Por Maria João Cantinho -
Portugal
Há muito que José Luís Tavares, nascido
em Santiago de Cabo Verde a 10 de Junho de 1967, residente em Portugal, onde
estudou literatura e filosofia, escreve poesia. Dizer que começou a publicar
tarde, aos 36 anos, é advertir o leitor para o processo de auto consciência que
este autor realiza, face à sua escrita, depurada e rigorosa. José Luís Tavares,
com o seu único livro publicado, «Paraíso Apagado por um Trovão», conquistou o
prestigiado Prémio Mário António da Fundação Calouste Gulbenkian, juntamente
com a poeta angolana Ana Tavares.
Exigente para consigo próprio, José Luís Tavares possui uma voz peculiar e uma
imagética intensa, que revelam uma sábia incorporação da tradição e uma mestria
singular no modo como opera sobre a linguagem poética.
Maria João Cantinho – Começas o teu livro por um belo poema, “Limiar”, em que dizes assim:
“Descer – ao chão antigo,/ agreste, familiar; às ombreiras/sem brasão onde nem
trompas/matinais nem plenipotenciária/voz de mando//Regressar – à vida rude,
elementar(…)”. Que limiar é este, de que aqui se fala? Regresso ou
recomeço?
José Luis Tavares – Tomemos limiar
na acepção de ponto que marca a transição de um espaço, topológico ou
simbólico, para outro. No caso vertente, sem cair na tentação
auto-hermenêutica, diria que é uma espécie de para-texto que foi colocado para
indicar uma deslocação de motivo, dado que no ordenamento dos livros inéditos
«Paraíso...» vinha em segundo lugar. O primeiro, «Agreste Matéria Mundo», que
vai sair no próximo semestre na Ed. Campo das Letras, na sua parte mais
extensa, intitulada «a deserção das musas», é uma longa meditação sobre a
condição do poeta e da poesia em pleno século vinte e um. Por outro lado,
intentava ser uma forte restrição hermenêutica, dado que o motivo do livro,
sendo o autor de onde é, podia prestar-se às costumeiras sandices que os
especialistas da coisa debitam sempre que uma obra parece encaixar-se nos seus
esquemas apriorísticos, sem cuidar da novidade que é o trabalho da invenção
linguística.
M.J.C. – Porquê o título "Paraíso
apagado por um trovão"? Recusa da nostalgia, ruptura e choque como método
poético? Se por um lado, o título me faz pensar isso, existem versos – que me
levam no sentido inverso - como: Entrega-nos o sono, a essa luz/tão de outrora,
os ressurrectos/nomes dos mortos.
J.L.T. – O poemático é sempre a
manifestação duma instabilidade. Daí que o mais importante não é rastrear-lhe
as significações, mas apreendê-lo enquanto aquilo que é. Poeta não é aquele que
está fora do mundo, mas o que demanda as fronteiras e os limites, atento aos
vagidos da origem e aos estertores do aniquilamento.
A ruptura, nunca, neste livro, está anunciado enquanto projecto, mas quem
escava poços de sangue, revisita séculos de ignomínia e escassez, tem de
encontrar um modo apropriado de o fazer , nos dois movimentos tencionais do
poema – o prospectivo e o arqueológico - sob pena de soçobrar sob os escombros
que tal fito acarreta.
M.J.C. - António Cabrita salientou o teu
livro como um “dos melhores primeiros livros de poesia” que ele havia visto em
anos. À luz desta afirmação, parece-me que há um laborioso trabalho oficinal e
uma maturidade que não é vulgar, nos poetas jovens. Como foi esse processo de
crescimento entre o início da tua escrita e a publicação deste livro? Isto é,
quanto tempo amadureceste este livro?
J.L.T. –. Primeiro: não se é jovem
poeta quando se publica aos 36 anos, com quase vinte anos de escrita
sistemática por trás. Não creio que se tenha chamado jovem poeta ao António
Osório quando em 1978 publicou o seu primeiro livro. Nem ao Manuel Gusmão
quando em 1990 se estreou em livro. Quando muito, serei um novo poeta, e assim
me considero, pelo menos no âmbito da literatura cabo-verdiana.
