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    Moçambique em Agosto


    Jorge Arrimar - Angola


    Chegámos a Maputo na madrugada do dia 10 de Agosto. A cidade revelava-se devagar, capulanas resistentes ao nosso olhar estrangeiro. A urbe era tanto o que os antigos legaram como o que os contemporâneos fizeram, lado a lado umas coisas, justapostas outras, misturadas ainda outras, como se ela estivesse, desde sempre, “na varanda do tempo […] onde o mundo mais namora com a nação moçmbicana”, como nos diz Mia Couto, referindo-se à variedade de povos e de culturas que o Índico trouxera até ali. Na Maputo de hoje descobre-se muito da Lourenço Marques de ontem, sobretudo no casario (muitos dos seus exemplares evidenciam o arrojo e modernidade com que foram desenhados), na forma simétrica em como foi construída ao longo de ruas largas e arborizadas, de avenidas amplas e rectas. Cidade de acácias vermelhas que, apesar de não serem bem acácias, ganharam o direito de serem conhecidas assim por se transformarem em árvores de fogo e deixarem no ar o cheiro das suas flores cor de chama. Cidade de ruas e largos com tapetes entretecidos das pétalas lilases que os velhos jacarandás deixam cair numa benesse florida aos seus habitantes. Infelizmente, nem todos aprenderam a cuidar da sua cidade e descobre-se, mais vezes do que se desejaria, uma cidade de ruas esburacadas e sujas, de prédios por reparar, de jardins por limpar. Mas acreditamos que seja uma questão de tempo e de aprendizagem e que esta cidade poderá continuar a ser uma das mais bonitas e tranquilas de África.
    Lembrei-me, então, que, uma amiga minha, moçambicana, me tinha dito uma vez que, em qualquer língua, bantu ou outra, para ela esta cidade “merecia mais ser a Baía da Lagoa […] pelo formato, doçura e cor do mar que a rodeia”. Confesso que, na altura, não percebi muito bem e até achava um tanto infeliz este nome, em que se misturava lagoa e baía. Mas hoje concordo com ela. Há cinco séculos atrás, navegadores que por ali passaram no rasto do Gama, levaram até longe notícias dessa baía, a ponto de, logo em 1502, aparecer referenciada no célebre mapa de Cantino. Estar neste planisfério é, por si só, uma certidão de maioridade, um sinal de notoriedade. Se a isto somarmos o peso da lenda que suporta este nome, então Baía da Lagoa não tem rival. Acreditavam os antigos que aquela magnífica baía se enchia das águas que os rios, que ali desaguam, iam beber a uma grande lagoa que existia no interior do continente. Bela esta imagem de uma lagoa que se transforma em baía…
    Mas como diabo surge então esse nome que se grudou à cidade até à independência de Moçambique? As crónicas antigas revelam que o reconhecimento geográfico desta baía só acontece a partir de 1544, por via de um obscuro navegador, chamado Lourenço Marques, que seria um piloto das naus da Índia e negociante ao serviço do capitão português de Sofala e Moçambique. Pois foi a esse senhor que, decorrido muito tempo, foram buscar o nome que pespegaram à povoação que se desenvolvera naquele local. Esse Lourenço não imaginava, sequer, que iria ser aquela baía a imortalizar-lhe o nome. Ainda hoje não é uma questão encerrada a do nome autóctone que foi escolhido para substituir o do obscuro navegador. Cheguei a ouvir sussurrar, enquanto andei por Moçambique, que Kampfumo ou Xilunguíne são ainda candidatas à designação desta cidade. Nisso Luanda teve sorte. Ninguém sentiu necessidade de alguma vez lhe trocar o nome. E, felizmente, a minha terra resistiu sempre às tentativas que houve, ao longo dos tempos, de lhe mudarem o nome, de S. Pedro da Chibia para
    Vila João de Almeida. Nunca ninguém usou este nome com que o Estado Novo tentou cobrir o original. É que é sempre complicado mudar o nome de uma cidade, de uma pessoa, até de uma coisa. Com o nome vai muito mais que a simples sonoridade dele. Ao nome vão-se agregando muitas coisas, muitas referências, muitas histórias, muitas vidas...
