Dejair Dionísio - Brasil
Luís Kandimbo, ensaísta e crítico literário angolano, diria que não era
possível elogiar o cânone já que o mesmo não se confundiria com a "meditação
sobre os clássicos" de Harold Bloom, autor de O Cânone Ocidental (The
Western Canon-The books and school of the ages), pois a formação daquele
cânone está definitivamente comprometida com a civilização ocidental. Nesse
sentido, propunha como réplica a existência do cânone ocidental, a anacronia do
cânone Negro Africano ou Bantu, para a perspectiva angolana. Em se tratando da
apologia para um outro cânone para as literaturas africanas em geral, a
pretensão totalitária de Harold Boom em incluir na sua profecia de canonização
autores africanos, integrando o que ele denominava por chaotic age,
anula as especificidades das literaturas africanas. Para a literatura
afro-caboverdiana este paradigma confronta-se hoje com um discurso crítico
produzido por africanos que, com a mudança atual de atores na formação do
cânone para as escolas e universidades, já está trazendo para o discurso a
representação de ruptura epistemológica que sempre viu com reservas todo o tipo
de produção intelectual africana. Com o advento do pensamento crítico e
pós-moderno associado a globalização cultural, o discurso feminino na
literatura vem se impondo não somente pela necessidade de inclusão de um grupo
tido como marginalizado nas letras. Se impõe pela qualidade do discurso, pelas
temáticas inovadoras, pela necessidade de dar a conhecer outras latitudes
anteriormente não abordadas pela poesia. Eneida Nelly, poetisa caboverdiana que
escreveu em crioulo a sua obra, nos brinda com a não caoticidade pensada por
Bloom e nos proporciona um outro olhar para esse novo olhar do que é e quem é
que será canonizado nessa nova escrita dita Africana de Língua Portuguesa.
Palavras-chave: cânone.
Eneida Nelly. Literatura afro-caboverdiana
Um olhar da alteridade
Em termos representativos, de construção de uma identidade própria que
dialoga com outras identidades africanas, o pensamento de Chinua Achebe nos
parece bastante interessante. Ele pensará essa identidade que quer dizer algo,
que fala sobre alguma coisa e que
a identidade africana ainda está em processo de formação.
Não há uma identidade final que seja africana. Mas, ao mesmo tempo, existe uma
identidade nascente… quando alguém me encontra, fora do continente africano,
ele indaga: ‘Você é da África?’ O que significa que a África é alguma coisa
para algumas pessoas. Cada um desses rótulos tem um sentido, um preço e uma
responsabilidade. Todos esses rótulos, infelizmente para o negro, são rótulos
de incapacidade.”
Chinua Achebe
E é esse rótulo de incapacidade, de equívoco quando pensamos a manutenção
do locus comum para a África, coisificando-a e deixando-a hermeticamente
fechada numa caixinha pré-selecionada, que não nos deixa perceber a criação e a
representação dessa identidade específica, afeta nesse caso, a de Cabo Verde.
Também não se compreende dentro dos estudos relacionados a literatura
produzida em África por autores que tem como berço aspectos culturais e de
língua próximos ao Brasil, a escrita que fuja do estereótipo e das amarras
condicionantes as quais foram reservadas por estudiosos ocidentais. Por mais
que haja vontade e intenção positiva para olhar para essas narrativas, tentando
perceber a oratura e a reserva estética, principalmente quando a atribuição do
uso da língua nacional ou materna está presente, muitos dos nossos estudiosos
enviesam as análises e “fogem” da possibilidade de olhar para essas escritas,
amedrontados que estão em entender conceitualmente e filosoficamente essas
escritas. Afinal, a segurança da teoria pronta, está disponível e gera mais
empatia acadêmica.
No caso das escritas que emanam de Cabo verde, verificamos haver
pouquíssimos estudos voltados para a produção literária em crioulo. Talvez pelo
fato de não poderem ser enquadradas dentro das possibilidades pensadas por
Harold Bloom que, ao escrever sobre as escritas africanas em Língua Portuguesa,
entendeu haver um caos de compreensão, porém não nos esqueçamos que ele partiu
do seu olhar eurocentrista. Havia, na nossa concepção, boa vontade para fazer,
mas havia, para além disso, uma necessidade de mantes o olhar de distanciamento
e de negação da diferença da escrita produzida naquele arquipélago, o de Cabo
Verde.
