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    LEITURAS: 12 anos de jornal Rascunho "o mais difícil é encontrar dinheiro”




    Aos 12, com circulação mensal que nunca se interrompeu, o “Rascunho” é hoje a mais longeva publicação literária independente do país.
    Quando existia a EntreLivros, revista mensal que editei entre 2005 e 2008 (como editora assistente e depois editora), eu pensava diariamente em quanto tempo duraria. E ao ver todo mês o Rascunho chegar, apostava que seríamos capazes de repetir o feito daquele veterano sediado em Curitiba. EntreLivros se foi, Rascunho continua – caro leitor, não é nada fácil.
    Criador e editor, Rogério Pereira conta a história do Rascunho: nasceu em 2000 como um encarte de oito páginas do “Jornal do Estado”, de Curitiba. Quando completou quatro anos, se tornou independente, já com 32 páginas, 40 em edições especiais. A cada mês, são rodados 5 mil exemplares. O número de colaboradores varia de 30 a 50 por edição. Chega a todos os estados brasileiros por meio de assinaturas e cortesias. Há pontos de distribuição gratuita em livrarias de vários estados. As edições seguem também para universidades e embaixadas brasileiras no exterior.
    O jornal é editado pela Letras & Livros, “criada por razões fiscais e cujo patrimônio é uma sala atulhada de livros, um computador, uma impressora e algumas dívidas”, explica Pereira. O endereço fiscal continua sendo o da casa de sua mãe. “Lá, o Rascunho nasceu. Lá, há de sobreviver. É claro que isso faz parte do folclore do jornal, pois agora temos uma sala comercial no centro de Curitiba”.
    Esta é a conversa que tive com Rogério Pereira por email. Vá por aqui para encontrar a versão online do Rascunho.


    Josélia Aguiar - Brasil


    Como surgiu a ideia de fazer o Rascunho?

    “Foi bastante prosaico: reuni um grupo de amigos para criar um jornal literário. Na época, éramos bastante jovens, acreditávamos que iríamos mudar o mundo, fazer grandes coisas etc. Ou seja, o que todo jovem acredita que irá fazer antes de se tornar um velho reclamão e acomodado. Tínhamos muito claro que precisávamos fazer algo de qualidade, expressivo, diferente. Então, resolvemos apostar em longos textos, longas entrevistas, espaço para inéditos — algo em franca decadência na imprensa brasileira naquela época, tão apaixonada pelas novidades da internet. Sempre fui muito perfeccionista e exigente comigo mesmo. Então, não poderia fazer um jornalzinho de literatura. Era preciso fazer o ‘melhor jornal de literatura do Brasil’, mesmo sem nenhum dinheiro, pouquíssima visibilidade e conhecimentos mais do que frágeis. Enfim, uma aventura como outra qualquer, cujos prejuízos seriam mínimos. Mas a aventura deu certo. O Rascunho cresceu, tomou corpo, importância e hoje é, apesar da arrogância do slogan, ‘o jornal de literatura do Brasil’”.

    Lembro-me de uma fase mais polêmica, com resenhas mais duras, brigas até. O Rascunho, me parece, está mais suave. É da idade? Foi algo que ocorreu naturalmente ou vocês buscaram uma mudança de ânimos?

    “Não buscamos nada. Ou buscamos e não sabemos. No início, éramos iconoclastas, destruidores, birrentos, piás de calça curta jogando pedras para todos os lados. Matamos vários passarinhos desavisados. Fase muito boa aquela. Lembro da capa sobre os 50 anos da poesia do Décio Pignatari: “50 ANOS DE ENGANAÇÃO”. Depois, teve a do Sebastião Uchoa Leite: “Pára com isso, Sebastião”. O Rascunho era melhor ou pior naquela época de guerrilha? Uns acham que era melhor; outros, que era uma lástima. Hoje, somos mais mansos, mais bovinos? Talvez sejamos mais responsáveis, sem perder a liberdade de opinião. O Rascunho vive publicando resenhas negativas a vários autores consagrados. Qual o problema? Nenhum. Fazer um jornal para ficar bajulando o outro em troca de bajulação é algo que não nos seduz. Pode seduzir algum dos colaboradores, mas nunca me seduzirá. O jornal continua sendo um amplo palco para discussões literárias, para a divulgação do livro, leitura e literatura. Hoje, abriga muitas vozes, é mais complicado driblar certos compadrios. Mas continuo tentando. Levo as coisas muito a sério. Há todo um critério editorial seguido à risca. É claro que hoje as costas doem mais, a visão está mais embaçada, a energia começa a rarear. Nestes dias, é melhor esquecer pequenas intrigas. E guardar energia para as grandes batalhas. A velhice só faz bem aos museus; e aos geriatras enquanto não precisarem consultar seus colegas geriatras”.

