Eduardo Quive - Moçambique
Vítimas das imigrações como muitos bantus, os Chissanos que são no geral da província de Gaza, subdividem-se entre os do Guijá, no Chókwè, região do Limpopo e os de Bilene em Macia e Mandlakazi. Pedro Baptista Chissano, este a quem nós retratamos nesta entrevista, nasceu no Guijá, ao sétimo dia do Março de 1956, filho de pai motorista no Chókwè que depois veio a integrar a empresa pública, que na era colonial denominava-se de Serviços Municipais de Viação (SMV), hoje conhecidos por Transportes Públicos de Maputo (TPM). Aliás, foi essa integração do pai nos SMV, que tornou Pedro, em menino de Lourenço Marques a partir de 1962. Recebeu o nome do seu bisavô, é avô do seu pai, Chicolonhe, nessa altura estava a decorrer o processo de colonização do Limpopo. Portanto, o seu primeiro nome foi Chicolonhe, mas esse nome caiu no desuso, entretanto era usado antes de vir para Lourenço Marques. Daí em diante, fica Pedro Chissano. Um autêntico activista literário, escritor dos outros e poucas vezes escritor de si e como se não bastasse o facto de não publicar as suas obras, tenta sufocar o jornalista que há em si. No seu jeito de falar com aquela nostalgia, Pedro Chissano, vai citando nomes, deixando frases e canções que não saem da sua contemporânea memória e sempre que entende, chora os tempos sem se queixar de nada, apenas da saudade que reconhece ser maior. Super dotado, Pedro cairia um bom historiador e até Antropólogo, consegue harmonizar os termos, às origens e preservar os acontecimentos com os devidos efeitos. Eis a razão de ser a figura que homenageamos neste número que fala da exclusivamente da Literatura Moçambicana e, particularmente, da Associação dos Escritores Moçambicanos. O menino Pedro tem na sua memória “O Chão das Coisas”.
Pedro Chissano: Saio porque meu pai que era motorista conseguiu um outro emprego nos Serviços Municipais de Viação aquilo que vocês chamam de TPM (Transportes Públicos de Maputo) agora. Isso foi em 1962. Ele foi o primeiro preto a entrar para esses serviços. Estudei na Munhuana, primeira e segunda.
Chegado a esse nível disseram ao meu pai “os seus filhos não podem continuar ai” e fomos ao João Belo, onde faço a 4ª classe na Escola Secundária Estrela Vermelha em 1968. Aprendi a jogar basquete ali e outras coisas. Estávamos na sociedade portuguesa.
L: E quando chegaram, viveram no bairro de caniço?
P.C: Não cheguei de viver no bairro de caniço no entanto, quando cá cheguei fomos viver ao lado da casa do Senhor Enoque Libombo, que chegou a presidente da Associação dos Negros de Moçambique. É pai da Aida Libombo que foi vice-ministra.
Vivemos na casa que era do seu irmão, Alfredo Libombo que arrendou ao meu pai. Bem ao lado. Vivemos ali durante dois três anos. Considerava-se bairro de caniço, mas as casas onde vivíamos não eram de caniço, tinha até luz e água.
Foi quando a vida do menino Pedro começou a mudar. Vivia numa palhota lá de onde vinha, mas em Lourenço Marques, dado a profissão do meu pai, não era permitido viver em más condições. E ele recebia o suficiente para arrendar uma boa casa, ter os filhos numa boa escola e educar-lhes melhor.
Fui baptizado na Munhana entre 1964 a 65.
Depois fomos viver na avenida Paiva de Andrade, agora Av. Siad Bar. Grande parte dos prédios que ali estão, vi a construírem. Eu brincava ao lado de uma cantina que se chamava Benfica no Alto-Maé, mas agora aquilo já não existe. Essa gente sempre preocupada em matar a memória, não é? Muda-se tudo todos dias.
A memória boa que tenho é do tempo que vivia já no Alto Maé, cá na zona de cimento e não lá nas lagoas, nos Libombos. Quer dizer, começamos a ser cosmopolita, mas entre pobres, porque havia também brancos pobres, aqueles que vinham de Goa. A gente chama Indianos, porque eram de facto indianos. Só que os portugueses chamava-os de Goeses, porque era sua colónia. Portanto, estávamos numa colónia de pretos assimilados e semi-pobres, brancos pobres e ricos, goeses, em fim, brocávamos juntos.
