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    “Se não escrever mais nada não me importo”


    É uma mulher que tem viajado bastante. Está constantemente a ser convidada a participar em conferências em países da África, América e Europa. Mas pouco se tem exposto no seu país para falar dessas andanças. Já lhe pedimos em inúmeras ocasiões para que nos contasse o que anda a fazer “lá fora”, tendo sempre se recusado. Porém nós nunca desistimos. Lília Momplé é de fácil trato. Carrega uma idade que, mesmo assim, não consegue tirar-lhe os traços duma macua típica. É uma escritora de reconhecido mérito, com livros traduzidos por editoras da alta roda, como a Heinman. Foi secretária-geral da Associação dos Escritores Moçambicanos. Funcionária da UNESCO. Professora. Não tem medo de falar e, estar com ela, é sempre agradável. Sobretudo quando é para provocá-la. E foi o que fizemos quando, por fim, acedeu ao nosso pedido de entrevistá-la.



    - Tem viajado muito pelo mundo. E mais recentemente esteve em Portugal numa conferência onde a língua de comunicação era o inglês e você era a única africana, ainda por cima dum país que não tem aquela língua como oficial. Fale-nos um pouco dessa sua participação lá.
    - Em relação a esta última deslocação, tratou-se da Nona Conferência Sobre o Conto em Língua Inglesa. Quando recebi o convite - porque nunca escrevi em inglês, eu escrevo sempre em português, apenas tenho uma parte da minha obra traduzida para o inglês, nomeadamente um romance que é o Neighbours, traduzido e editado pela Heinman, uma editora inglesa e alguns contos que estão editados em antologias várias da McMilan, da Heinman - eu disse o seguinte: nunca escrevi em inglês. Não terá havido aqui algum engano? E os organizadores disseram que não, que não houve engano nenhum, “nós queremos que venha mesmo a Lília Momplé, porque temos os seus contos traduzidos e achamos que podemos convidá-la”. Nessa conferência, que foi organizada conjuntamente pela Universidade de Letras de Lisboa e por uma organização norte-americana que se dedica ao conto em língua inglesa - esta é a nona conferência internacional que fazem em conjunto e desta vez foi em Lisboa - e então fui convidada para fazer parte, onde estiveram autores consagrados dos Estados Unidos, do Reino Unido, do Canadá, da Austrália, Nova Zelândia, Irlanda, Portugal e o único africano que lá estava era eu, que até nem sou de língua inglesa. Para mim foi assim pouco surrealista, mas de qualquer modo era uma ocasião que não podia deixar de aproveitar. Éramos 50 escritores, mas havia também editores, tradutores, jornalistas de renome. Todos nós éramos umas 130 pessoas.


    - E qual foi a sua sensação ao aperceber-se que era a única participante de um país não falante do inglês?

    - Eu não me apercebi porque logo que recebi o o convite, disseram-me que a conferência era toda ela falada em inglês e quem eram os escritores que iam. Havia alguns portugueses como Urbano Tavares Rodrigues a Hélia Correia e vários outros que também falam inglês. Eu achei um pouco estranho o facto de eu ser o único escritor de África e ainda por cima o único que nunca escreveu em inglês. Os outros todos escreviam em inglês e o tema era O Conto em Língua Inglesa. Agora no que me diz respeito, a minha ida aconteceu talvez porque o meu conto foi traduzido para inglês. Porém todo o caso foi interessante a minha participação. Li o meu conto Stress que vem no meu último livro que tem como título Os Olhos da Cobra Verde e foi muito bem aceite e participei também - fui um dos seis escritores escolhidos - no último painel que tratava dum tema genérico que era Arte Personificada no Mundo Globalizado, e penso que a minha participação nesse painel foi muito importante. Porque os escritores que falaram antes de mim, falaram das suas experiências, sobre aquilo que eles pensam sobre esse assunto, ao passo que eu como africano falei como alguém que sente na carne esse problema. Então teve um impacto muito grande. Eu fiquei admirada porque esse problema para eles é uma coisa assim muito longínqua, ao passo que para nós africanos não. Eu perguntei porquê que a arte maconde, que é uma arte muito elaborada é considerada em muitos países do ocidente como artesanato? Porquê que nós os escritores africanos quando somos editados pelas grandes editoras como a Heinman ou Mcmilan, estamos numa série de escritores africanos? É este tipo de coisas que gerou um acordar de consciência nas pessoas que lá estavam e as pessoas ficaram agradecidas por esta abordagem que eu trouxe a conferência. Temos aqui muito bons escritores: o Ungulani, o Eduardo White, o Armando Artur, o Guita Jr. Júlio Carrilho e outros, e os antigos, Marcelino dos Santos, são realmente escritores de alta qualidade que eu comparo a outros que têm muito cartaz. Daí que, quando eu era secretária-geral, a minha preocupação era manter aquele acordo com a British Council para que os escritores aprendessem inglês e gostaria que o Juvenal continuasse com essa aposta.