Localizado a 500 km da costa do continente africano, Cabo Verde sempre
esteve com um pé aqui e outro acolá, quando se pensa em países africanos.
Devido a sua localização geográfica e ao distanciamento terrestre do
continente, muitos estudiosos buscaram outras significações, outras latitudes,
no sentido de compreensão do fazer cultural no arquipélago. Tendo como berço
cultural a possível mais ainda questionável achamento das ilhas no século XV,
Cabo Verde se insere dentro do contexto histórico de navegação orquestrada pela
frota portuguesa, em busca de
soluções para encontrar um outro caminho que não passasse pelo comércio
europeu centralizado nas mãos dos venezianos. Encurtar a viagem para a Índia,
era a missão e, no meio do caminho, aconteceu o achamento do Arquipélago.
Constituído pelo cruzamento de portugueses e africanos que, forçosamente via
escravidão foram levados para as ilhas (inicialmente a ilha de Santiago, a
maior e que concentra a maior população atualmente) originou uma população
tipicamente crioula, devido a essa situação. Dessa mistura e confluência de
culturas nasce a língua crioula, termo português que originalmente foi usado
para designar os escravos criados na casa dos senhores e posteriormente passou
a ser designador às línguas por eles faladas.
(CRISTÓVÃO, 2005) Por razões de imposição de uso a língua portuguesa serviu
de base para o surgimento do crioulo em Cabo Verde, daí haver a denominação
basilar da mesma, para o crioulo. Porém, como outros usuários não comungavam da
língua dominante, trazendo dos seus grupos étnicos outros arranjos
linguísticos, essa forma inicial de comunicação desembocou para o meio
comercial, para o meio social e demais, formando-se então um pidgin(2) facilitador
de comunicação pela sua forma direta e simplificada de construção frasal.
O crescimento rápido e exponencial do crioulo fez com que se tornasse tão importante que, em 1784 um escritor anônimo afirmou que os brancos em Santiago “raros (são) os que sabem falar a língua portuguesa com perfeição, e só vão seguindo o estilo da terra”. Durante o colonialismo, o português foi a língua primeira sendo utilizada no ensino, na administração, a única escrita, e, sendo a língua do colonizador, o uso do crioulo não era permitido chegando ao extremo de ser proibida por lei em 1849. Apesar das proibições, perseguições e demais formas de cercear o uso da língua caboverdiana, a mesma ganha outro estatuto após a independência, passando a ser permitida, falada nos discursos políticos ao lado de outras manifestações culturais que também foram banidas do contidiano caboverdiano durante o colonialismo, como a tabanca e o finaçon, além do funaná.
O crescimento rápido e exponencial do crioulo fez com que se tornasse tão importante que, em 1784 um escritor anônimo afirmou que os brancos em Santiago “raros (são) os que sabem falar a língua portuguesa com perfeição, e só vão seguindo o estilo da terra”. Durante o colonialismo, o português foi a língua primeira sendo utilizada no ensino, na administração, a única escrita, e, sendo a língua do colonizador, o uso do crioulo não era permitido chegando ao extremo de ser proibida por lei em 1849. Apesar das proibições, perseguições e demais formas de cercear o uso da língua caboverdiana, a mesma ganha outro estatuto após a independência, passando a ser permitida, falada nos discursos políticos ao lado de outras manifestações culturais que também foram banidas do contidiano caboverdiano durante o colonialismo, como a tabanca e o finaçon, além do funaná.
Passa a ser permitido mas não é língua oficial, já que o português mantém
esse estatuto, sendo língua de comércio e de comunicação no país e meio de
contato com o mundo. As duas línguas, o caboverdiano e o português, coexistem
em paralelo e não em sobreposição nem por exclusão, construindo assim um
verdadeiro bilinguismo. O mesmo observou Jorge Amado, em visita oficial a Cabo
Verde com a comitiva do presidente do Brasil à época, José Sarnei, em 1986,
disse numa entrevista que “ a vida decorre em crioulo”, uma vez que ela está
presente nas relações informais, mesmo naquelas que dominam o português. Esta,
a segunda ou oficial, deixada pelo colonizador, “adquiriu aos olhos dos
nacionais um prestígio desmesurado, que nem a independência conseguiu reduzir
totalmente às suas proporções normais” (DUARTE, 1998).
