Lopito Feijóo – Angola
David Mestre |
Teria completos sessenta e quatro anos
de idade aos três de Agosto deste ano, caso o cidadão angolano Luís Felipe
estivesse ainda entre nós. Escrevo sobre um crítico, jornalista e «maldito
marginal». Escrevo sobre o poeta David Mestre falecido em Lisboa há alguns
anos.
David foi enquanto vivo, e desde os
idos de setenta, um crítico deveras demolidor e a ele se devem distintas
propostas culturais e editoriais dentre brochuras, cadernos e suplementos
literários marcantes no todo que é hoje a literatura angolana enquanto corpus
afirmativamente balizado.
Do seu legado consta um primeiro livro
publicado ainda nos finais de sessenta. Um livro julgado incipiente e cuja
paternidade foi atempadamente renunciada (pelo autor, claro!) em razão do seu
faro crítico. Do conjunto da sua obra salientam-se: Crónicas do Guetto, poemas,
Cadernos Capricórnio Lobito, 1973; O Pulmão (narrativa, colecção bantu), Luanda
1974; Do Canto à Idade, poemas, col. «Nosso tempo, ed. Centelha, Coimbra 1977;
Nas Barbas do Bando, poemas, ed. Ulmeiro, Lisboa, 1985; O Relógio de Cafucôlo,
conto, Cadernos Lavra & Oficina, Lisboa, 1987; Nem Tudo É Poesia, estudos,
UEA, Luanda, 1987, 2ª ed. revista e aumentada, col. 2k, UEA, Luanda 1989; Obra
Cega, poemas, ed. do autor, Luanda, 1991; Subscrito a Giz, 60 poemas escolhidos
(1972 – 1974), Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996; Lusografias Crioulas, ed.
Pendor, Évora, 1997.
David Mestre foi antologiado em:
Angola – Poesia 71, 1972; Vector 3, 1972; Kitatu Mulungo (está aquí inserida a
narrativa autogeográfica «O Plumão»
escrita na prisão em 1971) , 1974; Dizer País, 1975; Poesia Angola de revolta,
1975; Antologia da Poesia Pré-Angolana, 1976; No Reino de Caliban, 1976; Poesia
de Angola, 1976; Lugar-comum, 1976-1978; Os Meus Amigos, 1983; Antologia da
Poesia Angolana (ed. russa), 1985; Sonha Mamana África, 1987; Os Anos da
Guerra, 1988; Cinquenta Poetas Africanos, 1988; Poemas a La Madre África
(português – castelhano), 1992; Floriam Cravos Vermelhos, 1993; World Poetry, 1993.
Alguns dos seus textos foram também traduzidos e publicados em espanhol,
francês, inglês e russo.
Enquanto jornalista, conquistou o
Prémio Nacional de reportagem instituído em 1985, pela União dos Jornalistas
Angolanos e assinou de sua autoria algumas das mais saborosíssimas crónicas do
jornalismo literário angolano.
David foi filiado da Associação
Internacional dos Críticos Literários tendo nesta qualidade participado no IX
Congresso da AICL, realizado em Alma-Ata, na República do Cazaquistão onde deixou
marcas de grandes referencia segundo nos confidenciou o poeta, também crítico
português, João Rui de Sousa.
O «Mestre» e crítico David estudou e
homenageou com os seus escritos vários autores das mais longínquas latitudes
geo – literárias como: Luandino, Pepetela, António Jacinto, Uanhenga Xito,
Agostinho Neto, Aires de Almeida Santos, Ernesto Lara Filho, António Cardoso, o
próprio Mário António na veste de poeta, Sousa Jamba, Luís Carlos Patraquim,
José Craveirinha Ruben Fonseca, Alberto da Costa e Silva bem como Jorge Amado
sem esquecer o mestre António Cândido, dentre outros grandes. Neste domínio
David Mestre revelou-se, cívica e politicamente um autor simultaneamente polido
e mordaz.
Nacionais e estrangeiros, vários foram
os críticos que sobre a sua poesia meditaram. Dentre tantos com reputável
afirmação contam-se um Mário António Fernandes de Oliveira, Pires Laranjeira,
Eugénio Lisboa, Pedro Támen, Vieira de Freitas, Jacinto do Prado Coelho,
Fernando Martinho, Luís de Miranda Rocha, Manuel Ferreira, Xosé Loís Garcia,
Ana Mafalda Leite, Francisco Soares, João Maria Vilanova, Ana Maria Martinho,
Jorge Macedo, E. Bonavena e entre outros (sem falsa modéstia), o autor que aqui
escreve.
Segundo Pedro Támen, em 1973 David
revelava-se já, «Um autor angolano com uma inesperada capacidade de invenção
verbal e criação poética», -valendo como tal-, muito acima de oitenta por cento
dos «notáveis poetas metropolitanos», de então.
