Eduardo Quive - Moçambique
Terá sido no dia 12 de
Julho, data em que meu pai completava 30 dias de pós-vivo, que faleceu a vovó
Alfina, vovó Fina como carinhosamente era tratada nos caminhos errantes da vida.
Agora baba e vaga noutras terras, onde se quer o mundo a pode ver. Tal mundo
não é onde me encontro, porque eu, a vejo como quero e quando quero, eu não sou
daqui. Vejo vovó Fina, vovó Olinda, Garande, Eva, Pire, Sitoi, Muholovi, Maússe
entre outros defuntos da minha rua mortífera.
Vejo-os na matina e ao anoitecer, de dia,
devaneamos entre vivos fingidos de poeiras e outros ventos que os mundanos
precisam para viver. Nós morremos para dar vida aos vivos, assim como os vivos
assim o são para dar vida a nós mortos. Tudo hipocrisias e tolices de um
soberano que se inventa de invisível. Mas esse também o conheço. Sofre com os
sons de José Guimarães, Alexandre Langa, o Kid Munhamane, Tony Django,
Matchionguezi no delírio da escrita de Sebastião Alba, Heliodoro Batista e Amin
Nordine, todos artistas que também me fazem sofrer. Ah! Quem sou eu sem esses
moribundos?
E consumada que ficou a morte da vovó Fina
naquela quin-ta-feira friorenta de Julho, outros ventos sopram entre os vivos e
porque o seu enterro foi de dia, escapuli-me da tumba para celebrar entre
chorudos a sua ascensão. Comoção a mistura de raiva pela desorganização da
nature-za norteou o meu espírito fugitivo. Mas de tudo, a nostalgia foi maior.
Lembrei-me do pão partilhado entre nós, seus
netos por afecto e seus netos de sangue, sem nenhum separatismo. Pão e sala-da
de alface que ela cultivava na machamba do ka Rosa, caiam-nos bem, a sabor de
óleo de peixe sobrado da refeição de ontem, sentados bem embaixo da mafureira
ou da árvore das sabo-rosas tangerinas que nos roubava as noites enquanto
roubava-mos em silêncio.
Vovó Sambo, como também a tratávamos, de
capulana garrida e lenço na cabe-ça que escondia o cabelo branco, de costas
inclinadas pela velhice, se quer dei-xava derrubar pela falta que o tempo nos
dava do sagrado alimento. Parava do muro e nos chamava lá de casa em surdina
(para que a minha mão não ouvisse e nos proibisse) para que fossemos ao
raríssimo almoço que saia das suas mãos de camponesa.
Felizes, nós, os netos de fora e os de casa,
Marcinha, Dinoca, Clarinha, senta-dos ao seu redor, nos deliciávamos. Saciar
não era a meta, o que valia mesmo, era enganar o estômago como mandam as normas
da nossa pobreza. Todas crianças da rua brincavam naquele quintal onde amizades
moldavam-se de dia e de noite, sem temermos as horas.
Tudo isso me vinha naquele dia 14, tarde de
funeral triste, em que um ciclo se fechava na vida daquela que era avó minha e
de outras crianças da minha rua, sem saber distinguir a ligação sanguínea.
Que lágrimas chorariam tão nobre idosa que de
facto precisava cessar as suas funções neste mundo em que apesar do bem maior,
há sempre espaço para invejas e desamores?
Enquanto hinos se entoavam para tornar
sagrado o momento, não me cabia lágrimas daquele fim, apenas estas e outras
nostalgias. Das quantas vezes ale-gres, em que de noite gritávamos canções
infantis, corríamos atazanados no seu quintal, entravamos lá dentro enquanto
ela dormia, desarrumávamos o quanto podíamos, roubávamos o milho e a mandioca
para as nossas barrigas cheias de vontades insaciáveis.
Lembro-me das orações obrigatórias que eram
uma rotina na hora de tomar qualquer refeição. Agradecer a Deus pelo alimento
que nos dá sem sermos cum-pridores dos seus mandamentos. Orar pela barriga que
vai saciar com dois graus de arroz do sacrifício da velha que não sabe pensar
só em si. Obrigado Deus pelo pão-nosso de cada dia, isso tínhamos que dizer
sempre, vovó Fina fazia questão.
A morte é mesmo uma oportunidade para
ingratos como nós que enquanto vivas as pessoas não as sabemos glorificar como
tanto merecem. É uma oportunidade para os errantes caírem em si, comendo do
próprio remorso, fruto do desleixo da vida que se quer conhecem a sua origem.
Lembrei-me do seu modo de falar dos ma-Dindindi. Vovó Fina que era de Ka
Nhaka, pessoa multicultural e multivivida já falecida, como era possível me
lembrar de tanta coisa?
Vi
lágrimas. Vi gente olhando ao além, sem certeza de que viveriam para ver mais
mortes. Vi dor esmagando gente sem compaixão, tal como vi Deus a matar toda
essa gente, sem se quer lembrar-se dos que ficam na terra. Deus calado e sínico
que levou o pai de Netinho, o tio Pedro, esposo da tia Lalate; Levou a vovó
Lodovina, a mu-Cabuverdiana; Deus que matou a mãe da Yolanda ainda cheia
de vida, matou a tia Laurinda e ainda levou a minha irmã, mana Luizinha, o meu
irmão, mano Orlando, o meu chará e o meu pai. Deus bandido.
Agora O vejo atento à minha mãe já viúva.
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