L: Creio que nessa altura já entrava em contacto com os livros, a leitura…
P.C: Sim. O meu padrinho de baptismo era chefe do meu pai, um fiscal na empresa dos transportes. Eram pessoas, embora não ricas, mas com cultura. Mensalmente eu recebia um pacote de livros. Além de que é a partir daqui que vou a Escola Joaquim de Araújo, ou Estrela Vermelha, hoje, onde cheguei a bibliotecário de turma. Tinha um cacifo e a minha tarefa era distribuir livros aos alunos. Naquele tempo era no máximo por turma, 35 alunos.
Aí decantou-se a paixão pela leitura, porque era obrigado a ler. Ler, ler, ler e interpretar; fazer redacções, etc.
Quando vou para a Escola Comercial, aí aconteço como um pequeno redactor. Porque lembro-me que ainda no primeiro ano do comércio iniciávamos a fazer pequenas redacções e o professor por eu ser preto disse numa dessas vezes que apresentei mau trabalho “não vou acreditar que você preto pode escrever desta maneira”. Mas, eu acredito que escrevia bem devido a acumulação de léxicos, por muita leitura. Quando lemos muito há momentos em que as coisas saem sob outras formas, criatividade.
Mas na escola comercial não foi tudo. Aprendi a tocar viola. Gravo dois discos no estúdio Delta Publicidade, com um grupo chamado CONCERTO GUITARRA ELÉCTRICA. Gravamos no dia 01 de Abril de 1974, quatro temas: USIWANA, MARIA ROSA, cantadas em ronga por um colega meu que as compunha. O triste equívoco ai pela idade, já vez o alto nível de intelectualidade de um menino que está a despontar, Pedro Chissano, está lá na capa do disco, Escrito em português FELICIDADE A VOCÊS. Eu tinha 17 anos em 1974.
A letra e música foi feito por mim, quem me ensina é um colega que já morreu, lá do Instituto Vasco da Gama, chamava-se Octávio David Mahumane, a quem gostaria de deixar uma homenagem escrita. Outro é o Jonny Job Mondlane, esse está vivo. Mas o falecido que cantava “Ussiwana, Ussiwana; Hine hi ta fana na Jesus a nga fela Ussiwanine” é o Ambrósio Dantas Pedro Coisinha, gostaria de deixar este nome registado por que são companheiros de jornada. Eu tinha 17, Ambrósio tinha 20 anos, era o mais velho.
A registar que o Ambrósio Dantas Coisinha cresceu na Munhuna onde fiz a 2ª classe. O Octávio David Mahumane, conheci na Estrela Vermelha. Os brancos começaram a nos chumbar muito na Estrela Vermelha por causa desses velhotes, o Guebuza, Albino e Lina Magaia, Josina, andavam a fugir. Os brancos começaram a perceber que “estes miúdos basta fazerem o 5º ano fogem vão para a Frelimo” então começaram a travar-nos. Tu não passavas de qualquer maneira. Em 72, bastava passar o 2º ano, os gajos travavam-te. Então os pais gastavam muito dinheiro porque ficávamos muito tempo no ensino. Eram 450 escudos por mês. É onde conheço o David Mahumana, mas depois passei e fui para o Comércio.
Consegui fazer a Escola Comercial, mas veio em 1974 o golpe de Estado, aí instala-se a confusão. O meu pai tinha muitos filhos, no total somos 14. Eu sou o 10º filho, estão a minha atrás 9 irmãos e 4 á frente. Alguns são célebres como o João Chissano que foi treinador de Costa do Sol, agora é treinador adjunto da Selecção moçambicana de futebol. Mas antes dele tive duas irmãs artistas, a Ana Vasta Chissano e Joaquina Chissano que estiveram na Companhia Nacional de Canto e Dança. Esta coisa de arte persegue-nos. O Alfredo Chissano também está ligado a arte, esteve na Sociedade Moçambicana de Autores e agora no Instituto Nacional do Livro e do Disco com o Ungulani Ba Ka Khosa.
