Dinis Carneiro Gonçalves, aliás, Sebastião Alba, nasceu e morreu em Braga, numa arcatura temporal que vai de 1940 a 2000. Foi durante muitos anos para Moçambique e de lá regressou à Bracara Augusta em 1981, onde adoptou a errância libertária como modo de vida até ao Outono passado. A 14 de Outubro morreu atropelado na rodovia. Tinha 60 anos e três livros de poesia publicados.
De ascendência transmontana, tendo ido buscar o pseudónimo ao nome dos pais Sebastiana e Albano, cedo foi para a colónia ultramarina, onde casou com uma mestiça e se tornou professor, jornalista, poeta e administrador fugaz da província da Zambézia. Antes, porém, desta actividade múltipla, desertou da tropa ao segundo dia, foi preso e torturado durante dois anos. Com a agudização da crise política moçambicana, regressa com a família a Braga, habita um pequeno apartamento e chega a colaborar com o "Correio do Minho".
Uma curta experiência em Lisboa com a família aumenta-lhe a sua tendência anti-social e regressa a Braga só, isto é, sem a mulher e as filhas. Opta definitivamente por um tecto de estrelas, depois de curtas estadas em quartos arrendados. Como parceiros de vida o álcool, a música e a poesia. A Antena 2 e uma harmónica de boca alimentam-lhe a melomania; o álcool, sempre dissimulado num saco de plás-tico, entorpece-lhe a voz da consciência; a poesia embala-o no sonho idealista de submeter o mundo à ordem musical.
Figura controversa, por teimosamente rejeitar qualquer oferta de protecção ou abrigo, por ser bêbado, provocador e mal-cheiroso, incumpridor contumaz das normas sociais: foi atropelado fora de uma passadeira. Afinal, as passadeiras também exis-tem para proteger os errabundos. Por outro lado, era um ser desprendido, dava o pouco dinheiro que tinha a mendigos ou vadios, sendo ele mesmo um mendigo de grande dignidade, pois aceitava actos de caridade contra actos de gratidão: tocava peças musicais ou oferecia poemas a quem o ajudava. Até os 1.500 contos do Grande Prémio ITF deu às filhas.
O seu reconhecimento público só foi possível depois de a Assírio e Alvim lhe ter publicado em Lisboa "A Noite Dividida". A comprovada qualidade da obra literária deste autor, nascido na Cividade, foi justamente referida pelo presidente do júri do concurso, o prestigiado docente e crítico literário, Vítor Manuel Aguiar e Silva, para quem a obra do galardoado evidencia uma estatura merecedora de admiração e público reconhecimento.
A arte poética evidenciada em "A Noite Dividida", "Ritmo do Presságio" e "O Limite Diáfano" coloca Sebastião Alba numa posição cimeira da cultura literária bracarense, ao lado de outros grandes vates locais, que têm nobilitado o bom nome da cidade de Braga, intra e extra-muros. Para o poeta Rui Knopfli o verbo de Sebas-tião Alba é apanágio de muito poucos poetas, tanto mais que assumiu a condição de ser despojado e desprendido, própria dos espíritos que se dão à Arte, o mesmo é dizer à Humanidade, sem esperar outro retorno que não seja de ordem espiritual.
Muito versado em cultura musical e literária, tinha alguns amigos que o procuravam, concedia conversas e entrevistas a alunos secundários e universitários e tinha uma grande paixão pelas filhas que visitava com regularidade. Estas nada puderam fazer contra a maior força do apelo anarquizante. Morreu sem identidade civil e tornou-se num problema para as autoridades. Finalmente, identificado e descoberto morto pelas filhas, rumou a Torre D. Chama, a terra dos pais.
O vagabundo pôde por fim habitar a eterna morada do comum dos mortais; o poe-ta, esse, ainda anda por aí.
Fernando Pinheiro
Nota: Esta sinopse biobibliográfica foi feita a partir dos artigos "Sebastião Alba - Poeta de Sempre", de Rui Feio, in Povo Bracarense de 19 a 25 de Outubro de 2000; "História de Sebastião Alba _ Uma Furtiva Lágrima", de Paulo Moura, Revista Pública, 19 de Novembro de 2000.
POEMAS DE SEBASTIÃO ALBA
Há muitos anos um oficial do exército de ocupação, em Moçambique, disse-me, na parada, enquanto eu, perfilado, tremia de medo: "você, nessa cabeça tem só merda!" Eu acreditei!
Quando poetas me dizem: "o teu lugar é aqui, entre nós", como se alguém estivesse a
tirar-nos uma fotografia, acredito logo.
Porque não sei o que pensar de mim, se vocês me desprezarem, sentir-me-ei desprezível; se me estimarem, estimável. Sou quem os que amo (ou detesto) pensam de mim. Pouco mais. Sublinhei algumas palavras para que vocês notem que não há uma sinfonia, um poema, nem seque "aquela cartinha" que escrevemos a alguém que não sejam conduzidas por qual-quer ideia. Temática. Insistente. Obcecante.
In “Albas”
CÂNTICO VERMELHO
Amo-te Felisbela
Com a voz silenciada do meu sangue irmão
Da mais funda gruta de África
Nosso hino rebenta florindo
Os velhos jacarandás do teu país
Ordeiro, calo-me
Mas é nos teus olhos que enraízo
Os meus versos salgados
Neles afogo para sempre!
O orgulho que se ensinam
E de que só me defende
Tua ingénua mão espancada de séculos
Amo-te Felis
Com o ímpeto desses rios
Que meus avós sujaram
Amo-te Felis
Na cândida melodia
Das marimbas do teu povo
Amo-te Felis
No ritmo de mensagem cega, pura
Das canções de tuas avós violadas
Amo-te Felis
Com um amor marejado de lágrimas
As mesmas, querida,
Que humedeciam nos mares antigos
O brumoso convés dos seus barcos negreiros
Mas só to direi simplesmente
Quando à quieta luz dos dias que hão-de vir
O meu grito de guerra e de poeta
Se quebrar em tua boca enfim livre
Nos beijos despidos
Da vergonha que me cobre.
In “Albas”
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