Escritor português Manuel Gusmão |
Marleide Anchieta: O que o move a escrever e em que
condições escreve?
Manuel Gusmão: Quando ainda era estudante na
faculdade, eu era movido pelas discussões que tinha com meus colegas. A partir
do segundo ano, encontrei-me com dois colegas – ficamos amigos – que eram
também poetas e publicaram, aliás, antes de mim. São o Joaquim Manuel Magalhães
e João Miguel Fernandes Jorge. Muitas vezes os poemas tinham relação com o que
líamos e com o diálogo que nós mantínhamos sobre livros que estávamos a ler;
outros eram mais nitidamente a nossa procura já de um caminho próprio. Depois
continuei a escrever e publicava esparsamente em revistas, mas só editei o
primeiro livro já muito tarde, em 1990. Esse foi uma luta para sair, e é talvez
isso que me levou a ter a fama de crítico que passa a poeta. De fato, esses
meus amigos, o João Miguel, por exemplo, publicou o primeiro livro em 1972, e o
Joaquim Manuel Magalhães, em 1974. E eu, quando chegou o 25 de abril, tinha um
livro praticamente feito e organizado para a edição. Simplesmente pareceu-me
uma coisa desinteressante publicá-lo naquele momento, porque era um momento em
Portugal bastante intenso para algumas pessoas como eu e o livro que tinha para
publicar não me parecia ter a força necessária. Fui guardando, estudando e
trabalhando, entregando-me ao mesmo tempo a uma intensa militância política.
Por isso só em 1990 é que publiquei.
MA: Poderia falar sobre a relação da sua poesia
com as outras artes (o cinema, o teatro, a dança, a música e a pintura)?
MG: Uma das mais fortes será talvez o cinema, sobretudo em
Teatros do tempo e Migrações do fogo. Eu sempre fui fascinado por cinema, ainda
estudante, havia filmes que me fascinaram e foram ficando comigo até vá-se lá saber
quando. O que é que o cinema tem de fascinante? É uma arte narrativa. É uma
arte narrativa que vive da luz e das sombras, da imagem e que sugere muito
mais, por vezes, do que conta. É uma arte narrativa relativamente independente
de um olhar subjectivo fundante, de uma figuração específica do narrador. Há
filmes, por exemplo, O esplendor dos
Ambersons, traduzido em Portugal, por O
Quarto Mandamento, do Orson Welles, em que a voz do próprio Orson Welles
conta em off a história que as imagens contam, mas isso é raro. É uma arte
narrativa, que é uma coisa que a poesia também foi em seus inícios, na Grécia
antiga, nos poemas homéricos e não só. Interessa-me bastante a função narrativa
da linguagem poética. Hoje, não podemos conceber a narrativa na poesia da mesma
maneira que ela foi entendida no passado, porque a própria narrativa literária
em prosa e a narrativa cinematográfica desenvolveram e agilizaram imenso os
seus procedimentos. Essa dimensão narrativa tem a ver com o tempo e com a
escansão do tempo, com os fluxos de imagens e a possibilidade de neles isolar
uma. Nós podemos ficar, guardar conosco uma imagem cinematográfica para sempre.
Durante anos e anos, essa imagem, em determinadas circunstâncias, reaparece. Ou
seja, o fato de essa imagem ser uma pura projeção, jogar com as luzes e as
sombras numa sala às escuras, tem um caráter alucinatório, mesmo que seja a
imagem mais simples e mais comezinha do cotidiano. Em minha poesia, essa
capacidade das palavras suscitarem imagens é uma coisa que me interessa em
particular. Basicamente, em relação ao cinema, é isso: por um lado, a técnica
alucinatória da imagem e, por outro lado, o tempo e a narração. O que me
interessa nas outras artes é, no fundo, em geral, ampliar aquilo que a poesia
pode fazer com as palavras apenas, ou seja, levar a poesia a representar não
apenas coisas que eu vejo na pintura ou nas imagens cinematográficas, mas a
fazer como essas artes fazem, portanto, tentar que a poesia faça o que o cinema
faz, ou o que a dança faz, ou a pintura, etc. E, por outro lado, marcar a
posição do espectador em relação a essas artes. Há um poema em Mapas, em que eu
faço uma descrição (mas isso é raro em mim) de uma pintura de Magritte chamada
“Plaisir”/”Pleasure”. É uma pintura de 1928, em que uma menina está a comer um
pássaro e tem sangue na boca, sangue que lhe cai nos punhos do vestido. A
partir daí eu imagino um espectador que está a ver aquela imagem e de repente
há um raccord, como se fosse um raccord. Como se alguém estivesse vendo e
descrevendo aquele quadro e dissesse: “Este quadro é para ti”, oferecendo a
outra pessoa uma reprodução do quadro e aquela tentativa de descrição dele. De
fato, nunca se trata de apenas descrever uma imagem cinematográfica ou
pictórica ou da dança, mas de tentar fazer do modo como elas são feitas, por um
lado; e, por outro lado, integrar isso numa narrativa que é minha, ou seja, eu
começo a contar uma história e, de repente, meto nessa história um elemento da
imagem do cinema ou da dança, etc. Com essas imagens, eu construo uma narrativa
ou um poema que não está nelas, mas que se utiliza delas.