    O que é mais difícil – ter mais leitores, ter os colaboradores que procuram, ter patrocinadores?

    “Mais difícil é encontrar dinheiro. A ignorância está entranhada na vida do Brasil. Ser ignorante é muito fácil, muito mais cômodo. Dói menos. Nossa classe média é alfabetizada, mas não lê. Ou lê para se distrair. Portanto, um bando de analfabetos. Nossos políticos, com algumas boas exceções, são todos clones do Tiririca: usam gravata Armani, terno Ermenegildo Zegna e carregam no bolso o livro de piadas do Costinha. Para tirar sarro da nossa cara, obviamente. Leitores surgem o tempo todo. Somos uma imensa minoria. Mas com bastante ânimo. Colaboradores também. O Rascunho não consegue abrigar todos que desejam colaborar com o jornal. E não pagamos um centavo pelos textos. É incrível como existem pessoas malucas. Não estou sozinho nisso. Sou apenas um arremedo de Simão Bacamarte. O Rascunho é a nossa Casa Verde. Precisamos de mais dinheiro para adquirir nossos barbitúricos, soníferos, calmantes etc”.

    O Paiol Literário, projeto que recebe autores para longa conversa, e agora a reunião em livro das principais entrevistas fortaleceram o Rascunho? 

    “É preciso fazer algo que dê sustentação financeira. Todo projeto ajuda a manter o Rascunho vivo. O Paiol surgiu do meu interesse pelas discussões em torno da leitura/literatura. Não é nada original: entrevista com um escritor, com perguntas do público. O diferencial é que guardamos a memória de todos os encontros com a transcrição no Rascunho, com o áudio e o vídeo. O livro de entrevista é uma consequência bastante natural, pois as grandes entrevistas fazem parte da alma do Rascunho desde seu início. E o belo trabalho do Luís Henrique Pellanda na organização e da Arquipélago na edição valorizou muitíssimo esta marca do Rascunho. Mas o mais importante é que o Rascunho gerou um ambiente propício à criação de novos projetos. E vamos continuar insistindo enquanto o médico não nos der alta deste hospício.”

    O site ajudou na vida do Rascunho impresso?

    “O site ‘piorou’ a vida: não ganhamos dinheiro com ele (só gastamos) e cresceu muitíssimo a nossa demanda. Todo dia tem alguém entrando em contato, mandando textos, mandando livro, etc. Um verdadeiro inferno, no bom sentido (acho). Hoje, temos mais leitores no site do que na versão impressa. Ao todo (site + impresso), temos quase 30 mil leitores. É muita gente desocupada neste mundo.”

    Como funciona a parceria com o grupo GRPCom, que publica a “Gazeta do Povo”?

    “Imprimimos o Rascunho nas gráficas da “Gazeta do Povo” com algumas vantagens. Em troca, oferecemos todo o conteúdo do Rascunho para o site da Gazeta. É uma ótima parceria. Mas não implica em qualquer interferência na linha editorial. Continuamos com a mesma independência, fazendo o jornal de madrugada, aos finais de semana. As dificuldades financeiras continuam as mesmas. Todo mês é preciso buscar dinheiro para arcar com todas as despesas da edição. Quando falta, tiro do meu bolso. Não usamos lei de incentivo. Mas, que fique claro, não há nada de heróico nisso tudo, como alguns dizem por aí. É apenas uma escolha, uma forma de viver, de apostar em alguma coisa em que se acredita. Heróico é outra coisa, muito mais complexo, como ajudar efetivamente quem precisa. Fazer um jornal de literatura é apenas uma aposta. Nada mais.”

    Por que as nossas publicações literárias nascem e morrem tão rapidamente? A competição entre os pares é um problema maior que a própria falta de público?