    Mesmo no dia da chegada, ao raiar da aurora, aproveitámos para iniciar o nosso passeio. O dia estava cinzento e frio, fazendo-se sentir, desagradavelmente, em fortes e repentinas rajadas. Alguém me disse, depois, que Agosto é o mês dos ventos. De bons ventos, espero, pensei eu. A primeira paragem foi no Jardim dos Namorados, recentemente recuperado. Ao fundo, junto ao paredão que dava para a baía, viam-se duas filas paralelas de colunas, nuas, como se estivessem ali apenas para sustentar o céu. Era o que restava de um magnífico caramanchão de buganvílias que emprestara frescura às pessoas nos dias de maior calor.
    Perscrutando o horizonte, achava que, a qualquer momento, o tempo iria mudar e que, talvez, fosse um bom prenúncio começar a minha visita por ali… no namoro que eu pretendia iniciar com aquela cidade que ainda não vira, mas que sabia ser uma das mais encantadoras da África Austral. Pela primeira vez deixei o meu olhar demorar-se na baía. Depois de um pequeno-almoço tomado no bar do jardim, resolvemos continuar a visita. Nas curvas do Caracol “ia com os olhos cheios de mar. Quem olha para trás com uma baía assim? Quem consegue desprender os olhos dos minúsculos barcos de pescadores concentrados na pequena praia da Catembe, fugidos de um mar como aquele que hoje faz?”. Fiz minhas as palavras do narrador de “O olho de Hertzog”, belíssimo livro do moçambicano Borges Coelho, que nos transporta a este mesmo local… só que h| quase um século atrás. Proferidas há tanto tempo, não deixavam de manter o mesmo sabor.
    Fui interrompido nas minhas cogitações pelo taxista que nos levava (coincidência: também a personagem do romance ia de táxi): Se quiser, pode apanhar um barco lá em baixo e ir até Catembe e depois à Ponta do Sol, vale a pena. Respondi-lhe que ainda era cedo para esse passeio; queria ver Maputo em primeiro lugar. Catembe ficaria para mais tarde, se houvesse tempo.
     Iniciámos a nossa visita à urbe, primeiro pela marginal de uma baía de águas um tanto escuras, disseram-nos depois, devido aos lodos e sedimentos transportados pelos rios que ali desaguam, sobretudo do Umbelúzi. Seguiu-se a Fortaleza, onde se encontram guardados alguns dos símbolos da época colonial, nomeadamente a estátua equestre de Mouzinho de Albuquerque e o painel de bronze que representa o momento da vitória em Chaimite sobre o último rei ngúni de Gaza. Chaimite, não a capital de Gungunhana, que era Manjacaze, mas a que fora de Muzila, seu pai. Lembrei-me dum livro de Guilherme de Melo, que li há já bastante tempo, “Os leões não dormem esta noite”, construído na base da hipotética conversa entre o rei vencido, o “leão de Gaza”, e o oficial vencedor, o “leão português”, antes de, a ferros, o soberano ngúni ter abandonado a sua terra definitivamente, para ir morrer bem longe, no forte de S. João Baptista da cidade de Angra do Heroísmo, no arquipélago dos Açores.
    Fiquei encantado com a Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique. Mais tarde li, numa qualquer publicação de divulgação turística, que a revista Newsweek a tinha considerado como a mais bela estação de caminhos de ferro de África e uma das sete mais belas do mundo. Fora desenhada por Gustave Eiffel e inaugurada em 1910, partindo o seu autor da ideia de que se devia assemelhar a um palácio com pilares de mármore e enfeites em ferro fundido. Uma placa de latão polido, cravada numa das paredes, dava-nos conta das comemorações, este ano, do seu centenário. Seguir-se-iam três dias de passeios pela cidade. Não me admirei que as elites, as de ontem como as de hoje, tenham escolhido os bairros Sommerschield e da Polana para residir. Dentro da igreja de St.º António, rendido ao suave brilho dos vitrais, vi uma laranja de luz a ser espremida lá no alto, no lugar das estrelas.
