Dany Wambire - Moçambique
Pediram-me ou me ordenaram a escrever. Que eu
pegasse mesmo na pena, pois, segundo eles, já tinham me visto, fingitivo, a
traduzir vozes de certas almas, que ultimamente faziam do meu corpo, das minhas
mãos, suas ilegítimas propriedades. E eu finjo e fujo, para não cumprir com as
ordens destas almas que não conseguem pôr a escrito as suas inquietações e
satisfações. Ainda, apresento falsos argumentos. Sim, me vou digladiando nas argumentiras.
― Vocês estão a me
incriminar. Qualquer dia vou preso por causa das vossas declarações.
Como era de esperar, ninguém se comove com a
minha injustificação. Defendem-se, essas vozes, que há um direito que lhes
assiste, o de liberdade de expressão. Que testemunharão a meu favor, caso
qualquer indivíduo apresente uma queixa à justiça, se por mim entender-se
ofendido.
E se se deseja exemplo de alguém que este
hábito tem, de encomendar escrita das suas inquietações, tenho Infelisberto
Descansado. Este é quem ultimamente me vem bater à porta para lhe escrever a
estória dos seus vizinhos de lado. Como o próprio Infelisberto diz, esses
vizinhos discutem em demasia, acima do anormal. Trinta horas por dia, coisa
inaceitável.
Digo-lhe que não posso escrever este assunto,
bastante sensível. Afinal, ele bem sabia que em assuntos de casais não se deve
pôr a colher. Eu só escreveria caso o assunto transmutasse ao contrário, de
sensível ao insensível. Mas ele insiste, dizendo:
― Não é caso de vida ou morte, mas o assunto merece
um documento escrito.
Não resisto. Não é meu forte recusar a
pedidos. Gosto é desafiar ordens ou mandos arrogantes, e não a pedidos
humildes. Então, fui escrevendo, traduzindo em escrito a voz deste
Infelisberto.
Começou por dizer que o seu vizinho, Salomau
Maugente casou-se com a enteada, logo após a morte da mãe desta última, por
sinal esposa desse Salomau. Os dois viveram juntos, enfrentando más-línguas.
Peniscilina, a enteada, passou a ser em concomitante irmã, madrasta, mãe dos filhos
de Salomau.
Diz-se que tudo andava às maravilhas.
Chegaram mesmo a ter muitos filhos. Coube ao primeiro receber um nome que
fenecesse com todas más-línguas dos demais. O nome foi adoptado e adaptado em
inglês: Letspeak. Queria-se dizer que pessoas podiam falar, mas essas falas não
afectariam a sua relação. Muito pelo contrário: estimulava-os a ter mais
filhos.
Aconteceu, todavia, que ultimamente os
problemas faziam constantes visitações à relação dos dois. Até melhor é dizer
que os problemas foram aparecendo como se fossem os sangues que visitam às
mulheres em cada mês. Peniscilina foi entendendo que a sua relação era incomum:
ela separava-se do Salomau em idade a trinta anos. Sendo a maior para Salomau,
obviamente.
Frustrada, começou a beber álcool até acabar
a decepção. Acabou a frustração, mas nasceu nela o gosto pela bebida, passando
a fazer-lhe companhia no seu dia-a-dia. Quer dizer: no tremendo exercício de
alívio da frustração, nasceu-lhe um vício.
Em casa não parava. E sempre que o marido lhe
exigia satisfações, ela prontamente respondia-o.
― Não me incomode se não,
vou-te denunciar.
― Denunciar, fiz o
quê?
Peniscilina dizia que iria ao gabinete de
atendimento à mulher vítima de violência doméstica para apresentar a queixa de
que o seu marido, quando se envolvera com ela, há dez anos atrás, ela era
menor, contando apenas com catorze anos de idade. Houve nessa altura violência
sexual, acreditava ela.
―
Você abusou-me e violou-me sexualmente
― ameaçava, bêbeda Peniscelina quando lhe apetecia.
― Não
foi violência sexual, mas sim agressão sexual ― retrucava Salomau,
concluindo no seguido, ― todo sexo é
violento. Mesmo o consentido.
Não paravam as discussões. Ainda, uma vez,
Salomau seguiu a esposa numa barraca para que ela viesse à casa e tomasse conta
do recado doméstico. E ela respondeu, com violência verbal.
― Por que me
persegue? Não vês que eu não te quero?!
― Se não me
quisesses, ias procurar feiticeiro para pôr-me na garrafa?
E seguiam outros palavreados e palavrões, indescritíveis.
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