    “Deus se esqueceu de colocar na constituição cerebral da classe média brasileira (na haitiana também, parece) que ler é importante. E a classe média gerou os diretores de marketing, que não lêem, não sabem para que serve a leitura de ficção etc. Aí, eles, os diretores de marketing das grandes empresas (inclusive das editoras), que só lêem livros de autoajuda, pois estão preocupados somente consigo mesmos, não sabem exatamente para que serve uma publicação literária. Aí, não destinam verbas publicitárias a estas publicações literárias. E elas morrem. E as grandes editoras, que poderiam investir em publicações como o Rascunho, não investem. Por quê? Simples: porque é preciso fisgar o leitor desavisado dos grandes jornais. O leitor do Rascunho sabe onde e o que procurar nas livrarias. Entre a Folha e o Rascunho, a grande editora sempre opta pela Folha. Não poderia optar por ambos? Cansei de bater na porta das grandes editoras pedindo um quinhão (bem pequeno) da verba publicitária. Algumas querem fazer permuta por livros. Adoro livros, vivo por eles etc., mas já tentei mastigar a “Divina Comédia” com alface e me pareceu indigesto. Nem as grandes editoras, cujos diretores de marketing foram gerados a partir do erro divino, apostam em publicações com o Rascunho (a não ser as assessorias de imprensa, que nos atormentam o tempo todo; por quê? porque os escritores querem espaço lá, acham importante a discussão de seus livros no jornal, etc.). Torço para que os diretores de marketing sejam todos ficcionistas. Eu falo de publicações literárias na essência. Não falo de publicações culturais. Ninguém se interessa por publicações alternativas de literatura. A não ser os leitores e os escritores. Mas os leitores destas publicações estão sempre sem grana. Se todo mês cada um que diz gostar doasse R$ 1, estaríamos salvos. O pobre não é solidário na literatura. Nem no câncer. Mas as publicações têm muita culpa nisso tudo. Normalmente, são de péssima qualidade gráfica e editorial, atendem interesses mesquinhos de meia dúzia de poetas locais, são intransigentes, não aceitam a variedade de vozes etc. Sufocam e morrem.”

    Como explicar o fato de Curitiba, o Paraná em geral, ter um veículo do porte do Rascunho? Antes houve o Nicolau, agora há também o Cândido. De onde vem a tradição de fazer publicações?

    “Talvez venha da anemia editorial da cidade. Nunca tivemos (com raríssimas exceções) um mercado editorial fortalecido. Isso talvez tenha motivado algumas pessoas a se dedicar às publicações literárias. É uma forma de dizer “estamos aqui, fazemos algo além de fugir da chuva e de treinar este nosso sotaque horroroso”. Ou talvez não seja nada disso. Quem sabe seja um ranço da soberba intelectual de nossa colonização europeia: somos filhos de italianos, poloneses, ucranianos, alemães. Filhos renegados, é bom que se diga. Ou talvez seja a coincidência de algumas pessoas estarem em Curitiba em determinado momento da vida. Ou ainda a inveja do passado. Já que tivemos a Joaquim, vamos fazer o Nicolau; já que o Nicolau fez sucesso, vamos fazer o Rascunho; já que o Rascunho deu certo, vamos criar o Cândido. É isto: a inveja nos move. A culpa, portanto, de tantas publicações literárias em Curitiba é da inveja. E, em última estância, do capeta e dos pecados capitais. Contrariando nossa tradição cristã, vamos todos arder no fogo do inferno, invejosos, sob as labaredas das nossas páginas impressas em papel barato.”

    O que quer o Rascunho agora? Algum novo projeto, reformulação à vista?

    “A sobrevivência. Sempre. Mas sempre queremos ir além da sobrevivência. Vivo de projetos. O que me impulsiona sempre é a possibilidade de fazer algo, de ir além. Tenho vários projetos anotados na caderneta ao lado da caixa de Rivotril. Pretendo criar uma fundação: Fundação Rascunho de Cultura. Com isso, desejo criar projetos sociais de livro e leitura. Ir além da discussão teórica, da divulgação dos livros etc. Hoje, apoiamos alguns projetos, mas é preciso fazer mais. Acho que uma Fundação dará suporte para mais esta aventura. Também pretendo criar uma biblioteca comunitária na casa da minha mãe (endereço fiscal do Rascunho). Cresci naquela casa de madeira, criei o Rascunho ali, li boa parte dos livros naquele quarto úmido. Agora, sempre que vou à casa da minha mãe, penso que uma biblioteca poderia ser muito útil para aqueles moleques que passam o dia nas esquinas vagabundeando ou usando drogas. Também carrego há bastante tempo a ideia de uma biblioteca itinerante pela periferia de Curitiba. Pretendo comprar uma kombi, equipá-la e levar livros e leitura a quem precisa. Muitas pessoas não sabem que gostam de ler. É preciso mostrar isso a elas. E pretendo criar o Prêmio Rascunho de Literatura. Ainda não sei muito bem como, nem quando, mas penso nisso há muito tempo. Não tenho projetos originais. São todos muito óbvios. Mas acredito que é preciso dizer o óbvio todos os dias. E o original quando é possível.”






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