Mas voltando às leituras. Em 1974, decido trabalhar, o meu pai tinha já muitas despesas. Fui a Niassa, não porque quis. Quando volto do Niassa tinha a mania de que já escrevia então venho encontrar-me com o Albino Magaia e cruzo-me com o Ungulani aqui (na AEMO), o Armando Artur também andava por aqui, ele era o mais novinho. Khosa era professor e o Armando ainda a estudar.
É aqui na Associação dos Escritores Moçambicanos onde se caldeiam novas vontades e o gosto por escrever. Por via disso acaba nascendo a Charrua revista ou grupo que fui um dos fundadores e coordenador. O Tomás Vieira Mário, fui resgatá-lo, andava por ai, eu sabia que ele escrevia muitas coisas, tinha uma escrita muito bonita. Chamei o Tomás, até hoje ele diz-me “eu tinha medo de entrar na associação dos escritores”, bom tinha medo coisíssima nenhuma, não tinha entrado antes, tinha esse receio.
O Albino Magaia já o conhecia pelo nome, mas conheci-o melhor em Niassa, porque ele como antigo combatente na clandestinidade, juntamente com o Malangatana, Samora Machel, a Frelimo, (quando digo Samora é porque era quem estava em frente das grandes decisões), manda-o para Niassa. Nessa altura eu estou a vir de Cuba, 11º Festival Mundial da Juventude Estudante, apanho o Albino Magaia na mesma casa onde vivi.
Fui a Cuba em 1978 a chefiar a delegação do Niassa. Fui descoberto lá em Mecanhelas onde estava. Encontrei em Niassa, o Hilário Matusse, estivemos juntos na Escola Comercial, mas brincámos juntos no Niassa.
O próprio Hortêncio Langa, ia lá cumprir outra missão, o encontrei. Foi professor no Niassa, mas isso compete a ele dizer. No entanto, lembro-me que a esposa dele ou a mãe dos filhos dele mais velho estava na Rádio Moçambique na altura.
Fizemos um pequeno conjunto de amigos lá. Trocávamos livros, conversávamos e essa prática veio reforçar-se na AEMO. Além de nós, fomos conhecendo outros jovens que foram chegando, os da Forja, estou já a ver o Castigo Zita, estou a ver um que está aqui no Ministério da Cultura que já não me lembro do nome. Depois viemos conhecer esses meninos da Oásis, e outros com os quais estamos a fazer de facto este esforço de crescimento mútuo. Depois sois vós a aparecer agora também a incomodar-nos com os livros, embora não tenham surgido aqui, mas estão a fazer as coisas com zelo. É um núcleo positivo que eu acredito, nos ajuda a colocar – alicerces já os temos – mas ajuda-nos a colocar algumas pedras sobre nós próprios. Não nos bastamos a nós próprios, precisamos sempre de maior confortabilidade – se quisermos – estética ou de solidez e a gente vai buscando nos mais novos esses que nos aparecem, vós inclusos lá.
Esta é a pequena história do menino Pedro.
Depois fui coordenador da Charrua, fui muito trabalhador em levar livros à Impressa Nacional. A pessoa que mais saia daqui para levar livros dos outros a Impressa Nacional, era eu. Tive uma relação muito especial com o Júlio Navarro.
Quando ele era chefe das edições daqui, ficava naquele gabinete onde está o Alves, tinha muitos papéis. A minha missão era ler, entregar ao Albino Magaia na altura dizendo que a proposta era lançar este ou aquele livro. E foram muitos, “Magoda” do Hortêncio Langa, livros do Armando Artur e muitos outros.
Eu era muito preguiçoso em ter as minhas próprias coisas. Só agora lancei o “Boas Festas Chiquito”, tem o “Algumas histórias e brincadeiras com B grande” eu sei que está pronto, mas só o secretário-geral é que pode dizer quando é que isso sai.
Colaborei com muitos jornais, no “Notícias” o “Kikirigóóó” ou o “Canto do Galo” é que produziu o “Boas Festas Chiquito”. Depois fiz o “Polígamo 2” que ainda não sistematizei para livro. Os contos que vão sair são de textos publicados na Charrua e na revista “Tempo” sobre tudo. Colaborei com o “Savana” nos tempos de Juvenal Bucuane, com crónicas.
L: Quando entram na AEMO e criam a Charrua, como é que foram recebidos por aqueles que já estavam dentro da associação, como por exemplo, o Rui Nogar?
