Alex Dau – Maputo/Moçambique
O moribundo soergueu sofrivelmente, e procurou balbuciar algo, sem
conseguir, voltou a adormecer seu sono doente.
Parentes atónitos olhavam-no cheios de piedade. Preces intermináveis eram
rogadas silenciosamente. Todos clamavam misericórdia para com o enfermo que se
debatia pela vida.
Os dias sucediam-se e a família partilhava pacientemente a dor de Bucande
que gemia perdidamente no seio leito.
Nhessene, a esposa lacrimejava triste e era amparada pelos dois filhos,
Massembe, o mais velho e Dimbo o mais novo.
Ambos escutavam calados a dor do pai, que já haviam levado a todas
instâncias da medicina convencional ao seu alcance recorreram mesmo a medicina
tradicional sem no entanto alcançar resultados positivos. O enfermo continuava
internado na sua agonia deixando os demais entregues a um desespero
interminável.
Mário Bucande, homem modesto de cinquenta e três anos, abandonara sua terra
natal, Kuala no centro do país para a cidade capital quando tinha dezoito anos.
Desde então nunca mais voltou. Conheceu Nhessene e cheios de paixão casaram-se,
criando assim uma nova família. Deu sustento a mulher e aos filhos com os
proventos oriundos de seu emprego numa fábrica.
A sua degradação do género irreversível iniciou-se com sonhos misteriosos
que vinha tendo com os falecidos pais. Primeiro acontecimento nefasto que
surgiu foi a perda de emprego na fábrica. Dias depois caiu doente, devaneava
morbidamente sentindo o espírito transferir-se do corpo para um espaço
recôndito. Mário já não reconhecia o meio em que se encontrava inserido, por
vezes ficava com os olhos esbugalhados divisando o vazio.
Sua esposa era arrebatada vezes sem conta por uma opressão cruel que a
desesperava, vigiava regularmente o marido esperando ver qualquer reacção no
corpo imóvel deste.
Os filhos firmes em levar avante o tratamento do velhote aplicavam suas
economias com médicos que não sabiam diagnosticar a enfermidade de Bucande. Em
contrapartida, curandeiros de todos escalões eram unânimes em afirmar que o
doente não havia cumprido com os compromissos tradicionais para com os seus
mortos.
– Ele não foi nem ao enterro do pai nem da mãe, ainda mais não cerimoniou
os falecidos. Agora, eles estão muito zangados! – leu convictamente Yambe o
curandeiro mais afamado da cidade e arredores nos dados mirabolantes que se
encontravam espalhados no chão.
– O que podemos fazer para salvar o nosso pai? – consultou penosamente
Massembe.
– Nada, os mortos do seu pai são muito confusos, ele não escapa! –
sentenciou friamente o curandeiro.
Exasperado com os acontecimentos, Massembe embrenhou-se numa enorme solidão
que lhe desatinava o espírito, e não foi suficientemente corajoso para dizer a
mãe o juízo final proferido por Yambe.
Já a noite emprestava uma densa escuridão, que a lua não dissipava e no
quarto do paciente, o “Xiphefo” espraiava debilmente sua luz, lá fora uma
coruja emitia seu pio augurando a noite infernal dos Bucande’s.
O doente agitava-se febrilmente, deixando sair dos poros suor cálidos que
escorria para o lençol fedendo todo o quarto, mas os parentes mesmo sufocados
suportavam aquele mau cheiro.
Delírios troaram dos lábios trémulos do paciente, que procurava titubear
algo:
– Eu morrer...Kuala! – tartamudeou por fim o moribundo.
Gatos excitados miavam num acto de orgia perturbando orações que eram
emitidas para o todo-poderoso.
Bucande gemia descompassadamente libertando sangue que jorrava da boca,
esperneou preguiçosamente, os olhos reviraram-se procurando um antídoto
algures, desesperou-se dando o último suspiro.
Nhessene a esposa do falecido, assinalou seu luto chorando e emitindo
gritos, os filhos prantearam silenciosamente.
Sem delongas, os preceitos fúnebres foram tratados para o dia seguinte. Em
casa do falecido, decorriam as cerimónias inerentes ao facto, Nhessene tétrica,
lastimava com sinceridade a morte do marido, ela era consolada carinhosamente
pelos filhos.