    - Acha que a nossa literatura é suficientemente conhecida no estrangeiro?
    - O que eu penso disso é que realmente nós temos uma grande potencialidade. Os novos escritores, a meu ver, escrevem coisas mais ou menos descartáveis, mas há ainda uma potencialidade nos escritrores de serem, em certa medida, embaixadores de Moçambique no campo cultural, porque na verdade isto pode acontecer. Se o próprio país tivesse mais auto-estima e nos considerássemos realmente bons e fizéssemos mais em prol da literatura moçambicana, caminharíamos muito mais alto. Deveria haver mais apoios do mecenato, do próprio governo. É preciso incentivar, apoiar os escritores. Eu lembro-me quando foi dos cem melhores livros africanos, Moçambioque vinha logo imediatamente após a Nigéria que é um colosso, com cinco escritores e isso quer dizer alguma coisa.

    - De que Moçambique tem bons escritores é indesmentível, mas o que se diz é que temos uma incapacidade de exportâ-los. Concorda?
    - Concordo plenamente. No meu caso tenho tido a sorte de os estrangeiros se lembrarem-se de mim, porque de facto tenho sido convidada para lugares muito estranhos. Estive na Finlândia 20 dias a convite da Associação dos Escritores Finlandeses, que é onde participei num congresso muito famoso que teve lugar há dois anos, onde estavam 200 escritores de todo o mundo e eu era a única de língua portuguesa. - E também já esteve numa das maiores Biblioteca do mundo nos Estados Unidos da América! - Essa “aventura” foi que as universidades americanas, acho que Massachussets e Nova Yorque, têm um departamento de Português-Espanhol e fizeram um estudo sobre Moçambique e esse estudo foi editado em livro. Quando foi do lançamento desse livro sobre Moçambique pediram aos alunos da universidade para escolherem um escritor de Moçambique para falar da sua obra e dos três escritores que eram Paulina Chiziane, Mia Couto e Lilia Momplé. Os alunos escolheram a mim e é assim que eu fui lá parar. Na maior biblioteca do mundo, que é a Biblioteca do Congresso fui apresentada pelo nosso embaixador lá, que é o Armando Panguene. Ressell Hamilton falou sobre a minha obra e eu própria falei sobre a literatura, sobre a mulher em Moçambique. Foi uma coisa muito interessante. O patrono desse colóquio foi o ex-presidente do Brasil Henrique Cardoso. Abriu o colóquio e realmente foi assim uma ocasião de nós sentirmos que a literatura moçambicana, mais uma vez, é importante lá fora. Porque a tese que é este livro devia ser lido pelos políticos em Moçambique. Os políticos deviam ler os demais escritores moçambicanos.

    - Sempre que se fala de literatura no feminino em Moçambique, os nomes que avultam são da Lília Momplé e Paulina Chiziane. Até que ponto a presença destas mulheres pode contribuir para a mudança das mentes dos políticos?
     - Nós alertamos para possíveis problemas que este país possa ter. Alertamos duma maneira literária sobre problemas que podem ser muito graves se as pessoas não tomarem atenção. Eu até tenho vergonha de te estar a dizer isto. Mas realmente é essa a tese dessa obra.

