Silas Correia Leite - Brasil
“Os seres humanos
me assombram”
Markus Zusak
In, A Menina Que Roubava Livros
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Espantalhos: seres reses. A máquina de existir é a máquina de parir seres.
Serão seres? Existem? “Existir a que será que se destina?”, perguntou cantando
Caetano Veloso. O Poeta de Cubatão, Marcelo Ariel, sabe. Deve doer saber. E nos
responde por tabelas ou diretamente nas fuças com horror de ver, viver e
escreviver: anjos afogados. Anjos em fios de alta tensão. A morte-amor. Choro e
ranger de dentros. Jean-Paul Sartre dizia que ninguém é escritor por haver
decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado
modo.
A chocante Poesia de Marcelo Ariel é uma fronteira cercada de destroços por
todos os lados. Vidas-Socós. As duras realidades focadas na névoa-nada. A vida
sobrevivencial lançando chamas na UTI do cáustico olhar plausível. A alma
sangra entre o chão-diesel e os estilhaços poéticos multicortados de pontos de
interrogachão. A cena do crime de existir. Escrever é um modo de estar no
mundo, para repugnar-se contra o próprio mundo, e ainda assim sentenciá-lo ao
assento de horror.
A poesia tirando enterros da alma em pedaços. O revólver quente da criação
destrinchando verbos, versos, ver-se, ter-se, verter. Prismas-caças-e-caçadores.
Poesia dolor. “Como o céu que dança pra si mesmo/Sem a nossa presença/E depois
apaga” (In, Com Miles Davis na Serra, pg.48). Os desterros são íntimos. Os
aterros sociais têm seus chorumes dolorosamente lírico-contestatórios por assim
dizer. Feito um açougue metafísico de almas letrais.
Marcelo Ariel voa com remos. As desnaturezas do ranço humano/urbano/insano.
A maldição daquele que respiga as sobras, restos de nadas: sub-seres. E ainda
achando poemas aí. Meio Jean Genet Pretobrazyl, um pleno pliniomarcos mestiço
nas trincheiras do caos que retrata em fotogramas de amarguras, pintando com
lucidez palavral os seus achados e perdidos. Não é fácil. Nunca foi.
Um Goya-rimbaud. Os sem cérebro produzem monstros. Como ainda tirar poemas
do inferno?. O lusco-fusco não sabe de lágrimas de muito além de Dante. O
inferno são os seres. O céu rebrilhante de Cubatão é poluição pesada. A poesia
toxina esplende um historial da morte poeticamente homeopática dos que foram
soterrados. Em meio ao monturo Marcelo Ariel vaza poemas-lágrimas, poemas
duros, tristes, contundentes, assustadoras lascas de seu meio. Filósofo e
metafísico. Que ciência há em não pensar sobre? Entre carcaças de todos os
tipos e naipes, os poemas-letra-de-rock pesado em valas perdidas. Chorumes-rajadas.
Metralhando palavras que se encorpam em peso-visão, brutezas pegajentas. Falou
o diabo e aparece o anti-clímax. A vida só é possível reinventada, disse
Cecilia Meireles.
Poemas sentidos. Há sangue pra tudo. Serão só poemas? Testemunhos-depojos.
Não, são também luzes negras sobre macadames de lixões. “A morte não dorme/A
alma não pensa/A vida não vive” (In, Veredito, pg 93). Marcelo Ariel é isso:
esquisito porque puramente real por mais que isso nos doa. O asco é mais
embaixo. Só os imbecis são felizes. Não há sensações no esquecimento. Ai de ti
Cubatão-Brazyl! Ensaios de amargedons localizados, datados. Estúdios a céu
aberto entre viadutos, chaminés, mangues e resíduos fichados. Entre ratos,
abutres, quasehumanos. A sifilização-réstia. O olhar transido é ainda
recolhedor sistêmico. Ponches de restos. Sangria desatando subvidas. Os
excluídos sociais, os carentes, os sacrificados, as amarguras de. Tudo do
mesmo. Paradoxos inexatos que sucumbem entre mesmices impunes. O teatro de
absurdos da vida real no seu pior estertor. “Na noite/Se convertendo em
transparência sem tempo” (In, Espelho, pg.137). Marcelo Ariel não é fácil
também. Somos literalmente atravessados por seus versos de arames em tintas
entrecortadas dele mesmo no seu estilo todo próprio de repaginar o que
vê/sente/comporta/assoma/redime... liquidifica. Assustador.
Marcelo Ariel é um soco de luz no LER. Ler o livro de Poemas “Tratado de
Anjos Afogados” é um sopro na acomodação saturada. Poesia puro sangue. Os
perdidos nas estrofes sujas da mais descarnada vida são literalmente
revivificados. Escrevendo ele tira fantasmas da névoa e diz da dor de havê-los.
Dói sentir a dor dos outros. Não há como sarar o mundo; já não é possível curar
o mundo. Parafraseando Baudelaire, sob o crânio da raça hum ana o horror não
faz milagres. Os miseráveis precisam de poetas para retratá-los, serem assim
disformes registrados em suas condições de subvida, como seres ocasionalmente
sobrevivenciais que acabam sendo, entre os chorumes dos condomínios fechados e os
tantos insensíveis podres poderes. As cinzas das desonras.
Falando sério, cara pálida, é muito difícil resenhar um livro como o
Tratado dos Anjos Afogados de Marcelo Ariel. Você procura palavras exatas e não
acha, não cabem, querem refugar o sentir, o pensar, o se achar num igual. Não
há metáforas que caibam como identificações em poemas de tal grandeza cívica
até. Nem são almas penduradas nos varais para secarem os ossos, mesmo que
pareçam. Com tanta “informação” (poesia tensão) você fica irado com a carga
poética que recebe, apreende, engole a seco; feito um ocasional renunciante à
vida. Vida? Como não fazer parte daquilo e se aceitar humano? Que vida? O que é
isso? Seres? Que seres? Chorumes.
Poemas como incompreendidas nênias entoando impressões digitais de mortos.
A carne-vida nos poemas insepultos. Dentro das covas clandestinas desses céus e
infernos não há GPS. Que cadáver-vitrine é a raça hum ana , a civilização por
si mesma? Marcelo Ariel arranca poemas de feridas. Leia-o. Isso é que é
Poesia. Venha para o mundo de Marcelo Ariel. Mas se apronte que vai doer
um bocado. No entanto, você também precisa se enxergar no charco, ver a própria
lama social entre cacos de espelhos.
Subterrâneos de confins. Marcelo Ariel escreve poemas como quem recupera,
com sua placa mãe de captura em alta sensibilidade, os suspiros dos
sentenciados a sobreviver; como ainda um pior castigo-condenação do que ter que
existir.
Existir?
1 comentários:
Disco de Spoken Word de Marcelo Ariel, com alguns poemas do Tratado dos Anjos afogados:
Scherzo Rajada: Contra o Nazismo Psíquico
http://www.mediafire.com/?w3egkv7zgx8kqvw
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