Segundo: este livro tem uma história curiosa – em determinado momento, aí por
meados dos anos noventa, relendo os meus poemas, com o fito de organizar uma colectânea,
noto que há um motivo que atravessa alguns daqueles poemas. É a partir desse
momento que a ideia deste livro se me impõe claramente, vindo a concretizar-se
num conjunto de quarenta poemas em prosa, que viria a destruir por
considerá-los completamente falhados. Passado algum tempo, vou visitar uma
exposição da Graça Morais e vejo umas fotografias sobre cabo verde da Inês
Gonçalves, publicadas no suplemento de um jornal lisboeta. Estes dois
acontecimentos viriam a constituir o impulso detonador da retoma do projecto,
vindo a saldar-se num conjunto de cerca de duzentos poemas que depois de
retalhados, peneirados, montados – literalmente montados, com o uso da cola e
da tesoura, dado que só a partir do verão de 2003 passei a utilizar o
computador – culminariam no livro que o leitor tem entre mãos.
M.J.C - Suspeito aqui de muita leitura,
muitas dívidas por pagar. Concordas?
J.L.T.- Nenhum poeta vem ou faz-se
do nada. Desconfiai sempre do poeta que diz que não lê para não ser
influenciado por aquilo que lê. Não é, manifestamente, o meu caso – eu pratico
uma espécie de canibalismo poético, em que tudo aquilo que leio é digerido e
transformado em carne (linguagem) própria. Um autor só o é quando possui uma
individualidade própria e um timbre inequivocamente seu. No meu caso, se ainda
não o encontrei, estou próximo disso, tanto que não temo que os envios, glosas,
citações, pastiches, sejam reconhecidos.
Se dívidas há – de certeza que as há – é no sentido de a leitura de todos os
poetas me ter ajudado a ser o poeta que sou. E ser o poeta que sou é a minha
maneira de saldar essas dívidas.
M.J.C.- Mas esse processo de
incorporação é lento, moroso. Foi fácil para ti encontrares essa
individualidade?
J.L.T.- Claro que não é fácil
encontrar a individualidade poética, nem estou certo de tê-la encontrado já,
porquanto, avesso a dogmas teóricos ou poéticos, o que me caracteriza enquanto
poeta é uma permanente disponibilidade para a mudança, mantendo, no entanto, aqueles
traços mínimos que permitem identificar um rosto.
M.J.C.- Que poetas se atravessaram mais
no teu caminho?
J.L.T.- Para a formação de um poeta
concorrem vários álveos, nem sempre fáceis de identificar. No entanto, posso
dizer que os meus processos de escrita devem muito à leitura dos textos
teóricos e poéticos do Ezra Pound, mesmo quando deles divirjo; Rilke é uma
referência importantíssima; mas o meu universo tem mais a ver com Nemésio,
Seamus Heaney ou João Cabral de Melo Neto.
M.J.C.- Acaso se poderia encontrar na
tua poesia a presença de um Herberto Helder? A força imagética de alguns poemas
sugere essa leitura.
J.L.T.- O rastrear de possíveis
genealogias é um escrutínio a que está sujeito todo o poeta que publique o seu
primeiro livro. Herberto é, porém, para mim, uma referência e não uma
influência. A sua poesia é um dos lugares cimeiros de reinvenção desta língua
que é minha, apesar dos tempos de dieta metafórica que se vivem em Portugal; o
seu «Photomaton&Vox» é o mais notável livro de teoria literária que já se
publicou em Portugal. A minha pulsão estilística, para meu desconsolo, corre
por leitos bem menos magmáticos.
M.J.C.- Sei que conheces muito bem a
poesia portuguesa. Qual é tua opinião acerca da chamada «nova poesia
portuguesa»?
J.L.T.- Penso que a mais recente
vaga de poetas veio quebrar alguns impasses que persistiam na poesia
portuguesa. Nalgum deles avulta, aliás, um conseguimento prosódico e formal
notável. Não devem é fechar-se num círculo em que o único critério é o de um
gosto comum – não esqueçamos que alguns deste poetas são também críticos de
poesia – por um universo urbano em derrocada, onde crescem as mais niilistas
pulsões. O gosto é apenas uma via de acesso, não critério de juízo. O juízo é
de natureza estética, é esta que permite a universalidade do juízo. (Convém não
confundir questões de estética com questões de poética). Mas a necessária
universalidade do juízo não pode ser dada a partir de uma categoria vazia. Com
isso se autorizaria o crítico a julgar a obra a partir de um critério externo e
pré-suposto. A verdadeira avaliação da obra é a consideração dinâmica que dela
se faz, isto é, o confronto da obra tal como ela é com a obra tal como ela
própria queria ser.