P.C: O Rui Nogar era uma pessoa especialíssima. Provavelmente por causa do passado recente dele: preso político, um indivíduo complacente para com os outros, tolerante. Tu podes ver ao ponto mais alto, como o comportamento de Nelson Mandela com as pessoas que o encarceravam, quando ele sai como os trata. Não quero dizer que a cadeia seja um belíssimo centro de reeducação, mas de reflexão é, muita reflexão. E o Rui Nogar foi muito excepcional.
Tivemos problemas com algumas figuras – não é oportuno dizer quem são – mas
nem todos nos deixavam passear por aqui. Há espaços físicos em que éramos ditos “hei hei hei, vocês aqui não ficam”, pessoas da direcção da AEMO que saiu em 1982.
Tivemos que provar com trabalho que podíamos ser acoitados na AEMO. Esses trabalhos revelaram-se nas próprias edições da Charrua. Mas essas pessoas que não nos queriam ver, vinham com estigmas - é bom que se diga isso – vinham estigmatizadas das redacções dos jornais onde trabalhavam e sobre tudo quando a cor é mais escurinha. Foram maltratados. E aquele estigma, a tendência humana é passar para gerações subsequentes e dizer “sofram lá um pouco mais, não podem ter as coisas de mãos beijadas”. Mas foi boa coisa, porque não há aqui gente que saiu ferida, paraplégica, estamos todos em pé e conversamos até com essas pessoas, salvo, aquelas que já partiram.
L: Nota-se hoje alguma inoperância em novos projectos de revistas literárias. Como é que faziam para manter a Charrua?
P.C: O problema daquele tempo é que cada um de nós saía do seu local de trabalho e vinha para aqui pensar Charrua. A única coisa que tínhamos em mão para a nossa afirmação era a Charrua. E a partir do momento que saiu o primeiro número, decidimos que todas as semanas – se não todos o dias – tínhamos que nos encontrar. E inventamos aquilo que chamamos “Jantar Literário”às sextas-feiras. Todas sextas-feiras estávamos na AEMO.
Os Jantares Literários eram a consagração daquilo que nós fazíamos. Ainda vejo o Ungulani pendurado na janela a ler um dos seus textos, assim um bocado ébrio naqueles tempos, com uma voz um bocado rouca e nós a batermos palmas, pá, “é um texto conseguido”!
Isto fazíamos todos nós, uns com maior e outros com menos propriedade. E fomos crescendo.
L: Algo chamou-me atenção durante as leituras que fiz de algumas edições da Charrua, foi o facto de ter nos revelado uma escrita sua mais jornalística. Reconhece essa influência?
P.C: Provavelmente. Tenho algumas coisas que herdei de jornalistas bons. Há jornalistas bons, por exemplo, um Albino Magaia, um Calane da Silva, um Tomás Vieira Mário – apesar de ele dizer que quem o trouxe aqui fui eu – mas as suas crónicas são boas. Um Machado da Graça, eu já nem quero falar deste Machado da Graça que tenho lido no “Savana”, aquela maneira quase que muito simplista de colocar as coisas, mas a piada dele está lá, ele gosta daquela pintada do riso e está lá.
Mas eu li coisas que o Machado da Graça escrevia na “Tempo” em 1981, coisas belíssimas. Essa gente marcou-me, mas sobretudo o Albino Magaia marcou-me profundamente. Para além de que essa gente aguçou o meu sentido de observação, eu gosto de escrever um texto ainda que profundo, mas breve e que te chama atenção para uma realidade – não para tu perderes tempo a ler, duas ou três páginas, não – gosto da síntese que os jornalistas, têm muito disso. Quer dizer, eu escrevi, tu leste, percebeste e podes voar para onde tu quiseres naquela brevidade que te apresento.
Nesse aspecto tens razão. Por isso eu chamei ao primeiro livro de cronicontos. São crónicas mescladas de contos. Quem lê “Boas Festas Chiquito” verá que há crónica, mas aquilo é uma história ao mesmo tempo.
Agora tu hás-de encontrar essa diferença no livro que ai vem e, provavelmente, eu me sinto pequenino em algumas histórias e brincadeiras. São contos alguns muito densos, o leitor as vezes pode se perder. Mas quando escrevo crónica sinto-me um peixe na água. Sinto-me bem.
