Fraderico Ningi - Angola
Luís Vaz de Camões
Endechas a Bárbara Escrava
Aquela
cativa
Que
me tem cativo,
Porque
nela vivo,
Já
não quer' que viva.
Eu
nunca vi rosa
Em
suaves molhos,
Que
para meus olhos
Fôsse
mais formosa.
Nem
no campo flores,
Nem
no céu estrêlas
Me
parecem belas
Como
os meus amores.
Rosto
singular,
Olhos
sossegados,
Pretos
e cansados,
Mas
não de matar.
Uma
graça viva,
Que
nêles lhe mora,
Para
ser senhora
De
quem é cativa.
Pretos
os cabelos,
Onde
o povo vão
Perde
opinião
Que
os louros são belos.
Pretidão
de Amor,
Tão
doce a figura,
Que a
neve lhe jura
Que
trocara a côr.
Leda
mansidão,
Que o
siso acompanha;
Bem
parece estranha,
Mas
bárbara não.
Presença
serena,
Que a
tormenta amansa;
Nela,
enfim, descansa
Tôda
minha pena.
Esta
é a cativa
Que
me tem cativo
E, pois
nela vivo,
É
força que viva.
Luís de Camões, 1946, Obras Completas, com prefácio e notas do Prof.
Hernâni Cidade, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, Volume I, p. 92 - 94
José Mucangana, 16 de Dezembro de 2011
Notas de Leitura (*)
Contrariamente às especulações de alguns biógrafos
e professores de literatura portuguesa, menos conhecedores das Áfricas do que
Camões, a bárbara escrava, não era uma mulata de Goa chamada Luísa (Wilhelm
Stork, 1897, Vida e Obras de Luís de Camões, traduzido do original alemão de
1890 e anotado por Carolina Michaelis de Vasconcelos, 637 p., Lisboa, terceira
edição, 2011, Bonecos Rebeldes, Unipessoal, Lda.).
Ela era certamente uma Preta da costa oriental de
África, mais precisamente e com toda a certeza de Moçambique. O Poeta não o esconde, quando canta a
"Pretidão de Amor", maneira delicada de se referir à pretidão da
nudez da sua esposa, nem quando evoca as qualidades de Bárbara.
O "rosto singular", os "olhos
sossegados, pretos e cansados, mas não de matar" são de uma Preta de
África, o cansaço que aparentam é quiçá a mornaça da monção tropical,
anunciando a trovoada, mais do que isso, porém, é uma maneira muito africana de
exprimir a plenitude e gratidão dos sentidos ao seu esposo amado e amante,
porque aqueles olhos não estavam cansados de matar, como tem o cuidado de nos
esclarecer o poeta.
"Uma graça viva", que nesses olhos
sorridentes morava, é a arma de sedução sem rodeios duma Preta de África,
"para ser senhora" de quem ama, que nem de outra maneira menos
material se concebe o amor em África.
"Leda mansidão, que o siso acompanha",
"presença serena, que a tormenta amansa" são descrições realistas do
porte e maneira de estar típicos duma mulher Preta de África, que
essencialmente é boa de coração, bárbara não e generosa, maldosa não.
Camões começa por confessar que morre de amores
por Bárbara, cativo pelo amor de Bárbara e porque nela vive, a Bárbara mata-o
com seu o grande amor. Serão estas
rimas, só por isto, endechas, em sentido figurado?
Luís de Camões viveu dois anos na Ilha de
Moçambique, vindo de Goa, entre 1567 e 1569, antes de regressar ao Reino. Foi em Moçambique que deu os últimos retoques
nos Lusíadas, antes de retornar a Lisboa, onde os mandou editar. Foi em Moçambique que compôs e compilou o seu
Parnaso Lusitano, que se perdeu em parte ou em todo, por ter sido furtado ao
Poeta, em Lisboa ou durante a viagem de regresso. Também furtaram a Camões os dois últimos
cantos dos Lusíadas, que ele teve de recompor de memória e segunda inspiração.
