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    LIVROS: “Ndekeni” de Alexandre Chaúque

    Gulamo Tajú (Sociólogo)


    Sexta-feira, 24 de Fevereiro, o Sol estava a pôr-se do lado de lá da Maxixe. Eu e o Chaúque partilhávamos uma preta em Nyaposa[1], quando ele fala-me do Ndekeni e convida-me a fazer a sua apresentação na cerimónia do seu lançamento público. Não pestanejei. Aceitei de coração. Mas sei que serei incompreendido. Muitos estarão aqui interrogados: porquê eu apresentar um livro desta natureza se não sou escritor, nem estudioso de literatura. É verdade. Têm muita razão, os que assim se interrogam. Mas, eu, o ninguém, nestas circunstâncias, não poderia ter negado o convite do Chaúque. Falando na língua[2] em que a nunu[3] Sagwate[4] e a Dª Marta wa Firmino[5] nos ensinaram as primeiras palavras, e as seguintes também, Chaúque é mufo wangu. É meu amigo. Não é um amigo qualquer. Aliás, entre os Vatonga não há amigo qualquer (ou, pelo menos, não havia). Amigo é aquele por quem podemos morrer e que também pode morrer por nós (neste caso, arriscando-me, eu, a morrer pela boca, por falar muito e de coisas de que nem sou especialista). Mufo[6]. Mufo wangu. É isso mesmo. Aquele que pode morrer – gufa – por mim. 
    Malditos dos portugueses que semearam falsidades nas nossas relações sociais e passamos a tratarmo-nos, nas nossas amizades, por parceiros, pares (dzipari[7]). É isso mesmo. Hoje, mesmo avba gaya[8], muitos tratam amigo por pari – o que denota amizade circunstancial, episódica. Chaúque não é, para mim, pari yangu. É mufo wangu[9]. Por isso aceitei o seu convite. Nyibongide, Chaúque, unganyirana para nyiganela ku uwe nyi gulova gwago. (Sei que há aqui convidados e mais circunstantes cujas mães lhes iniciaram na fala em outras línguas que não o Gitonga. Por isso vou traduzir: “Obrigado, Chaúque, por me teres convidado para falar de ti e da tua escrita.”).O livro e o autor sobre os quais devo falar se confundem muito. O livro narra a trajectória e as peripécias do Ndekeni – um jovem das planícies de Mocodoene, aqui em Inhambane, que se aventurou para Maputo e depois para Africa do Sul, ao encontro da luz. Queria ganhar dinheiro para depois regressar com outra condição social e casar-se com uma mulher da terra. 
    O jovem Ndekeni, em Mocodoene, sonhava com os leões lhe transportando no dorso e ele abraçado à farta juba, ao encontro da luz. Já os seus antepassados haviam tido sonhos semelhantes e, ao encontro da luz, em Maputo ou na África do Sul, fizeram-se a pé ou transportados do “Madjone-Ngonyamo, Lda”, do “Sá” (Auto-Viação do Sul do Save, Lda), da Romos e agora dos Chapas[10] da Junta[11]. Ndekeni chegou à Junta num dia de chuva. Não tinha bússola nem GPS[12]. Valeram-lhe os espíritos dos antepassados. Ali mesmo, mas não de imediato, conheceu um avô, casado com Raci Makwandra e já estabelecido em Maputo há 30 anos, e que lhe fez conhecer “Estrelas Vermelhas” e mulheres. 
    E, já sozinho, porque negava dependências do avô, conheceu a baixa de Maputo e a Rua de Bagamoyo com tudo o que de Araújo tinha.Este livro já foi premiado pelo Conselho Municipal de Maputo, em 2011. Ainda era manuscrito. Quando li a chegada e permanência do Ndekeni na Junta, no bairro do Aeroporto, no “Estrela”, na Rua de Bagamoyo, compreendi as razões por que o meu antigo colega de profissão premiou esta obra do meu antigo colega da Pré-primária, na Escola Primária Carvalho de Araújo. É o retrato de Maputo, das migrações diárias, das multidões sem destinos bussolados e muito menos djipiessizados[13], mas com sonhos todos os dias adiados e, no dia seguinte, renovadamente acordados. É o Maputo das insónias do Simango.A primeira pessoa com quem partilhei a leitura deste livro foi a minha filha, última. Ela nascida na terra dos Varonga. Ficou deslumbrada com a estória da Raci Makwandra. Ela está a estudar medicina na UEM. 