Nesse
sentido, eu não faço exactamente aquilo que chamamos ecfrasis, mas utilizo a
inserção dessas imagens para contar outras histórias, reinventar uma história
em que aquilo entre também como se fosse eu que o tivesse feito. Há muitos
poemas meus onde se vêem referências a essas artes várias, mas há também
referências a outros discursos não só literários, mas a outros discursos que
podemos chamar de material autobiográfico, por exemplo. Há poemas que vêm de
cartas que me escreveram, outras que eu escrevi, ou de conversas em que eu
participei.
Há ali
frases que são de outros, que são ditas por outros e que eu importo para minha
poesia como uma maneira ainda de estar com eles ou de saudá-los, de dizer
“adeus” ou de despedir-me, etc. Por outro lado, a importância dessas várias
artes tem a ver com meu interesse com a arte em geral e com a ideia de que as
artes servem, entre outras coisas, para trabalhar os nossos sentidos, a nossa
compreensão e apreciação do mundo que se faz através dos cinco sentidos físicos
– o olhar, o olfato, o gosto, o ouvido, o tato – e dos outros. As artes
modificam as maneiras dos sentidos funcionarem e, para além disso, modificam os
sentidos espirituais, digamos assim, a noção disto e daquilo, do amor, da vida,
etc. Nesse sentido, as artes são uma espécie de construtor do humano. Nós somos
construções antropológicas em muito moldadas pelas artes e por aquilo que nós
usamos delas e com elas fazemos.
MA: Em Migrações
do fogo, observam-se referências a obras cinematográficas e pictóricas. O
que o motivou a seleccionar determinadas cenas ou pinturas?
MG: Eu roubo o que me interessa para um determinado poema,
para o tema ou o clima verbal de um determinado poema... E essas imagens,
tenho-as na memória. Posso ter imagens que ainda não utilizei, mas quando num
poema vou buscar certas imagens, essas são as que batem certo com o que estou a
fazer naquele momento. Por exemplo, há um filme do Wong-Kar Wai, que é o
Disponível para amar [no Brasil, Amor à flor da pele], que me vinha pela
lentidão com que nesse filme se filma o andar, assim como pelo fato de o homem
e a mulher se cruzarem sem se encontrarem. Ela vai para um lado e ele vai para
o outro. Depois, misturei com imagens desse filme, imagens de um outro, agora
japonês, em que há um casal que se reencontra depois de anos e anos de terem se
conhecido. Não me lembro do nome... é a história de um homem e de uma mulher
que se reencontram muito tempo depois de se terem encontrado uma primeira vez.
