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    Malangatana, o homem que recusou odiar


    João Esteves Pinto


    Malangatana, Aué!

    Sobre a areia mais fina do que o pó, mais vermelha do que o sangue.
    Os passos do alferes caminhavam para o caniço nas noites disponíveis de sábado, mascavavam persistentes para lá do último machimbombo, bem depois da Av. 24 de Julho, do Alto Maé, bem já dentro do Xipamanine.
    Areia fina, cansativa, exigente.
    – O Malanga está?
    Abria a Gelita. – Entra.
    O Mário dorme no abandono da esteira.
     – Malangatana, aué!
    Soba soberano da noite; os pincéis, os óleos, todas as cores revelavam imagens, gestos, composições, interrogavam um mundo como interroga o mar um marinheiro que navega nas primeiras aventuras entre a admiração e as perguntas que se movem no seu íntimo.
    – Lichigani, Jacaré!
    – Lichigani, Mulungo!
    As borboletas dançavam mágicas contra as lâmpadas, exorbitavam de emoções no seu fulgor.
    – Onde está o Oblino?
    Incendiavam-se sobre a tela olhos fixos de leopardos, os dentes, as garras, os gumes, mãos, lábios, ventres.

    A Percina dança!
    A areia rubra, depois do cacimbo, há-de ficar mais viscosa e plástica do que o óleo de holanda.
    O Chissano lutou toda a noite com a madeira, as camarinhas escorreram sobre os olhos fixos e tensos, até que daquele tronco informe se soltou um chicova que voou para espantar os maus presságios da noite, e assim ficou com as pupilas desorbitadas, as asas abertas, grandes, assim ficou, como eu vi, definitivo, já na madrugada.

    A Percina dança e canta!
    – Quem não gosta da Percina? Quem?

    O Paulo Come foi buscar a distância absoluta lá para Benfica, na Estrada de Moçambique, que aponta ao Norte pelo caminho de Marracuene e de Vila Luísa.
    Eh! Paulo! A palavra suave, a longa sabedoria de um cocuana, a palavra com que se urde a amizade que fica para lá dos tempos, a lâmina mais exigente e dúctil que algum dia esculpiu em Moçambique! Paulo Come da tribo dos Mariqueles – aqueles que andam, que vão pelo caminho; disse-mo como quem diz porque é que tinha ido morar para tão longe, empurrado pelos outros, pelos das tribos dominantes; disse-o como quem liberta da madeira as aparas que estão a mais e que são inconvenientes à perfeição. – E ele sabia o que era a perfeição, caramba! Olha esta estátua que obriga à contemplação sem tempo e sem reparo!

    Mercado do Xipamanine! O Manqew sentou-se diante da feiticeira para, também ele, pintar!
    A Percina dança, canta, assobia. – Aué! Éh! Éh! Éh! Éh!
    O Manquew sentou-se agora, ali onde mora, junto do mercado, onde se vendem capulanas, frutas, legumes, carvão, peles de animais, ossos com que se faz feitiço, lugar onde há sempre gente que se move em todas as hipóteses de um destino.
    Veio o tempo das chuvas e das torrentes.O Manquew começou a pintar a feiticeira.

    Veio o tempo das chuvas e das torrentes; já não há areia; só há matope rubro e viscoso, por onde tudo se agarra, escorrega e ensopa.
    Vou para lá da 24 de Julho, do Alto Maé, do Xipamanine.
    – Gelita, o Malanga está?
    O Manguiza já anda, come papaia.
    As mãos, os ventres, os corpos, os olhos fitam-nos e interpelam-nos sobre a tela, impõem-se para lá do silêncio e do chá que tomamos juntos.
    Onde vamos buscar palavras?

    Lindo Lhongo chamou o Norberto Barroca e disse: – Isto é teatro! – Está bem, vamos então ensaiar teatro. Foi no Avenida; congregou todos no “Lobolo” e até tu, Malangatana, arredaste os pincéis e foste dançar no palco quando os tambores do batuque celebraram a festa, narraram emoções e, no imprevisto, carpiram o drama!; e depois, quando tudo parou, o coro dos homens ressoou em vozes densas de baixos, exigindo o silêncio; o coro advertiu a plateia, sagrou-se num som solene que revelou a verdade daquele alfabeto que foi por todos entendido porque se abriu no lugar certo para aquelas vozes e para aqueles ouvidos na plena verdade do instante.
    – E quem não ouviu então as vozes feridas das mulheres nos seus gritos?.

    A Percina, Éh! Éh Éh! A Percina grande, gorda, mamana do som e do ritmo, dilui a capulana no delírio da dança e das palmas, esvaziou as palhotas , já não há ninguém que não participe, até as crianças andam por ali no som ritmado da noite.

    – Moçambique!!
    A Maria e o Pedro nasceram por esse tempo.

    – Lindo Lhongo, e, depois das “Trinta mulheres do Muzeleni”, que outras peças vieram a seguir?

    Malanga, agora são os azuis e a cor quente do caju, a fome e o amor, súmula essencial da humanidade.
    A caligrafia das cores expande-se sem restrições, impõe sobre a tela o seu som, a cor, a forma, o ritmo, o mistério, a alegria.e a dor.