Temos para nós como ponto mais alto
dos seus escritos poéticos os textos que deram corpo ao mais (in)acabado dos
livros do autor:
Nas
Barbas do Bando. Uma co-edição da União dos Escritores Angolanos e da Ulmeiro
editora (Portugal) sobre a qual aqui ficam alguns parágrafos que, certamente
possibilitarão melhor e mais profunda penetração no universo cada vez mais
obscuro, tecnicisado e de prazeirosa leitura da poesia deste que se revelou o
maior dos intimistas no domínio, entre os Angolanos.
Uma atenta leitura de Nas Barbas do Bando deixa-nos a ideia do
rigor estrutural da criação/produção dos textos e tão bem do próprio livro
enquanto todo. Dele resulta a beleza, e a economia do palavreado poético, que
se enleva a horizontes atmosféricos que nos lembram o total sentido plástico
dos sinais de tipo geométrico gravados em perspectiva circunferencial, por
exemplo, na estação arqueológica do Tchitundo-Hulo.
Transporta a moderna linguagem poética
marcada pelo ênfase clássico de alguma poesia oriental bem como pelo conjunto
de traços, feições e qualidades que caracterizam a própria poesia africana, ao
contrário do que nos faz crer a prefaciadora do livro, no texto intitulado “uma
poética da Dês (centração)”, quando atribui ao autor da obra poética em
questão, “uma notável apropriação da modernidade poética ocidental”.
Condensa-se na obra a vasta cultura
poética e literária do autor de Crónica do Ghetto (1973) e Do Canto à Idade
(1977), que vai desde o perfeito conhecimento da língua, -factor que lhe
permitiu a colocação exacta de uma dada categoria de palavras nos versos-, a um
ambiente de vibração espiritual que pressupõe sensibilidade geométrica, cuja
perspectiva espaço-temporal obriga-nos a considerar não só as relações e as
posições dos elementos textuais e figurativos mas também os imagético-textuais
de premissa mítica.
Socorreu-se o autor, naturalmente, de
motivos de grande intimismo assim como de conhecimentos e, sobretudo,
experiencias poéticas aliadas a um alto sentido de relação intertextual da qual
resultaram os textos componentes do livro constituído por três distintas partes,
iniciando cada uma delas por um poema “que serve de núcleo energético
disciplinador e simultaneamente motivador dos títulos que se seguem”.
Entretanto, atente-se à título
exemplificativo, Estrita Poesia Escrita
(pág.33) texto que disciplina na segunda parte os nove outros que lhe seguem e aonde além da exactidão numérica da
estrofes, (aliás a exactidão estrófico-extrutural caracteriza quase todos os
textos do livro onde o atento leitor) encontrará no segundo quinteto, bem
assente, a mestria do poeta David nos significantes intervalos
artísticos-literários dos quais resultaram as decomposições/descontracções de
uma em duas palavras operando-se então uma transferência (bi)unívoca entre o
campo semântico e o fonético. Atente-se igualmente a alternância ternária do
verso primeiro nas estâncias de que se compõe:
“Estrita Poesia Escrita/com os dedos
enlameados/da vida/vivida/de costas//Poesia escrita estrita/e única mente para/bólica/como
um grito e/móvel//Escrita poesia estrita/aos círculos que fazem/as pedras/ao
mergulhar/para sempre”.
Entretanto, conhecemos ainda na
sequência desta a OBRA CEGA. Um caderno com apenas duas dezenas de páginas
editadas pelo autor à margem das vias e processos editoriais habituais. Nela o
poeta Vuelve a ser Eucalipto (O. Paz),
e na linha do livro acima referenciado reafirma ser pouca a arte p’lo silêncio
consentida quando à págs. 7, num poemeto, auto retrata-se quase mesmo em
silêncio, dizendo: Nada sei/ e o que presumo/ emudeceu/ de perfeição.
Até aqui o autor apresentava-se
distinto, nas suas propostas, em cada um dos três livros anteriores. A
diferenciação é agora pouco notória apesar de singulares referências locais
como a Rua da Maianga, a Calçada dos Enforcados, as casas baixas no Bairro dos
Coqueiros, a Fortaleza hoje feita museu e até mesmo o crepúsculo e grandes
pássaros brancos.
Deparámo-nos agora com motivos
poéticos tocados e retocados por poetas luandenses de décadas anteriores a da
geração que forjou o poeta David Mestre e cujo lastro vem certamente dos idos
de quarenta.
Finalmente diremos, nesta singela
homenagem, que sobre este autor, indubitavelmente, muito mais poderíamos ter
escrito, principalmente no domínio do simbólico e até mesmo sobre o conteúdo e
estrutura artística dos textos pois, “o texto artístico” – segundo Lotman –
pode ser examinado enquanto texto várias vezes codificado. E é precisamente
essa qualidade que consideramos quando falamos da polissemia da palavra
literária e da impossibilidade de traduzir a poesia em prosa…”
Benfica/Belas,
Agosto 2012
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