M.J.C.- Encontras algum diálogo na
poesia cabo-verdiana com os poetas portugueses?
J.L.T. – Nalguns poetas
cabo-verdianos – e não são muitos – há rastos de leituras seminais de poetas
portugueses como Pessoa ou Jorge de Sena. Isso, porém, não é o mais importante.
O que importa é a boa poesia que ali se produz em português, e não só.
É o caso do poeta João Vário que vem produzindo essa obra monumental a que deu
o título de «Exemplos», ( indo já em doze volumes) à semelhança da «Poesia
Vertical» do argentino Roberto Juarroz. O que me surpreende é a quase nula
atenção que Portugal (e Cabo Verde) têm dedicado a esse notável criador. Espero
que a atribuição próxima do prémio Camões venha pôr cobro, ainda que
tardiamente, a tamanha distracção.
M.J.C. – Acreditas na inspiração? Ou
suspeitas dela?
J.L.T. – Eu não sei o que é a inspiração. Se for um estado de luminosidade
interior tal que nos tornamos apenas instrumento do ditado, não; mas se ela é
tomada no sentido de estar obsediado pela coisa, à qual temos que dar
expressão, aí sim, talvez a aceite.
Sei, porém, que mesmo a mais consciente deliberação pode ter na base um obrar
subterrâneo completamente imperceptível, dando razão àquele dito de Espinosa de
que ninguém sabe o que pode um corpo. No meu caso, a inspiração é procurada no
trabalho metódico e continuado, avesso de qualquer bênção divina, da qual
descreio.
M.J.C. - Este livro foi reconhecido pelo
prémio Mário António da Fundação Calouste Gulbenkian. Que significado tem esse
reconhecimento para ti?
J.L.T. – Um prémio não transforma
uma obra apenas estimável numa obra de mérito. Eu sempre achei que tinha
hipóteses, sem, no entanto, dar nada como adquirido porque, para além da
subjectividade própria dos elementos do júri, este prémio tem uma vertente
institucional e de consagração bastante acentuada. Tanto estava convicto dos
méritos deste livro que, não tendo encontrado editor para ele em Portugal,
avancei para uma edição de autor, vindo a ter uma recepção crítica e de público
que nunca imaginei, nem mesmo nos meus sonhos mais coloridos.
Há ainda o lado material, que me vai permitir uma maior disponibilidade para os
muitos projectos que tenho entre mãos e, provavelmente, tornar mais fácil
encontrar editor para os próximos livros.
M.J.C. – E que futuros projectos são
esses?
J.L.T. – Dois livros de sonetos, sendo
que um deles é a revisitação do universo de Paraíso apagado por um trovão, um
livro de ficção e um libreto.
M.J.C. - Faz sentido escrever livro de
sonetos, actualmente?
J.L.T. – Tal questão pressupõe a
distinção entre forma e formado, que em poesia não existe.
Eu não quero dominar uma fórmula e repeti-la ad nauseam. Depois de três livros
escritos queria fazer alguma coisa que me colocasse dificuldades novas. Nesse
sentido, o soneto pareceu a opção adequada. No entanto, bem vistas as coisas,
esses poemas não são verdadeiros sonetos, mas contrafacções desta forma
clássica (nos momentos mais auto-reflexivos, avulta um irrefreável desígnio
paródico), na medida em que não me guio por um grande rigor métrico, mas
sobretudo pela intuição prosódica. Se formos ver, esses aspectos formais, como
as assonâncias, as rimas internas, as cesuras, os enjambements, ainda que de
forma não sistemática, estão muito presentes na minha poesia.
Perguntar se faz sentido escrever sonetos hoje em dia, é como perguntar se faz
sentido pintar paisagens, figuras humanas ou naturezas-mortas depois do
abstracionismo. Ninguém pode ser um inovador se não tiver o mais alargado
domínio da tradição.