Neste reencontro, a certa altura está cada um no seu quarto de hotel, numa
cidade toda construída em altura, torres e mais torres. Num determinado
momento, tudo desaparece numa teia de sobre impressões e de luzes: a iluminação
interior dos quartos prolonga-se nos inúmeros focos exteriores de luz; e a
certa altura a presença da mulher, de pé no meio do quarto, percebe-se apenas
pela presença de uma sombra mais negra e mais opaca. Há um outro também que é o
Yi-Yi. Em Yi-Yi, há uma criança que anda todo filme a fazer fotografias. Ele
fotografa as personagens de costas, fotografa-lhes a nuca, e só percebemos isso
no fim quando vemos as fotografias que ele vai dando às pessoas fotografadas. E
é um dom, uma dádiva que ela lhes dá, porque isso é justamente o que as pessoas
não podem habitualmente ver de si próprias. Só um terceiro as pode olhar e ver
pelas costas. Isso na minha cabeça fez raccord com uma afirmação de Mikhail
Bakhtin, em que ele diz que quem quer compreender um texto tem de o tomar, na
sua alteridade, como a coisa de um outro. A compreensão ativa (e não há outra)
estabelece-se num processo em que experimentamos a exotopia, no tempo, na
cultura e na língua. E isso se vê muito simplesmente na fotografia, em que para
fazermos um plano a toda a nossa volta, é preciso sempre um outro, o lugar e o
olhar de um outro que vai manejando uma máquina e vai filmando.
MA: Assim como a dança, em que o outro
compartilha espaços...
MG: O que me fascina na dança é que todo nosso corpo está
ali em jogo, e não só o nosso, mas o corpo de outros e, ao mesmo tempo a
relação que estabelecemos com a terra sobre a qual dançamos e o espaço que nos
cobre e ultrapassa. De certa forma, as posições e os movimentos do nosso corpo
estabelecem uma ligação móvel com a terra e os astros. Interessa-me muito a
possibilidade de pensar as artes como “técnicas do corpo” (Marcel Mauss). De
certa forma, toda arte tem a ver com uma parte ou uma parcela ou uma agência do
nosso corpo. A pintura tem a ver com o olhar, a mão e a lateralidade e a
profundidade de campo, a escultura tem a ver com o corpo do escultor, o corpo a
corpo com a massa que ele está a moldar, com as mãos, etc.
MA: Em sua poesia, as imagens da pedra, do mar,
do fogo, da rosa e dos mapas aparecem como cronótopos, ou seja, sugerem a
espacialização do tempo e, concomitantemente, a temporalização do espaço.
Poderia nos falar sobre essa relação espaço, tempo e história presente em sua
obra?
MG: A relação com essas palavras tem a ver em parte com o
fascínio pelos elementos da matéria, água, fogo, ar, terra, etc. O tema da rosa
é um caso particular.
O que eu
tentei em Dois sóis e a rosa foi
chamar “rosa” a “coisas” muito diferentes.
Porque a
rosa tem sido um símbolo da efemeridade da vida e da beleza: é alguma coisa que
morre vinte quatro horas após o seu nascimento. Mas o fato de não ter deixado
de ser motivo para a poesia do ocidente ao longo dos séculos dá-lhe um outro
tipo de duração. Por outro lado, a rosa é quase como uma cebola, tem camadas,
ou pétalas e dentro dela está um oco, um pequeno vazio. Agora, o que isso tem a
ver com o espaço e com o tempo? Uma das minhas paixões para além da poesia e
das artes é a história. A história, não enquanto escrita dela, mas como fazer
da história e, por isso, a questão do tempo é, para mim, uma questão fulcral.
Nós temos
vários modelos de entendimento do tempo. Por exemplo, o rio e o passar das
estações dão-nos imagens diferentes do tempo. O rio parece sempre
irreversivelmente ir numa certa direcção, tal como a flecha que se atira e que
voa em direcção a um alvo. O rio e a flecha dão-nos um tempo irreversível,
contínuo.
O tempo
que fatalmente vai dar à morte (ou ao alvo, no caso da seta). É sempre um sítio
que nós sabemos que é a morte, ou o mar onde desagua o rio, etc. Mas, por outro
lado, o passar das estações, ou uma árvore daquelas que perdem as folhas no
inverno ou no Outono e renascem na primavera dão-nos uma imagem perceptiva do
tempo cíclico. O tempo cíclico foi sempre utilizado pelas sociedades humanas
como uma maneira de esconjurar ou de conter o medo da morte, porque o ciclo
promete não apenas a passagem dos tempos, mas também a esperança, a promessa de
um renascimento constante. Por outro lado, há ainda uma figura do tempo que é a
do instante em que se corta ou dá um nó na linha do tempo e isso pode
introduzir uma outra temporalidade. Portanto, nós temos uma diversa concepção
do tempo a partir de diferentes experiências sensíveis. Isso me interessa.