    – Eh!? Vai embora?! Vai embora?!…
    Perguntou três vezes o Oblino antes de me largar a mão com o espanto das coisas impossíveis.
    – Sim, vou.Venho despedir-me.
    – E quando volta? Quando?
    – Não sei dizer. Creio que nunca mais vou voltar.
    – Não pode!
    – Não pode mesmo!
    – Não sei dizer palavras, Oblino.

    Eh! Malanga!
    Olho os teus quadros: estão na minha parede. Os meus filhos sabem de um mundo fantástico de que eles são o documento exigente e impulsivo.
    Milhares de pessoas o saberão com eles.
    Por tudo isto, a exposição que fizeste em Lisboa na SNABA foi necessária porque ela representou – única – na linguagem superior da arte, os laços, o tempo irrepetível de pessoas, de povos, que andaram sobre a gramática da História, de uma história conturbada, mas real porque vivida, sofrendo os dramas, inventando o sonho, fazendo a vida.
      
    II

    E decorreram mais de 30 anos sobre as palavras escritas aquando da tua exposição na SNABA.

    Agora é um estranho tempo de recordações.
    Uns anos depois da exposição, fizeram-te uma homenagem no ISPA; a teu lado, na tribuna, ficou a esposa do arquitecto Pancho Guedes. Os oradores falaram sobre o que o programa anunciara e depois tu, com o teu atropelo de palavras de sempre, sem qualquer atropelo de ideias, evocaste a tua infância e adolescência – afinal quando tudo nasce –, e disseste:
    que o Pancho te contratou para mainato depois de te ver pintar no Núcleo de Arte de Lourenço Marques, mas que também te daria todo o tempo do mundo para que pintasses na sua garagem e que também te daria tempo para brincares com os seus filhos;
    e disseste:
    que vocês faziam tolices como todas as crianças e jovens, e que a esposa do arquitecto Pancho Guedes se zangava como qualquer mãe zelosa quando as crianças se portam mal, e que os filhos dela levavam tareias sempre que as mereciam, e tu tinhas que ouvir ralhetes que eram só para ti, por actos de que foras cúmplice e autor muitas vezes,
    e que a frequência dos ralhos acompanhava a frequência dos vossos desmandos, até que um dia não ouviste apenas ralhos e levaste também umas palmadas.
    E tu, nesse dia – disseste –, tu sentiste que eras exactamente igual àqueles irmãos e que eras ,afinal, já filho daquela família!

    E tu, perante aquela assembleia reunida em cerimónia, tu choraste convulsivamente e a tua voz já não gaguejou mais, porque se calou de emoção comovida.

    Os anos passaram – passam sempre e sem remédio – e eu fui, não há muito (ou há já uma eternidade?) fui ver-te com a minha mulher ao Hospital de Santa Maria e tu estavas aparentemente como de costume, e falámos longamente com silêncios que ficaram incómodos naqueles instantes; recordámos o António Quadros, que tu consideravas o melhor pintor de Moçambique, e que também era Grabato Dias quando se exprimia pelos seus poemas inventivos; e recordámos que ele faltou ao último almoço combinado, recordaste que, de súbito, ele morreu.

    Recordámos o Paulo Come e a sua sabedoria, a sua escultura dúctil de inspiração rara, que, tão jovem, morrera já também. – Ainda estará em tua casa a escultura do curandeiro que me pediste para ele te vender?

    Recordámos o Chissano e a sua personalidade impulsiva, o seu trabalho agreste, afirmativo, sobre a madeira; recordámos a sua estranha e mal explicada morte e também o seu funeral com uma pele de leopardo sobre o seu corpo nu, por determinação sua, tal como um guerreiro ronga.

    Agora desejo que a Percina nos lembre a todos e, se já não puder dançar, nos lembre com os seus cânticos mágicos e os seus braços a avantajarem-se no ar; e espero que o Oblino não deixe de tocar aquela melodia de guitarra e alterne ainda com o som sonoro e rápido dos tambores.
    Porque recordámos então a morte de tantos? – Que estranha e forte presença, a dessas ausências!

    Já não lembrámos nem os teus tempos de prisão nem, depois, os tempos em que foste desterrado para seres "reeducado" em Nampula.
    Não, isso já não lembrámos.

    III

    Mas eu quero testemunhar-te que Portugal se lembrou de ti e que te honrou com actos fúnebres solenes no Mosteiro dos Jerónimos, lá, onde tem os seus maiores – aqueles que são indiscutíveis na grandeza e que souberam execrar o ódio.
    E deixa-me dizer sem palavras, porque elas seriam sempre imperfeitas, deixa-me dizer-te que muitos dos de então hão-de recordar-te como se estivesse noite e ouvissem as músicas rituais, frementes, que se ouvem em lugar incerto no tempo escuro da lua nova.

    Todos eles lembrarão agora a Gelita, que há-de estar desolada e só, ela e os vossos filhos, que, com os olhos dilatados dos teus quadros, hão-de estar a interrogar o silêncio.



    Glossário:

    – Lichigani – boa noite
    – Mainato – criado, empregado doméstrico
    – Lobolo – cerimónia do casamento
    – Mamana – mãe, matriarca
    – Cacimbo – estação da seca
    – Matope – terra molhada e viscosa, lama
    – Machimbombo – autocarro
    – Ronga – tribo do sul de Moçambique
    – Mulungo – branco, europeu
    – Chicova – coruja
    – Cocuana – velho, ancião
    – Capulana – pano de vestuário das mulheres africanas, parecido com o
                            sari indiano

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