L: Estavam no tempo em que a guerra era pela barriga e a reconstrução. Havia dinheiro para sustentar uma revista?
P.C: Eram tempos difíceis. Não tinha papel no País…
L: Aliás, nas edições número 5 e seis que saíram juntas, Tomás Vimaró, escreveu um artigo sobre essa falta de papel que punha muitos livros a espera de serem impressos…
P.C: Nessa altura em que começa a escassear de verdade o papel, começa igualmente, o descalabro da revista. Mas devo dizer que, quem nos apoia em primeiro lugar é a Embaixada de Portugal – isto é bom que se diga porque é história – nós mandatamos o Eduardo Luís de Menezes White – não por ser white – ele foi lá, negociou e conseguiu o primeiro financiamento e naquele tempo fazer uma revista eram 20.000 a 25.000 meticais. Os tais 20.000 fomos dados pela Embaixada de Portugal.
Desse dinheiro inicial havia tanto sentido de austeridade, tanto que o dinheiro das vendas – porque nós vendíamos a revista – guardamos para imprimir as edições subsequentes até a morte da Charrua nós é que custeávamos as publicações.
Tínhamos um bom tesoureiro, o Juvenal Bucuane, ele sabia muito bem fechar o dinheiro. Penso que os cheques tinham que ser assinados por ele, por mim e por mais alguém que já não me lembro.
Luís Carlos Patraquim – só uma dica – foi a Portugal com o dinheiro da Charrua, pediu 15.000 meticais emprestado, o suficiente para sair daqui para Portugal. Assinamos o cheque e ainda agora está lá – está lá, mas é nosso. E não estamos arrependidos pelo apoio que o demos, até hoje quando vou a Portugal, os melhores momentos que tenho é com o Luís Carlos Patraquim. E recordamos isso numa gargalhada daquelas “ó Patraquim pediste dinheiro da Charrua!”. (risos)
L: E chegou a devolver o valor?
P.C: Não, não, não. Não devolveu. É óbvio que aquela conta o banco já se esqueceu e a Charrua morreu! (risos).
L: E foram galgando até a edição oito…
P.C: Pois, terminamos na oitava edição, mas isso tinha a ver com o sentido da afirmação. Nós sempre defendemos que a Charrua era como um viveiro onde as pessoas se vão afirmar. E as pessoas se afirmaram. O Ungulani afirmou-se ali. E hoje aparece como um dos maiores do século XX, foi a Charrua. E quando nós começamos a sentir isso, cada um dos componentes foi vendo a altura que tínhamos atingido. O Bucuane já tinha livro, o White também já tinha – esses foram os primeiros a publicar.
Depois sai o Ualalapi. O Ualalapi criou barulho neste país. Aí as pessoas foram dizendo para si mesmas “afinal eu posso” e a Charrua foi caindo assim. Os colaboradores primários foram esquecendo a Charrua e a Charrua morreu. É uma morte natural, ninguém a matou. Também não queríamos fazer daquilo um espaço permanente, mas sim, um espaço de afirmação, foi o que sempre dissemos. Mesmo no primeiro editorial nós já dizíamos, que se aqueles velhotes não conseguirem, nós vamos para frente. E alguns foram ficando dirigentes, seja da própria AEMO ou de outras instituições.
L: E parece que até hoje as coisas são assim: vamos criando, vamos subindo e ganhando nome e prestígio, quando achamos que estamos próximos do sucesso inesgotável, deixamos para trás o que nos catapultou e vamos assumir aquela grandeza que sempre foi na verdade a nossa ambição.
P.C: Começamos a não ter tempo. Alguns ficaram dirigentes como disse, foram nomeados chefes nesses sítios; eu fui nomeado chefe do gabinete no Conselho Municipal e o tempo foi ficando escasso. Que isso, por ser um facto, que não desiluda os nossos seguidores é falso também. Porque os nossos seguidores ficam desiludidos. Eles viam em nós um fio que os puxava. Há textos por aí que dizem “Charrua quem te puxa e quem te quer parar?”. Há textos dessa natureza. Mas ninguém matou a Charrua.