    E a Raci estudou outra medicina, nos fundos do mar, durante 3 meses. E a sua graduação não foi feita com a toga preta europeia, mas com o corpo coberto de algas e missangas ganhas nos 3 meses de marinagem. Minha filha já havia ouvido falar desta estória, quando, em 2004, veio passar férias com a avó Zaharai[14], precisamente em Mucucune (ou, melhor dito, em Nguhune) – terra da Raci – e aonde ela bebeu um pouco melhor das raízes do pai. E vi-lhe maravilhada e disse-me: “isto é típico da vossa terra”. Com uma beleza de pormenores, o típico da nossa terra, as suas crenças, as suas celebrações, a sua culturalidade, perpassam o livro do Chaúque. E eu reencontro-me, nele, com a minha infância em Bhalane, Nguhune, Gilaleni, Gihengeni, Tsuvanene, Nyacutsêni, Macolo, Marrambône, Tsamane[15], ouvindo dzingoma[16] que fazem as mulheres vatonga vibrarem nozore[17].Leiam a obra. Chaúque angulova[18].Chaúque, ele mesmo, tem uma grande experiência como Ndekeni, tal como alguns de nós aqui presentes e muitos aqui ausentes. Montado no dorso de um leão e abraçado à sua farta juba, Chaúque também já se fez transportar de Satare[19] ao encontro da luz em Maputo e em Tete. Foi militar das FPLM e trabalhou na revista Tempo. Regressou à terra-mãe para vir trabalhar no Tribunal e depois na RM. 
    A sura[20] diária, extraída pelo anónimo kêmi[21], deu-lhe muitas e irresistíveis alegrias. E começou a cantar blues, em Gitonga, nesse tempo. Mas sonhou de novo com a luz e partiu. Foi trabalhar no Savana, na AEMO, no Notícias, no Calowera, no Público, n´A Verdade. Queria trabalhar e voltar, um dia, para a sua terra natal como um grande senhor, arrebatar tudo e casar-se com uma mulher da terra – esse sonho de Ndekeni, entretanto agora já concretizado por Chaúque. Passa quase um ano que Inhambane-Sewi[22] recebeu, de regresso, o seu Alexandre Chaúque, que havia empreendido aquela aventura ao estilo Ndekeniano, para, longe daqui, escrever este livro (e outras crónicas) e receber o Prémio 10 de Novembro das mãos do David Simango, da cidade grande, em Kampfumo (“Pfhumweni” – como nós, gitongamente, dizíamos, antes de ser Maputo). Chaúque ganhou e continuará a ganhar, mas para gaya regressou.E sempre que telemovelmente falávamos, nos dias iniciais, e para me criar inveja e vontade de cá também regressar, dizia-me, com aquele seu orgulho Tonga, “nyaguhodza mathapa, ndriyango, nya guphudwe ku maiwango. Mathapa nya guphudwe nyi dzitogoma, nyi mavbandzi nyagubange, nyi dzindrolo nya gunone. Nyagumahodza nyi marosa, nyi farinya, nyi mihile nyagugadzingwe gambe” (eu como matapa, meu irmão, feita por minha mãe. Matapa com caracóis marinhos, camarão seco e caranguejo do melhor, acompanhado de arroz, regado de tapioca, e com pescadinha frita, de lado).
    Regressou e encontrou já a sua pfhumugadzi[23], sinyarane[24] Camila. Escolheu viver, com ela, agora em Nyaposa. Confesso que não sou murembedzi[25]. 