Se a vida decorre em crioulo, mas tendo a língua oficial o português, essa
característica aparecerá na literatura e em todos os afazeres em Cabo Verde.
Conforme a observação de Dora Pires que o
fenômeno do bilinguismo não afeta globalmente a sociedade
caboverdiana; nem todos os caboverdianos falam o português, embora o português
seja muito mais utilizado na camada culta e rudimentarmente falado nas camadas
populares. Como o português nunca foi uma língua de domínio afetivo e global
mas sim uma língua de domínio administrativo-político, a língua cabo-verdiana
continua sendo o instrumento de comunicação oral privilegiada. (PIRES, 2009)
Possíveis percepções para uma diferente recepção desse instrumento
privilegiado podem ser vistos a partir do início da tradição da escrita em
crioulo, buscando afirmar-se enquanto identidade descolada da cultura lusófona
e da língua que a representa – o português.
Portanto, os poetas crioulófonos, a se destacar os advindos da ilha de Santiago,
berço da criação do crioulo, inspiram-se atualmente na tradição da oratura
caboverdiana e trazem para as suas obras as contribuições das estruturas
basilectais, utilizando, também, muita criatividade, o que faz pensar que em
médio prazo, a língua terá o se reconhecimento como língua de literatura.
Apesar de somente recentemente o crioulo começar a ganhar uma roupagem
sugestiva de que com a criação de alguns “instrumentos indispensáveis à sua
reconversão em língua escrita”, conforme análise de Dulce Almada Pereira
(2005), alguns ensaístas, poetas e romancistas já estão produzindo textos em
crioulo, apesar de ter concorrido historicamente com o nascimento do percurso
literário de forma perversa, uma vez que o colonialismo impôs aos caboverdianos
a literatura em português, dentro dos moldes europeus, em detrimento do
nascimento clássico literário que vem da oratura ou da literatura oral.
Essa literatura insular nascerá de forma diferenciada daquela que foi sua
inspiração (sic). Aparecida dentro do contexto literário em fins do
século XIX, coincidentemente no período em que poetas e compositores musicais
foram escolarizados em português, havia somente no primeiro momento, o modelo
literário praticado na Europa acima descrito, com base nas narrativas orais, os
cantos dos épicos ou as canções de gesta. Mesmo assim, alguns autores como
Eugênio Tavares, Pedro Cardos, Sérgio Frusoni, Luis romano, Teixeira de Sousa,
Mário Macedo Barbosa, Ovídio Martins, Gabriel mariano, Jorge Pedro Barbosa –
interessante notar que nenhum deles é santiaguense. Mesmo assim, os dois
últimos citados, do primeiro período de escrita em crioulo, que data até 1960,
escreveram a partir da variante da Ilha de Santiago.
Mas será somente no fim daquela década, que um escritor da Ilha de Santiago
usará o crioulo como vaso comunicante, o poeta “Kaoberdiano Dambará”,
pseudônimo de Felisberto vieira Lopes, o qual escreveu, nos finais dos anos 60,
um livro de poemas de exaltação patriótica verdadeiramente notável, Noti,
na forma basiletal da variante de Santiago. (PEREIRA, 2005: p. 12) Surgirá a
partir dele um grupo que revelará via sua linha poética e discursiva a
vitalidade cultural de Cabo Verde, trazendo junto consigo as potencialidades e
possibilidades que a língua sustenta. Exemplos de autores a sere citados são os
de Corsino fortes, Kaká (Carlos) Barbosa, Kwame Kondé (Francisco Fragoso),
David e J. Luis Hopfer Almada, Arménio vieira, Oliveira Barros, emanuel Braga
Tavares, César Fernandes, Tomé Varela da Silva, Daniel Spínola, que valorizarão
a identidade local, os valores nacionais mas dando uma dimensão universal a
essa novo fazer poético.
No romance, já na década de 1980, surgirá pelas mãos de Manuel Veiga Odju
d’Águ (Olho d’Água), trazendo no seu enredo toda a dinâmica da diacronia
com a sincronia, tendo como participante na narrativa o público, no formato de
uma espécie de auditório, revelando a necessidade de comunicação. Eutrópio Lima
da Cruz escreverá em finais da década de 1990
Perkurse de Sul d’Ilha (Percurso de uma ilha do sul), escrito na
variante da Ilha de Boavista, difere do romance de Veiga, pois o mesmo não tem
as características de uma longa história tradicional, mas concebe-se dentro da
estética caboverdiana pela sua estrutura e sua concepção.