O cortejo fúnebre seguiu silenciosamente, por picadas encharcadas até ao
cemitério, rezas foram proclamadas seguindo-se depois a inumação. Belas flores
coloriam o túmulo improvisado de areia. A família enlutada regressou a casa
ficando na companhia de amigos, vizinhos e parentes.
Massembe bastante estafado, acomodou-se na sua cama. Mal fechou os olhos,
enxergou através de uma visão, a imagem distorcida do falecido pai, solicitando
que fosse desenterrado e translado de urgência para Kuala, pois sentia-se
estranho entre espíritos desconhecidas.
Assustado, Massembe abriu os olhos e sacudiu a cabeça procurando afastar
aquelas imagens perturbadoras, mas quando de novo fechou os olhos voltou a
deparar com a mesma situação.
Levantou-se bastante conturbado e resoluto, caminhou a procura de Yambe.
– O espírito do velho diz que quer para a sua terra – afirmou Massembe
sereno, esperando atentamente o resultado da consulta que o curandeiro fazia.
– Faça-lhe a vontade sem demora – determinou Yambe olhando fixamente para
Massembe.
Uma assembleia familiar foi convocada para discutir e acertar a vontade do
espírito viajar de regresso as suas origens.
No dia seguinte, segundo orientações de Yambe, Massembe e Dimbo escalaram o
cemitério depois de completarem toda a burocracia e corajosamente procederam ao
desenterro do caixão contendo os restos mortais do pai, que de seguida foi
transportado por um “tchova” para sua antiga residência.
Logo pela manhã quando o sol espalhava molemente os seus raios solares, já
a viajem, havia sido preparada ao pormenor, o ataúde foi colocado
dissimuladamente numa carrinha alugada.
Massembe e Dimbo despediram-se penosamente da mãe e tomaram os seus lugares
na carroçaria ladeando a féretro do pai.
A carrinha partiu levando o corpo de Bucande a sua terra natal, Nhassene
bastante comovido dispensava um olhar terno de último adeus ao marido.
O veículo funerário distanciou-se de sua origem percorrendo numerosos
quilómetros, os irmãos entreolharam-se calados. Do céu descoberto da manhã, um
bando de corvos planava bem alto bem duas filas indianas escoltando o carro
funerário.
Depois de uma longa viagem rica em percalços, primeiro foi um pneu dianteiro
que estourou e por pouco o motorista não perdeu o controlo da viatura, depois
foi o motor que aqueceu bastante e tiveram que parar o veículo até o motor
arrefecer, finalmente alcançaram exausto o destino.
Um manto nublado cobria os céus de Kuala quando a comitiva fúnebre chegou,
Massembe e Dimbo foram recebidos por Tsango irmão mais novo de Bucande, que
sabia antecipadamente da vinda do corpo do irmão, através de um comunicado
anunciado pelos espíritos. Tsango auto apresentou-se aos sobrinhos passando a
expor os mandamentos dos espíritos do falecidos pais.
– Temos que sepultar ainda esta noite – proferiu Tsango enrugando a testa.
– Que assim seja! – consentiu Massembe.
Um pequeno grupo acompanhou solenemente o cortejo até ao cume de um monte
onde iria ficar sepultado o corpo de Bucande. Sons de um cântico tradicional
fizeram-se ouvir dando início ao acto cerimonial, batuques rugiram
vigorosamente ritmando na noite. Um grupo de donzelas virgens e de tronco nu
dançavam eufóricas ao ritmo da batucada e cantavam de ânimo leve acompanhadas
por dois mochos que piavam enquanto um homem dotado de poderes sobrenaturais
purificava com sangue de serpente o fundo onde iriam ficar sepultados os restos
mortais de Bucande.
O ataúde foi inserido no fundo da cova e coberto primeiro com um plano
vermelho e areia de seguida. Atearam um archote junto ao túmulo que ardia
fortemente cativando com o seu poder ígneo a atenção de todos os presentes.
A cerimónia terminou quando começou a chover torrencialmente, mas o archote
teimava em arder.
– Já foi cumprido a vontade dos espíritos, por isso chove – afirmou Tsango
Os irmãos, estupefactos com todo aquele ritual, consentiram calados.
Os espíritos jubilosos, celebravam o regresso do filho às origens.
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