    Ele confidenciou-me isso, naquele final do dia, em que a Camila estava atarefada com os últimos arranjos do casamento da filha, enquanto nós partilhavamos a preta numa barraca de Nyaposa. E, naquele crepúsculo vespertino, vi o amanhã do Chaúque cantado na saga dos Vanyapose, donos da terra que agora o acolhe e nela vive. Não se escandalizem – sexo entre os Vatonga não era tabu antes da influência islâmica trazida pelos Vamwinye e cristã trazida pelos Vatsungo[26]. Era assunto cuidado, com toda a dignidade, à luz do dia. Por isso os Vanyapose evocam os espíritos dos seus antepassados rezando o seguinte: “nyapose pandre tshigira nongo, gimbolowana gidugwana gu pandra rengo[27]”.
    Os espíritos dos Vanyapose seguramente vão dar maior fertilidade à escrita literária do Chaúque. Ademais, no recanto da suaphfumugadzi, comendo macoloma[28] e bebendo da sua água, hoje, Chaúque encontra o sossego necessário para ouvir as vozes dos fundos da baía de Inhambane – aquelas vozes que ensinaram medicina à Raci Makwandra e que, a ele, vão inspirar para escrever mais livros.
    Quanta inveja tenho eu, por isso, por não ser escritor e nem conseguir regressar à terra aonde está enterrado o meu cordão umbilical – esta terra que abandonei, tinha eu 16 anos, quando conclui o 5˚ ano comercial, na mesma Escola aonde estudou a avó do Ndekeni. Ainda não ganhei o suficiente, e nem prémio algum, para regressar, como ele, de cabeça erguida e não como um fracassado. Munganyhega[29]. Eis o meu dilema, que é, afinal, o dilema existencial de todos os Ndekenis. E o livro que Chaúque hoje nos oferece trata exactamente de nós, os Ndekenis – que aventuramos abandonar as nossas terras maternais à procura de melhores vidas em outras paragens, por vezes, madrastas. E sempre com a ilusão de que acumularemos riqueza para, um dia, regressarmos e, com outro estatuto social, casarmos com uma gyagadzyana gya gaya[30].
    Para ti, Chaúque, ndriyango[31], digo-te mais uma vez, como disse-te pelo teu Bitonga Blues: ungulova[32]. E mais:ungudandra [33], pois com Ndekeni inicias um novo percurso literário, mais ousado e, nyaposenemente[34], mais fecundo: unapandra rengo[35].
    Nyiganedhe[36].


    GLOSSÁRIO
    [1] - Povoado de Inhambane situado a 12km a sul do centro desta cidade.
    [2] - Em Gitonga - língua falada pelos Vatonga (sg: Tonga) do recôncavo da baía de Inhambane. Palavra corrompida pelos portugueses para Bitonga (e com direito a presença no dicionário electrónico português) e, passando a significar tanto a língua quanto os seus falantes. [Todas as palavras em Gitonga, empregues neste texto, foram escritas conforme a padronização das línguas bantu adoptada em Moçambique e seguiram de perto Laisse, S. (coord) (2007) Dicionário de Português-Gitonga/Gitonga-Português e Compêndio Gramatical, Oeiras, Edição Câmara Municipal de Oeiras]
    [3] - Nunu (pl: Vanunu) - Palavra de origem árabe ou swahili significando senhora e usada, entre os Vatonga, para designar as mulheres muçulmanas, independentemente da sua raça. O masculino é Mwinye (pl: Vamwinye). Os portugueses corromperam pejorativamente a expressão mwinye para monhé e com ela passaram a designar pessoas de origem asiática, geralmente comerciantes, e independentemente de serem muçulmanas ou não.
    [4] - Minha mãe (falecida em 1991)
    [5] - Mãe de Alexandre Chaúque
    [6] - Mufo – amigo. Mufo wangu – meu amigo.
    [7] - Pari (pl: dzipari) – expressão do Gitonga, derivada do português par, significando amigo. Pari yangu - meu amigo.
    [8] - Gaya – casa, no sentido de terra-mãe. Avba – aqui.
    [9] - A minha ligação com o Chaúque remonta ao dia 10 de Setembro de 1965, na Sala-10, da Escola Primária Carvalho de Araújo, em Inhambane, aonde juntos iniciamos a Pré. (Feliz coincidência: hoje é também dia 10).
