
A revista existiu durante muito
tempo e as pessoas foram-se cansando, foram deixando de apoiar e tivemos de
financiar a revista com os nossos próprios recursos. Mas de qualquer forma foi
a experiência que talhou o escritor ou o possível escritor que seria o Andes
Chivangue.
L: …o possível escritor!
A.C: É preciso que tenhamos clareza das coisas. Há muitas
pessoas inclusive algumas são da minha geração, que olham para o espaço
literário como espaço de afirmação. Usam a literatura para ganhar status
político e social. Para mim a literatura é uma coisa sagrada, é uma coisa muito
especial e não tenho problemas em dizer que não sou um escritor. Eu gosto de
literatura, escrevo, publico quando tenho o que publicar, mas prefiro não assumir-me
como escritor e não tenho problemas com isso porque existem pessoas que
realmente trabalham, cuja actividade consiste mesmo em escrever. Então qual é a
diferença que estabeleceríamos entre eu digamos que esporadicamente escrevo e
publico e aqueles que todos dias acordam escrevem, têm prazos, metas, se somos
todos escritores? Você poderá dizer que são os dois escritores mas que cada um
tem seu ritmo, é possível…é algo para discutir.
O ACTIVISTA LITERÁRIO
L: Você viveu um tempo em que havia revistas literárias e
que a imprensa de certa forma dava espaço para a publicação de textos
literários, mas hoje o cenário mudou. O que tem a dizer sobre isso?
A.C: Eu e o Midó quando aparecemos com o debate da morte da
literatura moçambicana, o objectivo era alertar para o marasmo que se vive no
campo da literatura. Usamos um discurso polémico para chamar atenção a coisas
que já estavam a acontecer nessa altura. Existe uma grande promiscuidade, pelo
menos aqui em Moçambique, entre a literatura e a política e os respectivos
políticos.
Alguns escritores usam a literatura
para se projectar politicamente, esse é o problema. E não é só isto, se olhares
para o mundo dos concursos tenho a incrível sensação de que é um mundo que está
muito sujo. Na maior parte dos concursos nacionais, os vencedores são o resultado
de vários esquemas de concertação do que do trabalho que apresentaram ao
concurso. Depois há um problema, dos vários, é que existe um medo muito grande
de dizer-se aquilo que se pensa. As pessoas não fazem crítica aberta,
privilegiando os corredores e bastidores emitirem as suas opiniões. Tudo isto
cria uma situação de letargia, uma situação em que não evoluímos, são sempre as
mesmas pessoas a publicar, são sempre as mesmas sensações, quando é para
discutir discute-se as mesmas coisas. É como se o tempo não passasse e as
pessoas mais atentas acabam por afastar-se desses meandros.
Provavelmente a falta de revistas
literárias não seja só de hoje. Quando olho para a época em que me estreei,
havia o Xiphefu, o Xitende, Oásis, Horizonte e talvez
mais duas ou três. Não muito mais. Mas sim, estávamos melhor comparativamente à
sua geração. Os jornais reservavam algum espaço para a poesia ou conto. E isto
tem impacto ao nível dos iniciantes na criação literário. Não têm um espaço
para comunicar e a primeira opção ou ambição acaba sendo a publicação de um
livro, o que na minha óptica não está certo. Se o nosso Ministério da Cultura
não fosse um antro de incompetência e mau gosto talvez tivéssemos melhor
cenário
L: Durante o seu discurso vem citando muito o Dó Midó das
Dores, aliás, aquele que juntos tem dado opiniões consideradas contundentes
sobre a Literatura Moçambicana…
A.C: Eu e Midó somos camaradas de batalha há muitos anos. E
sempre usamos a literatura como um instrumento de luta. A literatura serve para
mudar coisas, mais do que esta função lúdica. Não se pode ter uma literatura
útil se ela estiver desligada dos problemas prementes dessa sociedade. A
escrita criativa ajuda a reflectir e, sobretudo, alertar as pessoas para os
diversos perigos sociais. É por isso que insisto em dizer que a literatura deve
estar em cima dos acontecimentos. Os jovens não podem querer escrever como
Craveirinha, Rui Nogar ou Knopfli porque estes fizeram-se escritores num
contexto específico. São bons, mas são bons no seu tempo. E porque os contextos
mudam, é preciso adequar os nossos óculos de leitura a essas mudanças. Ou seja,
em vez de termos jovens a reproduzir o verso “eu sou carvão e tu arrancas-me
brutalmente do chão” devíamos tê-los a dizer coisas como “meu estômago voa preso
no bico duma gaivota”. Os problemas de hoje são os nossos desafios hoje. Não
estou aqui a desvalorizar Craveirinha ou Knopfli, atenção, são bons e foram
bons no tempo em que viveram, no tempo em que escreveram, têm um lugar
reservado, mas sinto que nós precisamos de coisas que reflictam os assuntos
actuais. Poder-se-á dizer que é preciso tempo para decantar os assuntos, mas
nós não nos podemos dar o luxo de ficar a esperar pelo tempo.
L: Em tempos terá dito que a literatura moçambicana estava
morta, e agora que opinião tem sobre ela? Terá saído da tumba?
A.C: Dizer que a literatura está morta foi uma forma que o
Midó encontrou de colocar o problema. Mas que ela continua moribunda isso é
verdade.
Se reparares quantos grandes autores
já surgiram, quantos grandes eventos ligados a literatura foram organizados
desde o tempo em que lançamos o debate sobre a morte literatura, são muito
poucos. Continua a ser o Mia Couto a publicar, a Paulina Chiziane, o Ungulani,
o Marcelo Panguana, etc. Existe, obviamente, uma nova vaga de aurores como o
Mbate Pedro, Lucílio Manjate, Rogério Manjate, Sangare Okapi, Midó das Dores,
etc. Mas sinto que precisamos de muito mais para poder criar a diversidade
necessária. E isto só é possível se houver políticas e alguma humildade por parte
dos que têm estado a surgir. Falta-nos isso. Uma pessoa publica um ou dois livros
e já se julga a máxima referência do país. O caminho é muito mais longo e
exigente. Gostaria de poder comentar mais sobre isto mas estes quase dois anos
em que estive fora do país não só me tiram essa legitimidade mas também não me
permitiram ir acompanhando o que aconteceu por aqui nos últimos tempos.
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