M.J.C. – Como se dão o poeta e o
ficcionista? Não são universos diferentes? A respiração entrecortada do poeta
não se atrapalha na ficção?
J.L.T. – Espero que não se
atrapalhem.
M.J.C. - Sei que vives há quinze anos em
Portugal. Podes afirmar que és um poeta cabo-verdiano? Ou pode falar-se de um
hibridismo, na tua obra?
J.L.T. – Sou poeta e sou
cabo-verdiano. O ser cabo-verdiano está subsumido na condição de poeta.
Clandestino na ditadura do mundo, como o definiu Herberto Helder, o poeta nunca
é de um só lugar, de uma só língua, de uma só tradição. Híbrida e viajante é a
sua condição, e, no meu caso pessoal, ainda mais, em decorrência do ethos, das
peculiaridades históricas e do longo afastamento do solo pátrio.
M.J.C. - Por isso a melancolia do teu
livro? Nostalgia como matriz fundamental?
J.L.T. – Eu não coloco as coisas em
dois planos: um, da anterioridade vivida, outro, da posteridade rememorada
através da escrita. É evidente que há imagens, sons, cheiros, cores pregnantes,
mas se a memória é o lugar onde as coisas acontecem pela segunda vez, na arte é
o lugar onde acontecem pela primeira vez. Não é o plano do vivido, da Erlebnis,
mas o plano da linguagem e da invenção que importa. Doutro modo, estaríamos a
colocar a criação poética na dependência de um modelo de que ela seria apenas
um eco contrafeito.
M.J.C. – O poeta é, portanto, um taumaturgo, aquele que cria pela palavra?
J.L.T. – Estás a dizer que escrever
um poema é análogo ao fiat lux divino? Em todo o caso, eu tento situar-me, pelo
menos teoricamente, no plano da pura imanência, de modo a que a experiência da
forma e do sentido surja liberta da influência do teofânico.
M.J.C. –Do que falas quando referes o
ethos do poeta? Que função é a da poesia? Advertência? Insubmissão?
J.L.T. – A arte, dado que ela é
poesia na sua essência poetante, é a única figuração possível da existência, na
medida em que o vivido comporta uma opacidade que só a distância artística pode
iluminar. Daí o seu carácter paradoxal: a arte tem de se afastar da vida para
poder ser a sua expressão mais autêntica, ao mesmo tempo que mergulha nela
constituindo-a como seu substrato. No entanto, em tempos de indigência, a
missão do poeta é poetar sobre a vocação poética e sobre a essência da poesia.
Ele é quem faz as perguntas fundamentais, e é o único dentre os mortais que
pode descer aos abismos onde repousam os deuses foragidos.
M.J.C- Mas haverá ainda um lugar para o
poeta na polis?
J.L.T- O poeta é um sismógrafo que
detecta, regista as mínimas oscilações; vê aquilo que ninguém mais pode ver,
não que seja um iluminado em sentido órfico, mas porque há nele uma clarividência
amarga e triste, e uma secreta intimidade com as coisas e os seres.
Platão, que não era parvo nenhum, compreendeu bem a natureza da poesia – por
isso a exilou da sua cidade ideal. Nessa condenação há um aspecto decisivo que
não tem sido convenientemente explorado – o de que a soberania só reina sobre o
que é capaz de interiorizar. Ainda hoje, cada ataque, cada mau juízo, apenas
repetem os ecos dessa condenação primeira. Mas quer pensemos em termos de
fundamento (Heidegger), quer em termos de afundamento( Deleuze); quer de um
ponto de vista axiológico, quer de um ponto de vista ontológico, a poesia está
sempre primeiro, porque sendo doação, fundação e excesso, comporta em si o
carácter não mediatizado a que chamamos o princípio.
M.J.C. – Aqui toca-se um aspecto caro à
relação arte/vida. Concordas com a necessidade de um afastamento entre arte e
vida? Isso não acarreta um desdobramento ou o contrário é que pode trazê-lo?
J.L.T. – No acto da criação, tem que
dar-se a dissolução do sujeito empírico ou trivial, para que haja uma
intensificação de forças – que o transforma em sujeitos fictícios –
transportando-o para além do plano da existência comum. Há sempre um devir
múltiplo no acto da criação estética.