Essa coisa de chefia é complicada. Começamos a ficar chefe e depois fomos ficando consagrados ao nível de outras revistas. A Charrua já não era uma coisa da praça, tu tinhas que ir a Tempo, ver um texto – é esse o outro lado que gostaria de dizer – o Gilberto Matusse, vem de Portugal com os seus colegas, o Cunha, o Gregório Firmino e olham para a Charrua, como objecto de trabalho. E eles divulgam a Charrua, escrevem, escrevem e escrevem e, nós ficamos um bocado fortes. Mas a Charrua ficou para trás, provavelmente, injustamente, porque podíamos tê-la como modelo de referência como primeira revista e podíamos continuar dois três contos, poemas e etc, aquilo que a malta publicava com qualidade e com aqueles desenhos do Ídasse Tembe – já me esquecia do Ídasse. E aquelas entrevistas que eu só aprendi a ler na Charrua pelo Tomás Vimaró. Uma entrevista feita ao Manuel Ferreira; uma entrevista feita ao José Luandino Vieira quando ele diz “a Língua Portuguesa calhou na rifa fónica”, ele disse isso na revista Charrua e quem fazia as entrevistas era o Tomás Vieira Mário com aquela experiência de jornalismo que ele tinha, mesmo antes de ir a Roma.
Há uma saudade que eu próprio tenho da Charrua. Há aquela nostalgia ao lembrar Charrua, aquelas tertúlias literárias, os Jantares Literários, o Eduardo White em cima de uma mangueira a ler “Os Amotinados” com a Anabela Adrianoupolis. Esses momentos não voltam mais. (instantes de silêncio, entornando na boca algumas gotas do seu vinho).
Já houve de tudo aqui na AEMO, teatro lá de cima das árvores, o Eduardo White nessa altura era mais novo – se subisse agora caía de certeza absoluta – (risos). O gajo subia e dizia lá um poema a sua bela maneira “Os Amotinados”.
L: Como disse Charrua era um espaço de afirmação como escritores, mas acontece que alguns afirmaram-se como políticos e outras áreas sociais e económicas…
P.C: Não. Em qualquer um de nós há um bicho político, isso é velho. Não sou eu e eu acredito que em ti próprio há esse bicho. Acredito ainda que daqui a 10 anos, o futuro chefe de Estado se te convidar para seres ministro da Cultura vais. Eu sei que tu vais. (risos)
Agora isso é conversa. O que é facto é que nós arrancamos para Charrua sem qualquer outro interesse se não a escrita. Os que conseguiram ser são. Mas não estou a ver pessoas da Charrua que não são escritores, acho que todos ficamos escritores. Aqueles que caíram na graça do poder do dia foram resgatados para aquilo e o primeiro a abrir o caminho para isso – é bom ser claro – foi o Hélder Muteia. O Hélder não foi lá pedir seja lá o que for, alguém engraçou-se com ele lá de cima e convidou-o, ele aceitou. Eu, em momento bom se me tivessem convidado, teria ido fazer papel, digamos, de governante. Quando digo momento bom, digo momento oportuno, este já não é o meu caso, mas haverá outros que se seguirão. Eu tenho já barba branca, só se calhar for para uma Assembleia Provincial da minha província que é Maputo, aí vou, mas não tarefas pesadas que me obrigariam a andar a ver dossiês e dossiês que não acabam.
Eu gosto dos meus camaradas, o Hélder, Juvenal – o Juvenal até tem uma tarefa menos desgastante, digamos, prestigiante – é membro da Comissão Nacional de Eleições aquilo dá prestígio. Ouvem a tua voz como conselheiro e não pertences a nenhum executivo. O Herldér, já esteve numa cadeira desgastante, mas agora está na FAO, isso dá prestígio. Isso é bom para mim, deixa-me gordo, tenho companheiros confiados em boas missões e não sou daqueles que aproveita-se disso para fazer rixas e ter inveja.
Ta aí aquele menino que é director do Instituto Superior de Artes e Culturas, o Filimone Meigos, isso também orgulha-me. Nós acompanhamos o Filimone a acabar a sua décima primeira classe. Depois foi para a universidade, batalhou para o que tem.
Esta aí o Ministro Armando Artur, críticas há várias, mas está a fazer o seu trabalho. Isto é belo.
Agora se todos esses fossem para altos cargos como estão e fosse para fazer confusão, ficaria muito triste ou seja, haviam de dizer é a geração deste que está a fazer porras.