É nessa esteira de obras que nasce a coletânea de poemas Sukutam
(Escuta-me) de Eneida Nelly, publicado em 2011. A narrativa contida em seus 50
poemas musicados por Princezito, vão dialogar com sua infância no Tarrafal,
cidade da Ilha de Santiago. Conforme prefácio à obra de Miguel Anacoreta
Correia, o testemunho da sua solidão vivida em Lisboa, testemunham os vários
dias solitários, a esperança em um futuro melhor, a saudade da família, do mar,
da areia, da Lua, do Sol, da dor e do amor e, principalmente, da música, que
simboliza tanto para si o que é Cabo Verde. Mas, mais uma vez, o olhar
europeizante do prefaciador aparece, ao anotar que
é por isso de saudar a vontade da Eneida, que começou a
escrever poesia muito jovem e cuja escrita foi sempre muito considerada por
todos, em vir a escrever em Português. Desta forma permitirá que as suas obras
sejam apreciadas por um universo mais alargado de leitores e amigos. CORREIA,
2011: p.3)
Aqui merece uma observação pensada por Kandimbo, que indaga se será
necessário rever o cânone. Nos parece que é necessário rever também o olhar de
quem supostamente canoniza, que na sua fala não complementa e nem suplementa,
conforme Derrida, a literatura caboverdiana. O seu olhar é de exclusão e
dialoga diretamente com o pensamento neocolonizante, não diríamos que por
intenção mas por impregnação.
Assim, a obra se sustenta, mesmo fora dos padrões esperados para a
literatura produzida em África, ou seja: na não conformidade com as línguas de
imposição colonial, o que seria de esperar de uma autora caboverdiana.
Comecemos pela primeira impressão de alteridade que é a de que, dos
crioulófonos citados, ela é a primeira que aparece no sentido da possibilidade
de inserir o gênero feminino na discussão, na concepção, na autoria e na
própria possibilidade de publicação. O próprio título da obra, Sukutam
já avisa para que veio: para ser ouvida.
Notas
1—Leitor brasileiro na Universidade
de Cabo Verde – Uni-Cv e no Instituto Internacional da Língua Portuguesa –
IILP. Doutorando do programa de pós-graduação da Universidade Estadual de
Londrina e colaborador no Núcleo de Estudos Afro-asiáticos da Universidade
Estadual de Londrina – UEL e no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da
universidade Federal do Espírito Santo – UFES.
2—Para o surgimento do crioulo de
Cabo Verde Dora Oriana Pires no seu artigo Situação linguística deCabo Verde
apresentado no SIMPÓSIO INTERNACIONAL DA LÍNGUA E CULTURA DE/EM LINGUA PORTUGUESA NA CPLP, ocorrido na cidade
de São VICENTE de 24 A 28 DE MARÇO DE 2008 dirá que ele “resultou assim do
contato dos dialetos africanos com o português, nascendo num contexto social em
que se pretendia resolver os problemas do dia-a-dia a partir de códigos mínimos
e muito limitados – um “pidjin” -, para aos poucos e com recursos a empréstimos
e adaptações do português e das línguas africanas, evoluir e dar assim origem a
uma língua viva como as outras e sujeita a mudanças, que é a língua
Cabo-Verdiana.”
Bibliografia
DUARTE,
Dulce Almada. Bilinguismo ou Diglossia?, Spleen Edições, Praia 1998.
_____________________.
A literatura cabo-verdiana (crioula) entre o oral e o escrito.
Revista
Papia ed. 15, pp. 7-14, São Paulo, 2003.
NELLY,
Eneida. Sukutam, Edição da autora, Praia, 2011.
PIRES,
Dora O. G.. Ensino da Língua Cabo-verdiana no Ensino Básico, 3ª Fase (5ª e
6ª classe) – Proposta de um fragmento de Manual Ensino da língua cabo-verdiana
– Tese de Mestrado – CEA - FLUP - fev, 2008.
____________.
Situação linguística de Cabo Verde, Simpósio Internacional do IILP da
Língua e
Cultura de/em Língua Portuguesa na CPLP, São Vicente, CV, 24 a 28 de
março,
2008.
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