Em que data escreveu ele estas endechas? Não se sabe, Camões não data o poema, que
intitula “endechas”, ou canções tristes ou fúnebres (Cândido de Figueiredo,
1949, Dicionário da Língua Portuguesa, décima edição, Lisboa, Livraria
Bertrand), mas estas endechas não são tristes antes denotam o seu espírito
forte inspirado por Bárbara: “E, pois
nela vivo, é força que viva.” Tê-las-ia
escrito, na hora da despedida, antes de voltar para o Reino com os seus
manuscritos e sem Bárbara, que ficava entristecida na Ilha, ou já em Lisboa,
quando lhe faltava a companhia de Bárbara e vivia das saudades de Bárbara. “Aquela cativa”, ausente, já não queria que
ele vivesse, ou ele já não podia continuar a viver sem ela, tão afastada dele,
em Moçambique? Ora as endechas estão
escritas no indicativo presente, foram portanto compostas em Moçambique junto
de Bárbara e, certamente, ela não desejava que ele deixasse Moçambique. Bárbada encorajou-o, deu-lhe força, para
terminar a sua obra, em Moçambique, mas não queria que ele realizasse a sua
vida, em Lisboa, tão longe e, naqueles tempos, sem esperança de regresso: ele vivia nela em Moçambique, onde completou
as suas obras, mas ela já não queria que ele vivesse em Lisboa, partisse para
Lisboa, onde estavam as tipografias.
Talvez fossem estas as endechas da hora da partida… e da decisão de
viver com Bárbara enquanto houvesse língua portuguesa escrita e lida.
Tudo indica que foram. As endechas começam por descrever o drama da
decisão de partir com a oposição de Bárbara, nos quatro primeiros versos, e
acabam, nos dois últimos versos, por justificar esta decisão. Entre aquela introdução e esta conclusão,
Camões descreveu magistralmente a mulher preta de África, o seu grande amor por
Bárbara e tudo o que lhe ficou a dever.
Nunca, até aos dias de hoje, a mulher negra de África foi cantada com
tão grande amor, arte e engenho, nem em português, nem em francês, nem em
inglês. O famoso poema em francês de
Lépold Sédar Senghor “Femme nue, femme noire (mulher nua, mulher negra)” e os
poemas sobre a mãe negra escritos em português não devem colocar-se ao lado
deste, por não parecerem obras de diletantes ou principiantes
desajeitados.
Nas suas endechas, Camões diz de forma poética
muitas coisas, que não vêm da sua pura imaginação e estão certamente
relacionadas com situações reais e vividas.
Sobre a cor da tez de Bárbara e seu arrebatado amor por ela escreve sem
rodeios e não nos deixa dúvidas.
Os biógrafos atribuem ao seu “espírito forte” o
facto de ter permanecido dois anos, sem recursos, isolado em Moçambique, num
clima “hostil”, sem amigos, até que Diogo do Couto por lá passasse e reunisse
dinheiro para lhe pagar a viagem para Lisboa (M. Lourenço Mano, 1963, Entre
Gente Remota: Crónicas e Memórias
Históricas de Moçambique, Lourenço Marques, Minerva Central). Diogo do Couto encontrou Camões “tão pobre,
que comia de amigos”. Não temos dúvida
sobre o espírito muito forte de Camões.
Só perguntamos, como o teria apoiado a presença serena de Bárbara? E Bárbara apoiou-o a tal ponto, que “nela
enfim descansava toda a sua pena” e o levava a ter força para viver e não
abandonar os seus projectos: “E, pois
nela vivo, é força que viva.”
Porque, muito simplesmente, Camões, na Ilha de
Moçambique, era um ser humano, que precisava de agasalho, de água e de comida
para sobreviver, retocar, completar os seus Lusíadas, compilar o seu
Parnaso. Além do amor, não lhe teria
facilitado Bárbara tudo isso, abrigo e sustento, na Missanga, vila macua de
Ilha, cheia de hortas, árvores de fruta e criação de animais domésticos, entre
galinhas, patos mudos, marrecos e cabritos, ficando o Poeta cativo, pelo amor
de Bárbara, dos laços de solidariedade da família matriarcal macua? Não contaria a família alargada de Bárbara
entre os amigos não identificados, que ajudaram Camões na Ilha de
Moçambique? Ele até o reconheceu: “E, pois nela vivo...” Na ilha de Moçambique estava sem amigos
portugueses, até chegar Diogo do Couto, mas não lhe faltaram amigos
moçambicanos.