Mas fico feliz meu filho pela pergunta que fizeste-me. É pertinente. Tenho ouvido muita gente por aí a dizer “essa gente fica secretário-geral da AEMO e depois são ministros”, acho que é muito simplista dizer isso.
L: Há quem diga as pessoas da Charrua eram as que tinham ou tem, capacidades para assumir grandes responsabilidades nas áreas culturais. Concorda?
P.C: O pessoal da Charrua estava fardada a cumprir algumas tarefas. Não há hipótese. Não há maneira. Eu já fui convidado para fazer tarefas que não se podem dizer assim. E eu não era secretário-geral, era apenas da Charrua. E aqui nos cruzamos com o Marcelino dos Santos que ia nos dando algumas missões, por exemplo.
Destinos são vários, partindo da AEMO. Podes ir a vários sítios. Podes ser reitor de uma universidade, podes dar aulas, podes ser chamado a secretariado do congresso de Cabo Delgado a partir daqui. Mas não é célula da Frelimo como se fala por ai ou se algum dia foi, hoje já não é.
Em algum momento a AEMO foi confundida nesse sentido porque quem a cria é Samora Machel que manda o Marcelino dos Santos. Mas nunca alguém via num Marcelino, um poeta; num Sérgio Vieira, um poeta, num Jorge Ribelo, um poeta. Viam aqueles homens fardados daquele uniforme de lá donde vinham, então era uma célula da Frelimo. Mas não é.
L: Tal como vocês foram assistidos ao surgir, foram surgindo, igualmente, na AEMO outras revistas ou grupos depois da Charrua. Sendo que vocês em algum momento foram vítimas de estigmas dos velhotes, terão sabido não “torturar” os mais jovens?
P.C: Há uma coisa que o velhote Rui Nogar costumava dizer, aquilo que ele chamava de “características idiossincráticas de cada um dos Homens” que é a tua maneira de ser, a minha maneira de ser e de estar. Há quem olhasse e dissesse “isto aqui?”.
O primeiro livro de Armando Artur, foi da Charrua, ele entregou ao Ungulani Ba Ka Khosa para ler, - sentado ali onde agora é contabilidade – ele sentou em cima do livro – esses meninos pá – Armando ainda hoje não se esquece disso. Ele fez a leitura que fez, numa desses são chefes da Charrua e sei lá, e pediu o livro de volta.
Mas isso depende de cada pessoa. Eu nunca tive problemas com as novas gerações. Forja era da minha geração só que entendeu que queria fazer paralelismo com a Charrua. Publicaram dois ou três números, se a memória não me falha. Só que não havia suporte literário para aguentar uma revista de 32 páginas. Enquanto nós tínhamos material, havia escritores no nosso grupo. O Juvenal já escrevia desde os anos 70’, e estavam os seus escritos guardados porque não sabia onde publicar; o Ungulani e eu já tínhamos. O Eduardo White, não tendo esse material, mas com uma grande capacidade de criação estava sempre a produzir, tinha um cérebro blindado. Nós alimentávamos a nossa revista e eles não tinham essa capacidade.
L: Mas vocês da Charrua eram vistos também como indisciplinados…
P.C: “Nós fizemos muita porcaria”, entre aspas, coisa que tem a ver muito com as idades que tínhamos. Eu sai de Maputo para Niassa com 20 anos e regresso com 26 anos, ainda não tinha 30 – esse dado é curioso – o Ungulani tinha 24 anos, um menino mandado para ser professor no Niassa depois volta, o Armando Artur é que não tinha idade para ser rebelde.
O Eduardo era, claramente, rebelde. Mas rebeldia o que era? Era a gente postar-se sempre um pouco fora dos cânones do poder político, isso é natural. E havia os mais rebeldes e outros menos, mais disciplinados. Éramos assim.
Estava aqui uma senhora que vendia cerveja, já morreu e não me lembro do nome, ela disse que a cerveja que restou nesse dia era para o dia seguinte e ela queria ir para casa. Obviamente que tomamos de assalto a geleira! (risos).
Nós sabíamos que lá fora não havia mais cerveja, só aqui. Estou a falar dos anos 1982 a 1984. Não tinhas cervejas por ai, e eu disse quero tomar mais uma cerveja. Tinha que tomar mais uma cerveja. Nós tomamos de assalto ela a gritar, “não Ungulani, hei Pedro! Armando!” éramos rebeldes, mas a nossa rebeldia era marginal. Uma rebeldia de fulcro e não de mexer com os poderes. Essa de que temos que tomar esta cerveja, porquê que temos que tomar amanhã?