    [10] - Chapa – designação popular (cunhada em Maputo e depois nacionalizada) dos pequenos transportes colectivos de passageiros, inicialmente de caixa aberta (e agora também), e eufemisticamente chamados pela oficialidade licenciadora desemi-colectivos.
    [11] - Junta - importante terminal de transportes de passageiros, em Maputo.
    [12] GPS - sistema de orientação por satélite que fornece a um aparelho receptor móvel as coordenadas do mesmo.
    [13] - Destinos não orientados nem por uma bússola, nem por um GPS.
    [14] - Minha tia, recentemente falecida.
    [15] - Bairros e povoados de Inhambane
    [16] - Ngoma – batuque, música (pl: dzingoma – batuques, batucadas, músicas)
    [17] - Dança típica de Inhambane.
    [18] - Escreve (V.Inf: gulova)
    [19] - Corruptela de Santarém, bairro da cidade de Inhambane, rebaptizado Liberdade, depois da independência nacional.
    [20] - Líquido divino extraído do coqueiro. Quando doce, a sura é usada como fermento e faz uns bolos deliciosos.
    Fermentada dá muita alegria a quem a bebe. Ultrapassado o nível de fermentação, transforma-se num vinagre gostoso.
    [21] - Kêmi – esse homem, geralmente de estatura baixa e pernas arqueadas, trepador de coqueiros, imprescindível para que a divina bebida chegue aos apreciadores, mas ignorado por estes. Ele extrai a sura sob um contrato que estabelece que, numa semana ele entrega o líquido ao dono dos coqueiros, e na outra é para si (ou: dia sim-dia não).
    [22] - Sewi - cidade (de Inhambane). Embora pura como o céu seja a nossa cidade (daí: “Terra da Boa Gente”) ela não é, como os chapas da Junta nos enganam, Inhambane “Céu”, mas sim, Sewi.
    [23] - Pfhumugadzi – expressão de ouro, em Gitonga, para designar esposa. Pois, entre os Vatonga, esposa é rainha da casa. Pfhumugadzi é isso. Não é súbdita do marido como os europeus nos ensinaram a tratar a nossa mulher, para, sem vergonha, depois virem ensinar-nos as relações de género.
    [24] -Sinyarane – do Sinyare, corruptela de senhora (sinyarane significa senhorita). Originalmente, tratamento dado a “brancas” (portuguesas).
    [25] - Murembedzi – alcoviteiro ou pessoa que se dedica a arranjar e/ou acompanhar a(o) noiva(o) para alguém.
    [26] -Tsungo (pl: Vatsungo) – expressão originariamente usada para designar branco (português). Depois também para qualificar pessoas com posses (ou com aparência disso).
    [27] - Laisse, S (2007:141). O significado da reza é, mais ou menos, o seguinte: os Vanyapose são de uma fertilidade incrível. Mesmo aqueles que têm pénis pequenito geram multidões (fazem muitos filhos). Por serem tantos, um Nyaposa tem que “andar com cuidado” para não pisar/destruir família
    [28] - Licoloma (pl: macoloma) – lanho (coco ainda tenrinho). É também o título da coluna que semanalmente Chaúque assina n´A Verdade.
    [29] - Guhega (v.inf) – rir, zombar, fazer pouco. Munganyhega – se não vão fazer pouco de mim.
    [30] - Moça da terra.
    [31] - Meu irmão.
    [32] - Veja o texto “O livro Bitonga Blues de Alexandre Chaúque”, in Notícias: 16.11.2011 (página cultural)
    [33] - Estás a crescer (v.inf: gudandra).
    [34] - Ao estilo da fertilidade dos Vanyapose.
    [35] - Vais parir multidões (de textos literários).
    [36] - Falei/Disse (v.inf: guganela). Isto é: tenho dito.
    * Título da nossa autoria. Texto de apresentação do livro “Ndekeni” a 12 de Agosto nas celebrações do dia da cidade de Inhambane.

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