Por outro
lado, a temporalidade histórica acrescenta mais outras figuras a estas. A
temporalidade histórica, para mim, é muito pensada na base de Walter Benjamin,
como algo que implica o corte do tempo uniforme, contínuo, homogénea, e esse
corte é a possibilidade de um tempo messiânico, embora sem Messias. O que se
diz para o messianismo vale também para o materialismo histórico? O que é a
revolução? A paragem do tempo e o fato de ficar no limiar do tempo, como se o
tempo recomeçasse. O tempo vai (re)começar outra vez. Ora, nessas minhas
ideias, a temporalização do espaço é fato fundamental para responder à
espacialização do tempo, porque a espacialização do tempo, digamos, espalma e
reduz a espessura temporal e a distribui por um espaço. As cidades
contemporâneas, por exemplo, uma cidade que tem um certo passado dá muito
exemplo disso. Nós vamos a um espaço, a uma rua e temos edifícios que vêm de
períodos diferentes e que se dispõem num mesmo plano espacial. Em Lisboa,
podemos ver isso, podemos ver o tempo espacializado. Por exemplo, pensar em
certo tipo de construções arquitectónicas. Podemos ver um edifício todo em
vidro ou em metal, mas que tem bocadinhos de parede antiga, que pode ser
medieval, incrustados ainda. Ora, o que isso significa? Temos aí uma espécie de
objectos que marcam diferentes tempos e, quando eu vejo o tempo espacializado
na rua, posso em qualquer momento isolar um edifício e dizer: “Este edifício
foi construído em 1940 e este edifício, ao lado, foi em 2000”. O que é que os
diferencia? O tempo pode introduzir-se no espaço e mostrar que o espaço está
disposto segundo um tempo. São figurações que restaram do tempo passado. Por
exemplo, há ruas de Lisboa de onde desapareceram os prédios que eu conheci
quando era jovem.
Eu sei
que estava lá outra coisa e dessa coisa não ficou nada, mas, se eu for
trabalhar com documentos sobre aquela rua, encontrarei a prova disso, de que
ali estava um edifício que lá já não está. Tudo isso é tempo. Portanto, o
tempo, para mim, é, também e ainda, a promessa de sua interrupção, enquanto
história já contada, e de começo de uma outra história ou de um outro tempo.
MA: No livro A terceira mão, o senhor fala das mãos que escrevem, inscrevem e
reescrevem, mobilizando tempos e espaços. De certa forma, o livro parece
destacar as mãos de Carlos de Oliveira, Herberto Helder, Fiama e outras. Como
esses poetas tão diferentes entre si se harmonizam (se encontram) em sua
escrita?
MG: A
ideia da terceira mão é a ideia de que no fundamental minha mão, ou maneira, é
uma terceira mão, que não é nem a de Carlos de Oliveira, nem a de Herberto
Helder
(basicamente
são esses dois que me fascinam). São os dois polos, os dois ímãs mais fortes.
Essa é uma ideia que eu já expus uma vez oralmente numa conferência. São poetas
muitíssimo diferentes. O Carlos de Oliveira vem do neo-realismo e o Herberto
vem do surrealismo, mas é um surrealismo muito particular, muito sui generis.
São dois poetas que formam duas polaridades entre as quais se distribui o resto
da poesia portuguesa. Eu tendo a pensar que os dois ocupam lugares opostos,
mas, como uma força magnética, atraem-se um ao outro. Carlos de Oliveira, na
obra final, naquele livro magnífico, um dos mais belos livros de poemetos da
poesia portuguesa, que é Pastoral, seu último livro de poemas, consegue aquele
estado de contenção, de elipse, de construção gráfica das imagens, de despedida
e de agonia perante a fatalidade da morte. É tão forte que só é comparável com
o êxtase enérgico, com a exuberância discursiva de Herberto Helder. De fato,
neste meu livro A terceira mão, há poemas que exploram motivos do Carlos de Oliveira,
mas para fazer algo de diferente. Há aqui um poema que fala de alguém que passa
por um posto de gasolina e isso é uma situação que eu vou buscar a um poema do
Carlos de Oliveira que se chama “Posto de gasolina” (de Sobre o lado esquerdo),
em que o moço empregado do posto se interroga: “Quem sou eu, no entanto, que
balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os sonhos de quem passa?”.