    Num dos outros dias em que estivemos em Maputo, a caminho dos muitos sítios, edifícios e monumentos que queria conhecer, passámos pelo Alto Maé e eu tentei ver se adivinhava o vulto de algumas pessoas que eu conheci longe daqui, deste lugar que me haviam dito ter sido deles. Voltaríamos alguns dias depois, quando uns amigos nos quiseram mostrar Maputo “by night”, após um jantar de iguarias moçambicanas que a mãe de um amigo, Sérgio Sousa, simpaticamente nos ofereceu. Um ponto alto deste jantar e do serão que se lhe seguiu, foi termos tido a oportunidade de falar com D. Teresa, sua avó, e que conta com a belíssima idade de 105 anos. Senhora de uma vivacidade pouco vulgar em alguém com tantos anos percorridos, encantou-nos com as suas histórias, quase sempre filtradas de fino humor.
    Já com a capital bastante percorrida, com os seus emblemáticos locais e principais monumentos visitados, quisemos ver o que havia para lá dos seus limites. Resolvemos, então, ir até Inhambane e depois até mais longe, a Vilanculos, terra vizinha do célebre arquipélago do Bazaruto, quase a 800 km de Maputo. Alugámos um carro com tracção às quatro rodas que nos levou, de forma mais segura, à descoberta do asfalto esburacado, do sem asfalto, da terra batida e da picada. Maputo, Marracuene, Maluana, Manhiça, Taninga, Magul, Macia, Xai-Xai, Chongoene, Boane, Chidenguele, Zandamela, Quissico, Zavala, Inharrime, Maxixe e Inhambane; quilómetros e quilómetros por terras de paisagem variada, florestas de cajueiros, machambas de amendoim, palmares de coco e sura, pomares de mangueiras e tangerineiras... e mulheres de capulanas a drapejar ao vento, à cabeça bacias com frutos, camarão, água, molhos lenha, tudo. As bermas das estradas são a montra deste país. 
    Em Zavala quis ver e ouvir os marimbeiros, os tocadores de marimba, os mágicos da timbila. Infelizmente não foi possível, pois só se faziam ouvir em festas, cerimónias ou ocasiões especiais. Tive pena.
    Chegámos a Inhambane já a noite escondia quase tudo. Ficámos hospedados na Casa do Capitão, residencial construída a partir do que restava da velha casa do capitão do porto desta cidade. No outro dia, quando o sol começou a levantar-se, a baía de Inhambane foi saindo da sombra, primeiro envolta numa suave neblina, depois coada nas malhas de luz de um sol cada vez mais forte. Um navio encalhado pelo recuo nocturno da maré ia ganhando vida à medida que a madrugada lhe devolvia o mar. A baía de Inhambane foi um deslumbramento. Lindíssima!
    Aqui bebi um refrescante e doce sumo de tangerina, um sabor que me transportou à infância e às tangerinas da minha terra natal, no sudoeste angolano. Como as de Inhambane, ainda acho que as tangerinas da Chibia são das melhores do mundo. Junto a minha voz à do poeta da Mafalala e confesso que “adoro morder voluptuosamente os sumarentos gomos / das magníficas tanjarinas d'Inhambane. Adoro mesmo!”
    A caminho do Miramar, mirando o mar deixei-me ir com os repuxos do respirar das baleias, parentes, talvez, daquelas que eu vi mergulhar no mar dos Açores, naquele Atlântico agitado e profundo que separa as remotas ilhas das Flores e Corvo. Se nestas estivemos nas terras mais ocidentais da Europa, agora estávamos onde o Oriente começa.
    Esta é a costa africana banhada pelas índicas vagas, as mesmas que, devagar, muito devagar, conduziram o Gama até ao Samorim de Calicute, na eterna Índia das especiarias. Pois, fui encontrá-lo, triste e esquecido, num quintal desta centenária cidade, refém infeliz de um conturbado tempo nosso (não o dele!), e hoje náufrago de um outro oceano que, em vida, não imaginara vir a enfrentar.
     Segundo rezam antigas crónicas, o velho almirante aparecera na protectora baía, vai para mais de 500 anos, para fazer aguada e, bem impressionado pela terra que seus olhos descobriam, resolveu entrar e ver como era mais de perto. Depois seguiria o seu destino, bem mais longínquo e apelativo, na outra margem daquele mesmo oceano que o refrescava, ele que, afinal, não se prendera ao gosto da doce tangerina, antes se mantivera fiel ao cheiro da canela e da noz-moscada. Mas gostou da baía e ainda se diz hoje que foi o navegador português a propalar que aquelas eram terras de boa gente. Mais do que tudo, foram essas palavras que ligaram o Gama a este lugar. E por que razão fora tão simpático, logo ele que, segundo consta, não era muito dado a palavras doces ou a simpatias vãs? Contaram-me que o velho almirante, vindo do mar em terra se encharcara de copiosa chuva, e que, precisando de um tecto para se recolher e de uma fogueira para se secar, teria sido abrigado por um local em sua própria casa, que ao recém-chegado se dirigiu em bitonga, convidando-o a entrar, bela gu nhumbale.