Lembro-me daquilo que fizeram ao Ungulani quando ele faz um discurso autodiegético num conto seu, em que ele diz que saiu foi roubar um par de sapato para o filho, mas acontece que foi apanhado e espancado e o seu filho veio a passar sem saber que era o pai, também espancou-lhe. O Marcelino dos Santos fez uma reunião na revista Tempo onde o texto saiu e eu disse ao Ungulai “essa é tua retórica literária contra as imposições políticas”, ele riu-se. Ele tinha que encontrar uma maneira subtil de rebeldia, mas não uma rebeldia de rua. Se não pegavam em ti e desapareces. Vivemos momentos difíceis. Não havia esse barulho, manifestar contra o poder era impossível.
L: E quanto a própria AEMO quanto uma “instituição” se assim se pode dizer, o
que acha dela?
P.C: Isto tem altos e baixos. Esta era uma casa de começo com Rui Nogar, foi uma casa de consolidação com Albino Magaia, com Pedro Chissano – não estou a afirma-lo de forma concludente – terá sido o momento de gente da minha geração também habitar a casa mais livremente.
Acredito que o Hélder Muteia fez algumas mexidas e teve uma secretária-geral adjunta esplêndida a Lília Momplé, eu também tive um secretário-geral esplêndido que é o Leite Vasconcelos. Penso que essas pendles terão conseguido ajudar para que a casa não descarrilasse.
Depois do Hélder creio que foi a própria Lília Momplé tendo como adjunto, o Armando, depois da Lília foi Suleiman Cassamo só depois vem o próprio Armando.
Há aqui uma sucessão – para ser honesto – de sucessões na direcção da AEMO de dois em dois anos que não é muito sólido. Um sai ainda com coisas por fazer, entra outro também com suas coisas e esquece as do outro, assim vamos acumulando esquecimentos, de direcção a direcção. Isto terá criado qualquer problema estrutural ao nível da coerência programática da AEMO. Isto poderá ter falhado.
E depois o outro erro foi exceder as sucessões geracionais. Essas sucessões geracionais a experiência ao cabo destes quatro anos mostra que não são a melhor maneira de resolver o problema na associação. As candidaturas têm que ser supra-geracionas. Se sou da Charrua ou da Oásis não podemos nos candidatar por diferença de geração. Se isso aconteceu, temos que mudar. Tem que se ter a casa como a casa dos escritores e não da geração do dia ou seja, o que nós passamos a fazer aqui foi pensar que a Charrua é um partido, depois a Oásis é outro partido.
Quando estamos na Assembleia Geral a tendência é digladiarmo-nos enquanto forças literárias de momentos diferentes e foi preciso que isto fosse esquecido. Agora é isto que estás a ver, a casa caiu num descalabro. O perfil de um secretário-geral tem de ser de disponibilidade a toda hora, se não pode estar a tempo inteiro, que dedique duas a três horas ao dia, mas isso não está a acontecer. O poder quando é concentrado numa só pessoa há um vício de que se cometam erros sem alguém para chamar atenção. E a acumulação de erros pode ser nefasta para vários vectores.
Estamos a falar livremente, na associação dos músicos moçambicanos foi o mesmo que aconteceu. O meu irmão Hortêncio Langa foi deixado sozinho. Acumulou erros atrás de erros e há pessoas que falam com muita alegria co-relação a isso. Mas ele estava sozinho. E sozinho não se faz nada.
Há uma necessidade que a chama do colectivismo na instituição se mantenha acesa e esta capacidade congregacional não existe, porque ela perdeu o lado supra-geracional. Quer dizer quando eu me zango contigo só digo este há-de ver, mas com um mais velho podia se ter um método diferente de abordar o problema.
O que nós estamos a tentar fazer e o que estamos a discutir neste momento é esta situação que prevalece. Como mudar essa situação? O que entendo é que isto está mal, é preciso reunirmos todos os escritores, todos, discutirmos os problemas abertamente e arranjarmos uma solução. Se for necessário recorremos ao estatuto da associação caso o erro esteja lá e rectificamos.
Você já me massacrou muito pá.
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