Ora, o que eu faço com isso é uma variação a que acrescento uma dimensão ou um
tom de conversa ou de relato e um ethos emocional que o poema de Carlos de
Oliveira não tem. Do mesmo modo, este poema em prosa, “Dunas”, que se desdobra
em quatro, parte de um poema, com o mesmo título de Sobre o lado esquerdo, de
Carlos de Oliveira. Aqui, começo por alterar a referência da palavra que passa
a ser o aspecto de dunas que têm, por exemplo, as circunvoluções cerebrais;
depois transponho essa palavra para um outro tipo de discurso, conto uma
história inventada, uma ficção que tem de qualquer modo a ver com uma
intervenção cirúrgica a que fui submetido.
Logo, a
coisa pode ser lida nessa clave ou com essa chave, e o poema liga, então, um
gesto de poética e um gesto autobiográfico; ou então o leitor ignora esse lado
autobiográfico e procura apenas o confronto poético e retórico entre os dois
poemas. Quanto ao Herberto Helder, não me atrevo a fazer sequer coisas
parecidas com o uso do pastiche. Um poema em que eu fico mais próximo dele é um
em que utilizo, pondo entre aspas ou em itálico, versos dele, mas também de
outros como a Luiza [Neto Jorge] ou o [Mário] Cesariny: é um poema meu, mas
apenas na medida em que como que sobro dos outros. Neste poema, “música da mão
esquerda”, é uma expressão do Herberto; “deslocando
na arquictetura do silêncio, os blocos e as linhas do som/ o gesto de uma
antropologia augural”, isto é um comentário sobre um poema do Herberto; “os dedos negros” já é verso do
Herberto; “ouvem o grito dos mortos de um
lado ao outro/ do mundo” é de um poema em que o Herberto, por sua vez,
utiliza material verbal do Húmus do Raul Brandão. “Florestas de Pedra e
púrpura” é de Carlos de Oliveira; “escrevem o poeta ‘nos recessos mais baixos”,
Herberto; “nos cornos que ele traz à cintura com a elegância selvagem/ e inata
do leopardo”, estas são imagens do Herberto; “caligrafia sumptuosa – punti
luminosi”, Herberto, que está a citar Ezra Pound; “energicamente as capitais do
corpo”, “as capitais do corpo” é Luiza. “Era depois da morte, “Redivivo”,
Herberto e Ruy Belo, citando-o. Quanto à Fiama, dedico-lhe um poema na 1ª
sequência do livro que responde a um poema dela dedicado a Carlos de Oliveira e
a Luiza Neto Jorge, com base numa coincidência nas nossas histórias de vida.
MA: Em A
terceira mão, o senhor visita obras de Carlos de Oliveira. Há, inclusive, uma
citação a “Soneto”, poema presente no livro Cantata. Pensando nos versos que
cita, pergunto como pode o poema “recriar o mundo pedra a pedra”?