    - Mas será que os políticos e a sociedade têm a dimensão daquilo que vocês as duas estão a fazer?
    - Há políticos que realmente têm a dimensão daquilo que fazemos - não me refiro a mim nem à minha obra - entre eles o ex-presidente Joaquim Chissano, eu gostaria de fazer menção, porque Chissano é realmente um homem de cultura, um homem que lê, não são todos, mas eu penso que há uma boa parte dos nossos políticos que não pensa que a literatura pode ser alguma coisa que lhes possa fazer bem. Eu não ando - não quero estar a ser injusta – a fazer pesquisas, mas por aquilo que eu vejo, eu penso que a literatura é muito importante não só para os políticos, mas os políticos são o modelo, também os intelectuais entre aspas, porque intelectual não é aquele que engole muitos livros e muitas coisas, é muito mais do que isso e essa capacidade de elaborar sobre o que se lê só a literatura pode dar. Há uma crítica portuguesa que chama a literatura a disciplina de um milhão de dólares. Eu achei interessante isso porque na verdade a literatura é aquela disciplina que é transversal a todas as outras, sem a qual as outras pouco podem render. Por exemplo na Finlândia há cinquenta anos as pessoas andavam quase descalças, a comida era aveia com alguma coisinha. Mandavam sacos de roupa usada para as escolas há cinquenta e tal anos. Hoje a Finlândia já inventou a Nokia. É um país onde se vive muito bem, eu estive lá. Porquê? Porque apostou ferreamente na cultura e na educação. Aquelas bibliotecas onde eu estive são autênticos palácios da leitura onde isso é tomado com muita seriedade. Desde crianças pequenininhas até aos adultos, o ambiente literário da cidade é realmente notável contrariamente ao que a gente vê aqui ou em Portugal, em que as pessoas estão sempre agarradas ao telemóvel. Eu pensava que lá ia encontrar isso. O telemóvel para eles é uma coisa secundária. Há outra coisa que realmente a literatura lhes deu: uma capacidade de renovação, de descoberta e de sair da rotina.

    Não se dá o devido valor à mulher escritora

    - Lília, você tem livros nos Estados Unidos. Qual é o valor que isso assume para si e para o seu país?
    - Isto é muito bom, realmente. Quando, ainda há pouco tempo, recebi um telefonema dum sujeito lá nos EUA que dizia assim: olha viemos pedir autorização de publicar o seu livro Ninguém Matou Suhura, porque nós consideramos esse seu livro o mais belo livro sobre o colonialismo que nós lemos. Isto é muito bom a gente ouvir. Isto é muito importante, mas o que falta a nós é essa consciência. Eu própria não tenho consciência. Fico muito admirada quando me convidam para coisas extraodinárias como por exemplo no ano passado, quando me convidaram para um colóquio sobre as línguas portuguesa e francesa no mundo globalizado. O quê que vou fazer aí? E era uma convidada de honra, certamente porque eles acham que a literatura moçambicana não é má.


    - E por esta via, acha que a mulher escritora é respeitada aqui?
    - Eu penso que não é dado o devido valor. Por exemplo a Paulina e eu fomos convidadas a ir à Universidade de Santa Barbara, para falar da nossa obra e veio da Inglaterra uma alta Prof. Doutora da Universidade de Manchester para falar sobre a Paulina Chiziane e sobre a Lília Momplé. Para mim jamais deslocaria uma entidade daquelas de Manchester a Santa Barbara para falar de coisas que eles não considerassem realmente muito bom. - Aliás, essa Prof. Doutora vinda de Manchester, referiu que a Paulina Chiziane é a primeira mulher a tratar da necessidade sexual feminina de forma literária e daquela maneira, sem tabu. Quer comentar isto? - A Paulina foi a primeira mulher e única até lá a tratar do desejo sexual feminino que sempre foi tabu aqui, abertamente nos livros. Assim como se trata do desejo sexual masculino com muita naturalidade, é mais difícil tratar do mesmo assunto em relação à mulher e a Paulina fez isso duma maneira literária, não chocante, o que ela achou realmente muito positivo. E essa crítica literária é professora da Universidade de Manchester.