Por culpa de seu espírito independente, Camões
tinha-se desligado de Pedro Barreto, que o trouxera de Goa para a vila
portuguesa da Ilha. Diz Diogo do Couto
que “houve uma questão entre Barreto e Luís de Camões devido ao temperamento
impulsivo deste”. Com questão ou sem
questão, a verdade é que Camões queria ficar na Ilha, onde faziam escala as
naus da carreira da Índia, ao passo que Pedro Barreto seguia para Sofala, para
tomar as funções de Viso-Rei do Estado da África Oriental de curta duração, que
pouco sobreviveu ao estrangulamento, por portugueses mandados, de Dom Gonçalo
da Silveira, em 16 de Março de 1561. Dom
Gonçalo da Silveira estava a ensinar e catequizar em terras de Manica, com
autorização do Monomotapa do grande Zimbabuè, o seu cadáver foi deitado aos
crocodilos duma lagoa do rio Mossenguese.
Era amigo de Camões da mesma geração, que o cantou nos Lusíadas e de
quem escreveu o soneto “de um que trocou finita e humana vida por divina,
infinita e clara fama” e “que sempre deu na vida claro indício de vir a merecer
tão santa morte.”
Alguns biógrafos conjecturaram que Camões teria
comprado uma escrava africana na Índia.
Esta hipótese não é verosímil, porque do Extremo Oriente tinha trazido,
para Goa, um escravo jau, natural de Java, baptizado com o nome de António. Ele chama escrava e cativa à Bárbara e, na
Ilha de Moçambique, isolado dos moradores da vila portuguesa e bem integrado,
na vila macua da Missanga, não devia ter dinheiro para comprar uma escrava bela
como era Bárbara, mais bela, a seus olhos, que as rosas em molhos, que as
flores do campo e as estrelas do céu.
Camões não nos deixou o nome da sua amada. Chamou-lhe Bárbara, dando a entender que não
seria nem cristã ou rume, nem muçulmana, mas pertencia aos povos ditos bárbaros
ou gentios, que naquela época, ainda não eram considerados civilizados, nem
seguiam uma religião monoteista.
Além do cativeiro em que a mantinha, pelo seu
amor, não teria Camões pago um dote (lobolo,
ou alambamento) para se casar com ela?
Para um português, em particular, indo-europeu, em geral, o dote pago
pelo noivo não se pode chamar dote, porque o dote dos costumes indo-europeus é
pago pelo pai da noiva. O dote dos
costumes africanos e semíticos mais parece a compra duma escrava, visto na
óptica dos costumes indo-europeus.
Camões era um homem maduro e respeitável e em
nenhuma aldeia ou vila de África se permite a um homem ficar sozinho e
solteiro, nem por pouco tempo. Terão
aparecido e sido apresentadas várias pretendentes, mas só Bárbara, cuja
pretidão dos cabelos e da figura subvertiam os padrões estéticos dos cabelos
loiros e da alvura da pele de toda a literatura clássica e da Renascença e do
próprio Camões, contou para ele e marcou a vida e a obra do grande poeta.
Luís de Camões foi o primeiro poeta moçambicano de
língua portuguesa e Bárbara Vaz de Camões a primeira cidadã de Moçambique, que
só é Moçambique porque foi Portugal e maior não foi, porque Portugal já entrava
em decadência, naquela altura. Poucos
anos volvidos, Moçambique voltava a ser uma capitania do Estado da Índia.
O amor de Bárbara e de Luís de Camões derrotou o
racismo, mesmo antes que nascesse e criasse raízes, em outras Áfricas e
Américas.
Séculos antes de financiarem a recuperação de
Portugal, obra do ministro das finanças, Professor António de Oliveira Salazar,
com o suor do seu trabalho, nos profundos poços e galerias das minas de ouro do
Rande, os povos de Moçambique já tinham financiado com a “leda mansidão” do seu
amor e carinho, “que o siso acompanha”, os Lusíadas de Luís Vaz de Camões, obra
prima da língua portuguesa.
(*) Estas
notas foram inspiradas pelo doutor Duarte Marques, que foi professor de
português dos liceus de Goa e de Lourenço Marques.
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