    O Gama, de regresso ao navio e satisfeito com a hospitalidade, teria dito, então, que estava numa terra de boa gente. Gente que, em jeito de despedida lhe teria gritado ambane. Mais nesta última palavra, a da despedida, do que nas primeiras, as do convite, parece espreitar o nome desta cidade. O toponímico Inhambane terá origem nesta palavra, a mesma que foi pronunciada para despedir o visitante?
    Voltei a olhar para a estátua ali esquecida a um canto e questionei-me se não continuariam a dizer ambane ao Gama. Ele, que, há mais de trinta anos aguarda, naquele cais improvisado, por uma outra nau, que o leve de regresso à terra natal. Ou então, de tanto esperar e de por tanto tempo o deixarem ficar… talvez a boa gente de Inhambane lhe volte, um dia, a dizer, bela gu nhumbale. Quem sabe?
    E a viagem continuou, mais umas três centenas de quilómetros, mais Moçambique a desfilar nas bermas das estradas, Inhambane, Maxixe, Mocoduene, Morrumbene, Massinga, Unguana, Vilanculos. Para mim, nada como a Baía de Inhambane. Não é fácil encontrar uma natureza tão rica, tão pujante de beleza como a(s) Baía(s) de Inhambane. Os nossos olhos ainda estavam cheios da Praia da Barra, da Baía dos Flamingos, do Miramar, das Praias do Tofo e do Tofinho. Em Vilanculos ficámos na Casa Rex. O nosso quarto abria-se para o mar e para as ilhas do Bazaruto. Lá, diziam-nos, naquelas ilhas é que está uma beleza sem igual. Nós acreditámos, mas os dias estavam cinzentos, chegou mesmo a chover, e achámos que não valia a pena arriscar. Passeámo-nos por ali, vimos praias de areais a perder de vista e coqueiros a dançar marrabentas de vento… mas continuávamos com a Baía de Inhambane no olhar.
    Quando iniciámos o regresso a Maputo, quisemos voltar a Inhambane. No Tofo encontrei (Que surpresa!) amigos antigos de Angola e de Macau que haviam escolhido aquele lugar para sua residência. Com eles almoçámos matapa de caranguejo e só saímos de lá quando, ao desmaiar do sol, a mosquitaria ganhou coragem e invadiu tudo. A viagem até Chidenguele foi nocturna e de cacimbosos calafrios, sobretudo quando nos cruzávamos com outros carros, todos a fugirem dos mesmo buracos e a cegarem-se dos mesmos faróis. Nas margens do lago com o mesmo nome desembocámos em adiantada hora. Só os pássaros, as rãs e as estrelas se ouviam. Lindo! E o mar a bater em frente mostrava-se invejoso daquele lago que nos atraía mais do que ele. Em Nhambavale, mesmo juntinho à água doce do lago, foi um delírio. Seria ali o paraíso?
    Seguiu-se Xai-Xai onde o ocaso não foi um acaso de beleza e o horizonte festejou-nos com tons de manga madura. O que veio depois é que foi! Chegámos ao Bilene já a noite nos brindava com as primeiras sombras que uma lua cheia teimava em afastar. Deixaram-nos num cais destruído e disseram-nos que esperássemos pelo barco. Havia de chegar, mas como não tinha luz, seriamos avisados pelo roçar do casco dele nas ondas mansas da lagoa. E assim foi. Quando se acercou de nós, arregaçámos as calças, mergulhámos os pés na água morna e fomos até ele. Seguiu-se a viagem num barco sem luz em que o farol era o luar… Deixaram-nos na encosta arborizada das grandes dunas que não deixavam ver o mar. O cen|rio era soberbo { luz da lua… o cenário continuou soberbo com a manhã a chegar…


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