    - Lília você frequenta pouco a sociedade. Inclusive “recusou” tornar pública uma homenagem que fizeram seus alunos há pouco tempo. Porquê essa posição?
    - Isso também depende do feitio das pessoas. Isso vem da esteira de que eu não faço marketing dos meus livros. Escrevo e deito-os cá fora, o que é mau. Eu deveria ter aprendido isso. Mas para mim o escritor devia ser aquele que escreve, publica e nada mais. Quem quiser abrir caminhos para vender o livro será talvez um agente literário que eu não tenho, porque essa não é a função do escritor e custa-me bastante estar metido nisso e nem tenho jeito para tal. E isto que estamos aqui a fazer e eu agradeço da tua parte, que é tornar conhecido alguma coisa dessa pessoa que escreve. Eu penso que o escritor moçambicano até deveria ter mais cuidado e procurar ser conhecido. Não é mal nenhum, embora não estivesse metido propriamente em acções de marketing. Mas se vem um jornalista e conversamos, não é mal nenhum. Agora, quando eu me recuso a tornar essa minha homenagem conhecida, vem na esteira dessa dificuldade que eu tenho de me expor assim muito e eles aceitaram isso. Foi realmente uma homenagem muito bela, comovente mesmo e deram-me uma espécie de diploma, que é uma coisa que eu sempre guardarei como um tesouro.

    - Ainda sobre as suas viagens constantes. Não estará essa actividade a tirar-lhe o tempo necessário para escrever mais livros?
    - Eu penso que não é isso que impede que eu escreva. O que impede que eu escreva, é que não sou capaz de escrever por escrever. Só escrevo sobre aquilo que realmente me impressiona muito, ou que eu tenho necessidade de partilhar alguma carga, como por exemplo neighours: foi uma carga muito grande psicológica, porque depois daquela morte duma colega minha do Ministério da Educação e o marido, na África do Sul, um jovem casal, eu passei muito tempo com aquele peso, porque ela era a própria vida e era uma pessoa jovem, muito viva e ser assim morta, ela e o marido, numa noite, era uma carga psicológica muito grande. Daí nasceu Neghibours. Os outros, o primeiro conto, por exemplo, foi sobre tudo o que ouvi e vi sobre o colonialismo e o último foi sobre aquilo que ouvi e vi durante a guerra de destabilização dos 16 anos. Portanto, eram coisas que me impressionavam. Tenho agora na minha cabeça um livro que há muito tempo eu gostaria de escrever, mas que esse, realmente, precisa de condições subjectivas e objectivas para eu escrever, que é a história de amor entre o meu avô e a minha avó.

    - O que são condições objectivas e subjectivas?
    - Objectivas é ter um espaço calmo, não me preocupar com nada, um espaço belo, possivelmente no norte, que é onde a história se passa e não ter preocupações. Há bem pouco tempo tive preocupações que não vou dizer quais foram, mas foram muito sérias que me impediram de me concentrar nesse livro que eu quero que seja o próximo. Até que depois disso se não escrever mais nada não me importo. Mas esta é a história de uma macua negra e de um Francês, consul da França na Ilha de Moçambique, na época de Mouzinho de Albuquerque, numa época realmente interessante e eu não gostaria de deixar de escrever. Até porque é uma história sem ter que dizer que é contra o racismo sem ter dizer que é contra a hegemonia de culturas.

     - Fala de um sítio calmo e belo. Maputo não é calmo. Teria capacidade de ir trabalhar noutro lugar depois destes anos todos de vivência de Maputo?
    - Eu penso que sim porque Maputo ultimamente não tem sido meu lar, porque tenho viajado realmente muito. Sabe que durante quatro anos fui membro do conselho executivo da UNESCO e todos os anos eu tinha que viajar para Paris onde estava por vezes longos períodos, acrescentando a isso o facto de ao longo desses anos ter sido muito convidada para fora. Fui quatro vezes aos Estados Unidos, fui quatro vezes a Alemanha, três vezes ao Reino Unido, Portugal, França, e além disso a cidade de Maputo, custa-me dizer isso, a meu ver, está a ficar cada vez, ou seja, como disse ontem o José Mucavele, cada vez nos sentimos menos donos desta cidade. Tu vais ali àquela zona da Julius Nyerere onde vês o luxo, que não é luxo, mas ostentação, e vais aos subúrbios onde encontras a grande miséria que existe entre a maioria da população dessa cidade. E isto realmente não é saudável. Não é agradável de se dizer.

    NOTÍCIAS – 23.08.2006

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