Eduardo Quive - Moçambique
Meu Deus, quanta água! Muita água! Em todo canto é só ver água e mais água! Tudo se transformou no tão precioso líquido! Vejo gente a bailar nos braços da chuva grande. Eu e Netinho saímos escalando esse mar que os céus cinzentos nos trouxeram no pobre Patrice. Chamamos Simone e Pala. Corremos descalços de calções e sem camisa galgando a terra que se fartava de tanta água. O chão prostrava-se perante o poder de quem está lá em cima. A minha mãe dizia que é Deus. Deus no céu e diabo em baixo das areias do bairro, mas quando fazíamos covas para construir as casas dos nossos palitos, representando aquilo que éramos, ou o que seríamos, lembro-me, aparecia um bichinho gordo que auto locomovia-se rastejando. Aí os mais velhos diziam é “nwinho wa missava”. Dono da terra. Aí mais uma coisa, as areais do meu bairro afinal não eram em que se encontrava o diabo! Então ficávamos felizes.
A chuva mesmo seria a única barreira para as nossas brincadeiras, mas em vão. Enquanto ela caía eu ainda dentro da casa espreitando cobiçosamente ouvia malta Djossefa, Lulu, Florêncio e outra rapaziada, a cantar “treinador Maxaquene, Treinador Maxaquene”. Cheio de vontade de aliar-se àqueles amigos filhos do tio Pedro e tio Luís que o meu pai chamava-o Ndondondo porque bebia muito Tontonto (três palavrinhas), ao ver os rapazes brincar nas águas da chuva enquanto o tronco estava exposto aos pingos.
Olhava para o chão quase com as lágrimas a cair e via na minha mão a ameaça de que se saísse, ia apanhar. Mas sempre dá um jeito quando Netinho entrasse em casa. Ele inventava qualquer coisa mas fazia a casa cuspir-me para fora. Aí saímos ambos de calções correndo para lá das bandas do tio Zefanias o pai de Pala onde tinha um tubo que tirava a água das caleiras. Era mesmo bom sentir aquele bater forte das águas da chuva nos nossos corpos. Uníamo-nos todos meninos, eu, Netinho, Simone, Lulu, Djossefa e Florêncio. Corríamos toda rua a fora. Depois pulávamos para as bandas do Singathela onde por causa da força dos pingos e da pequena ventania oportunista, todas as mangas caíam por terra. Apanhávamos aqueles frutos silvestres, mesmo na casa da professora Rossana onde tinham as mangas mais doces. Mas era tudo escondido, aí saber correr era um factor importante.
Mas o pior mesmo, foi o dia que fomos conhecer a nova casa de Netinho, onde tio Pedro, seu pai, com salário de miséria como professor da escola primária, investia tudo para saírem da rua “O” e viverem felizes em família. O bairro onde morariam chama-se Ndlavela, fica depois de São Dâmaso. E é por lá onde tínhamos a nossa praia Landinha, uma porção de água cercada de terra. Mas não era assim que diziam os mais velhos, chamavam de “mati ya ndabi”, água que vem das cheias. Cheias de 2000. Mas nós não tínhamos esses preconceitos com aquela praia solitária que se instalou para nós meninos pobres do bairro onde tinha tudo, ladrões, sarnas e bilharziose, malária, diarreias, gonorreia e TB aos mais velhos. Agora também eclodiu nova doença. A gravidez.
E íamos correndo ao Ximatanini como também chamavam. Dias de calor após quase um mês de chuvas torrenciais que encheram-nos as casas, as ruas e até as vidas. Na escola já não íamos a tempo e eram nossas ferias aquelas que as chuvas nos deram. Netinho que era mesmo bom das espertezas pediu-nos que o acompanhássemos lá para nova casa deles.
Chegamos a praia Landinha e ainda a distância vozes de meninos que gritavam de alegria. Aí corremos ainda mais. Tiramos as camisas e as calças, ficávamos de calções ou mesmo de bicho fora sem temer as diferenças. Praia Landinha estamos aqui hoje nós da rua “O” e queremos tomar banho nas suas águas onde dizem que morreram muitas crianças. Nós que te somos solidários perante as injustiças que as pessoas te dão para não seres reconhecida como nosso Ximatanini onde banharemos os nossos troncos. Onde mulheres com bebés nas costas vem lavar as roupas que sujam na vida.
Ah! Que saudades daqueles tempos em que os trópicos ardiam sob a nossa pele negra, indefesa do intenso calor típico de Janeiro e Fevereiro e lá no Ximatanini aquela praia de negros e mulatos pobres do subúrbio, afogávamos as nossas diferenças sem história!
Horas passavam despercebidamente no banho da Praia Landinha. Entrávamos e saíamos correndo e gritando. Éramos felizes e confidentes com o nosso Ximatanini lá do Ndlavela. Só quando a noite começa a ameaçar chegar nos recolhemos, trémulos e mulatos de tanto banho.
Mesmo com o cessar da tarde evidente, restavam vontades de continuar na alegria de Ximatanini que já era a nossa praia Landinha. Voltávamos a correr para casa como sempre gostávamos. Uma provocação a outros meninos dos bairros que passávamos agitava-nos ainda mais. Corríamos apressados para a porrada que receberíamos em casa. Ou pelo menos eu e Netinho. Já na rua, ainda na entrada chegavam-nos as vozes do medo. Gulherme, irmão mais novo de Florêncio é que vinha a correr para chamar-nos atenção do que nos esperava. Mas eram apenas ameaças de quem não podia afogar-se naquelas águas. Tudo em vão, a praia era nossa e nós tínhamos que nos banhar nela.
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