MG:
Carlos de Oliveira usa essa expressão “pedra a pedra” e num outro poema diz
“chama a chama”. O Herberto Helder junta as duas expressões “pedra a pedra,
chama a chama”, num outro poema. Isso é muito curioso, dois poetas que são
completamente diferentes e passam pelas mesmas imagens. “Pedra a pedra” é uma
metáfora, “pedra a pedra” ou “chama a chama” significa palavra a palavra e, nesse
sentido “recria” como quem suscita ou convoca o mundo a ser. Mas o que eu
sugiro que se veja neste poema é também uma importação de um dos poetas de que
mais gosto, de Rimbaud. Eu uso o Carlos de Oliveira para ler em “levantar a
torre do meu canto/ e recriar o mundo pedra a pedra/ uma espécie de eco tão próximo,
tão estranho/ e tão íntimo, o eco só que fosse daquela Canção da mais alta
torre”. Ora, Chanson de la plus haute
tour é o título de um poema de Rimbaud, cuja 1ª estrofe é assim: “Oisive jeunesse/ À tout asservie,/ Par
délicatesse/ J’ai perdu ma vie./ Ah! Que le temps vienne/ Où les coeurs
s’éprennent”. Portanto, construir o mundo pedra a pedra é a ideia de que as
palavras que vão se construindo e construindo o poema, têm o poder de suscitar
nos outros e em nós, como vemos em outros poetas, imagens do mundo. Portanto, é
como se nós estivéssemos a construir o mundo quando lemos a poesia ou um
romance, quando ouvimos música, etc. Mundo material a alterar o mundo tal como
o conhecíamos. Fazemos nossos próprios sentidos. Há coisas do mundo para as
quais minha percepção está intimamente ligada a palavras. Por exemplo, a
aurora. A aurora eu nunca dissociei ou serei capaz de dissociar de certos
poemas de Rimbaud. Como não sou capaz de dissociar certos versos de Rimbaud de
imagens de filme de Nicholas Ray, creio que se chama Wings Across the
Everglades, em que há uns pássaros, uma espécie de flamingos cor-de-rosa que
estão nos arbustos num campo. Nós não os vemos, só vemos galhos de formas
confusas, verde-escuro. De repente, eles levantam voo em conjunto, quase num só
movimento, em uníssono. Isso é, para mim, a imagem visual que corresponde ao
verso do bateau ivre, de Rimbaud :
“L’Aube
exaltée ainsi qu’un peuple de colombes”. Portanto, construir o mundo é isso.
Nós temos uma palavra e essa palavra podemos dar-lhe um efeito de suscitação
augural sobre o mundo. Em última instância, isto vem da ideia de que o poeta
foi no passado (já não é, não pode ser, ou é-o de outra maneira) uma espécie de
mago: “Faça-se água” e a rocha começa a deitar água.
MA: Em Portugal, sua poesia demonstra boa
recepção por parte da crítica literária. Os prémios que recebeu confirmam isso.
Há algum aspecto mencionado pela crítica que o senhor não reconheça em sua
obra? E, inversamente, há algo que julgue relevante e que a crítica ainda não
tenha apontado?
MG: Por um lado, eu penso que alguns críticos, que têm lido
mais a sério minha obra, têm visto coisas pertinentes, embora por vezes
custa-me entender algumas coisas que dizem. Por exemplo, não estou muito de
acordo com alguém que, aliás, respeito muito e que diz que a minha poesia é,
sobretudo, intelectualizada, é fortemente intelectual, racional. Eu penso que
isso tem a ver com o facto de haver determinados posicionamentos filosóficos, históricos
ou políticos, que transparecem. Há versos meus que são quase suposições de
natureza teórica, mas que são para obter um efeito, e um efeito que é da ordem
do emocional, do afectivo e não do puramente intelectual. Por outro lado, eu
também afirmo que a poesia pensa, não é só a filosofia que pensa. E no que o
pensamento da poesia se diferencia do pensamento da filosofia? A poesia está
amarrada à linguagem comum, à língua que todos falamos e, portanto, ela se faz
do jogo com essa linguagem, ela é o prazer com essa materialidade sonora e
gráfica que é a da língua. Há uma cantiga de amigo famosíssima, de D. Dinis, em
que o refrão diz: “Ai, Deus e u é?”
Ora, isto
para mim é lindíssimo e é puramente oral, auditivo – “Ai, Deus e u é?”.
“Ai,
flores, ai, flores do verde pino/ se sabedes novas do meu amigo?/ Ai, Deus e u
é?”. A poesia aceita isso, aceita ficar presa, jogar e gozar com a
materialidade gráfica e sonora da língua. Aceita, no fundo, a prisão na
linguagem. Enquanto a filosofia tenta sublimar isso, superar e afastar-se
disso. Há uma longa história da filosofia, desde Platão, a dizer que os poetas
são gente efeminada, gente que gosta demasiado da retórica, e a criticar a
ficção porque é mentirosa. Há um texto de John Locke, em que ele diz que o que é
necessário é a linguagem como uma espécie de canalização que levasse a água
directamente ao espírito dos leitores, mantendo-a pura, ou seja, não pondo em
causa a univocidade do sentido das palavras, abolindo completamente as imagens
e as metáforas. Ele não se dá conta de que a proposta da linguagem como uma
canalização é já metáfora. Kant e outros filósofos estão cheios de metáforas
fundacionais que se ignoram. A poesia, por seu turno, prefere entregar-se a
essa proliferação do sentido. A poesia pensa, mas apaixonadamente imersa na
linguagem. Na minha poesia, há um pensamento que se exprime poeticamente, penso
eu, e não apenas intelectualmente. Nesse sentido, eu poderia dizer que a poesia
é uma razão, mas uma razão de outro tipo.