M.J.C. – O poema deve, então, ser entendido
como instância dramática?
J.L.T. - Desde os antigos gregos,
pelo menos, que sabemos que toda a poesia é dramática. Assim a entendeu Goethe,
e também o modernismo, para quem o sujeito elocutório do poema é uma máscara
(persona), uma personalidade assumida pelo poeta para através dela veicular uma
identidade que, na sua distanciação, expressa ideias cuja existência se
objectiva no plano do poema, sem uma correspondência necessária com qualquer
extravasamento da subjectividade pessoal do autor.
A literatura, como intuiu Deleuze, só começa quando nasce em nós uma terceira
pessoa que nos despoja do poder de dizer eu.
M.J.C. – Portanto, já não é o poeta que
fala, mas um eu cindido.
J.L.T. – Exactamente. Em Hegel, por
exemplo, a auto-consciência era a verdade da certeza de si mesmo. Hoje apenas
significa a reflexão do eu como perplexidade, como percepção da impotência –
saber que nada se é. É desta impossibilidade de dizer eu (o eu da escrita é
imanente à obra; constitui-se pelo acto da sua linguagem), deste estilhaçamento
do sujeito que nasce a arte.
M.J.C. – As imagens poéticas que
utilizas são muito intensas, como que procurando um correlato pictórico
visceral. Outro aspecto é o modo como tangencias um certo surrealismo poético.
Concordas?
J.L.T – Eu não lhe chamaria
surrealismo – aliás, a minha técnica poética é exactamente o contrário daquilo
que convencionalmente se designa por esse nome – porque essas etiquetas são
sempre perigosas. Posso dizer, no entanto, que há um processo de saturação, uma
espécie de exasperação verbal que rompe com a gramática e faz a língua
gaguejar. O professor Alberto de Carvalho, da faculdade de letras de Lisboa,
deu-se conta desse processo mas não conseguiu vislumbrar-lhe o alcance.
M.J.C. – Para além da abundância
imaginativa, há o uso de vocábulos raros, outros já mesmo desaparecidos, que
conferem uma certa elevação aos motivos mais triviais e corriqueiros.
J.L.T. – O ideal de grandeza e de elevação, que na arte é sempre um elemento
ideológico, foi destruído desde que Van gogh pintou uma cadeira e uns simples
girassóis. A partir daí tornou-se manifesto que autenticidade depende tão-pouco
da grandeza suposta ou real do objecto da arte. Foi como que o abandono de uma
estética do tema em favor duma estética da expressão. Este é um dos perigos que
espreita este livro, e para o qual não me canso de chamar a atenção.
O que é decisivo na arte não é a imaginação tout court, nem sequer a imaginação
criadora, a que damos o nome de fantasia, mas a sua configuração. É o domínio
dos meios de expressão (que não é prévio ao expresso) que confere grandeza ou
menoridade ao artista.
M.J.C. – Esta é uma visão claramente
formalista.
J.L.T. – Não, não é. A não ser que
estejas a pensar na forma como estrutura externa que é colocada sobre um material
inerte. Há uma co-determinação entre estes dois aspectos. A matéria da arte só
é enquanto matéria formada, o seu devir-arte; e a forma só é siginificativa
enquanto rosto plangente da obra. E, no entanto, é evidente que sem aquele
elemento de espiritualidade imanente seria puro artesanato.
M.J.C. – Voltemos um pouco atrás, para
terminar: não é inevitável que a língua regresse sempre ao balbuciar de cada
vez que é retomada pelo poeta?
J.L.T. – Cada poeta funda uma língua
particular dentro da língua que é a sua. O acontecimento poético, melhor: o
acto poético, como acto abismal, abala a língua pragmática nos seus fundamentos
despojando-a do poder da conjunção. Daí que a linguagem poética não é a mais
elevada, mas a mais rasteira, por estar perto do princípio e da origem.
Este ponto de vista relaciona-se com dois outros expendidos anteriormente.
Primeiro: a verdade poética é uma verdade instável, sempre ligada ao seu
acontecimento. Segundo: embora assumindo-se como fundamento, nega-se enquanto
tal, devido ao seu carácter abismal.
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