Perder o
contacto com a poesia é um risco de perder não apenas algo dos afectos e das
emoções, mas de perder uma outra maneira de pensar. Depois, eu diria que a
poesia é uma espécie de razão apaixonada, razão ardente. O próprio Apollinaire
tem um verso em que o diz: “raison ardente”, razão ardente. E há um poeta sobre
o qual fiz minha tese de doutoramento, um poeta francês, Francis Ponge, que,
jogando com as letras e com as palavras, diz que a poesia é un réson e depois
explica: “une raison qui résonne”, uma razão que ressoa. É isso que me
interessa.
Depois há
valorizações excessivas do fato de a minha poesia citar outros livros, outros
autores, outros trechos da poesia, da filosofia... Minha poesia não pretende
ser uma poesia culturalista; essas citações não são para eu exibir cultura;
fazem parte da coralidade que eu gostaria de introduzir no que parece ser uma
fala individual, de tal modo que essa pluralidade de vozes tece a intimidade do
meu ser.
MA: O que o senhor pensa a respeito da recente
poesia que circula no mercado editorial português?
MG: Há
poetas interessantes nessas últimas décadas, mas ultimamente o que tem dominado
a atenção é um conjunto de poetas que tem uma poética muito afirmativa, dizendo
que não pode haver mais metáforas e imagens em poesia. A poesia tem que ser a
linguagem mais chã possível. Há um ou outro que não é mau, porque um poeta com
talento aguenta qualquer tipo de poética, mesmo que equivocada. Agora, em
muitos casos, aquela poesia não consegue me convencer.
E eu não
tenho a ideia de que no meu tempo é que era bom. Mas eu penso que há um
equívoco em relação a alguns desses poetas. Eles acham que aquilo é que está no
ar do tempo, que é aquilo que o tempo espera dos poetas conscientes. Ora, eu
acho que não. Eu acho que, se eu não gosto dos tempos que estamos a viver na
contemporaneidade, tenho de arranjar maneira de falar contra o tempo, contra o
contemporâneo. Eu falo agora contra o agora, espero ser intempestivo e não um
acomodado. Estou fora do tempo e julgo este tempo, dizendo que isso tudo é
lixo. Eu posso fazer isso. Agora, vou repetir a ideia de que este tempo é um
tempo medíocre, em que o espectáculo e o mercado dominam tudo, mas imitar isso,
aí é que eu não vejo qual o interesse. Isto não esconde que haja condições para
haver outros poetas. Por exemplo, nos anos 80 e 90, apareceram em livro poetas
que têm uma força inegável, que é a força que a poesia pode ter. Por exemplo,
Fátima Maldonado, Luís Miguel Nava ou o Fernando Guerreiro, que é um poeta
obscuro, hermético, difícil, mas interessantíssimo. Depois, há o Daniel Faria,
que já morreu, morreu muito novo, muito bom, um poeta com uma capacidade de
imaginação verbal muito forte. Ora, um dos poetas que eu, apesar de tudo,
respeito e parece-me o mais interessante desses mais recentes, é um poeta onde,
nos últimos livros que li dele, acontece uma coisa interessante. Ele publica
quase todos os anos um livro (às vezes dois, são como plaquetes, são livros
muito curtos com muito poucos poemas e colados a uma experiência do real).
Portanto, dá a sensação de que está criando uma espécie de diário, que ele faz
em pequenos ciclos, como, por exemplo, “Eu fui à Noruega”, então faz uma série
de poemas sobre a Noruega. Ele vai a uma taberna e recorda-se de outras aonde
ia e faz um poema sobre tabernas. E, em quase todos eles, os últimos versos têm
a ver com a morte. É Manuel de Freitas.
FONTE: ABRIL – Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 3, n° 4, Abril de 2010
0 comentários:
Enviar um comentário