Victor Eustáquio - Portugal
O angolano
Manusse José, de quem sou amigo e decerto não levará a mal por citar uma nota
sua publicada no Facebook, defende que a filosofia africana tombou e
enlouqueceu, subscrevendo a ideia de que está morta. Gerson Geraldo Machevo,
moçambicano, diz o mesmo, acrescentando que se trata de uma filosofia sem filósofos
(africanos, entenda-se), tal como intitulou, aliás, o seu possível ensaio sobre
o papel da Filosofia em Moçambique. Como português e europeu, a primeira
questão que me ocorre é o que se poderá entender por filosofia africana? O
pensamento ocidental sobre África ou o pensamento dos africanos sobre si
próprios? Fala-se em epistemologias do sul, na revisão de saberes de carácter
eurocentrista para dar lugar a saber africanistas, mas em boa verdade, opino
eu, o conhecimento científico produzido por africanos, quando não cai no
afrocentrismo, tende a replicar o modelo eurocentrista, a que não são alheias
várias problemáticas, das quais cito apenas três: (1) a «dependência
intelectual» da comunidade científica africana, que insiste no fascínio de
criar réplicas do modelo institucional académico das metrópoles europeias; (2)
o «consultancy syndrome», que se reflecte no facto dos investigadores africanos
se limitarem tendencialmente a fazer trabalho de campo, alienando a análise de
dados a favor dos investigadores ocidentais; e (3) o que poderíamos designar
por «paradoxo do financiamento à investigação», nas mãos de várias agências da
ONU e de inúmeras ONG, todas elas com agendas próprias no que diz respeito à
escolha dos objectos de estudo. Não admira, pois, este panorama
«afro-pessimista», de que são exemplo as preocupações referidas acima de Manusse
José e Gerson Geraldo Machevo. Contudo, e continua a ser a minha opinião, esta
é apenas uma pequena dimensão do problema. Pensar em filosofia africana obriga
a situá-la no campo dos estudos africanos, os quais, por sua vez, obrigam a uma
complexa discussão epistemológica (i) pela extensão geográfica subalternizada
dos vários saberes que envolvem; (ii) pela estrutura multidisciplinar que
abarcam; (iii) pela tensão horizontal e vertical em que se inscrevem no âmbito
das relações de poder; e (iv) pela egopolítica que lhe está subjacente numa
lógica de conflito norte-sul. Tudo somado, os estudos africanos conduzem-nos
inevitavelmente ao debate de conceitos tão controversos como multiculturalismo
identitário, colonização disciplinar, epistemologias descoloniais, com a
necessidade de revisões críticas à perspectiva histórica, ontológica e
epistémica, bem como ao do confronto entre o fenómeno africanista e o fenómeno
africano no campo da geopolítica do conhecimento, entre exclusões e
integrações, entre fragmentações e representações diversas da realidade social,
política e económica em contexto africano. A problemática está longe de ser
pacífica, tanto mais que, após a descolonização ou as várias libertações
nacionalistas, dependendo do ponto de vista de cada um dos protagonistas, e
aqui está outro problema, subsiste em território africano um modelo de
hierarquização de saberes de padrão ocidental no seio do qual se registou
apenas, tendencialmente, a inversão dos termos da dicotomia entre dominados e
opressores, substituindo o eurocentrismo hegemónico por um afro-centrismo
fundamentalista em tudo semelhante ao primeiro. Na prática, o processo de
«marxização», a chamada transição para o socialismo que se verificou na maioria
dos Estados pós-coloniais, tem estado associada a políticas desenvolvimentistas
de dependência ocidental, isto é, assentes numa réplica da herança
eurocentrista que resulta numa imagem deformada da dinâmica da mudança social e
cultural. A influência e o crescente avanço da aculturação islâmica da África
subsariana apresenta-se igualmente como um factor crítico adicional, que tem
estado na génese de clivagens diversas em zonas de fronteira. Acresce, por fim,
o mosaico étnico sob dependência de diásporas de exclusão que tem encontrado no
vazio deixado pela saída das antigas potências coloniais um espaço para o
conflito e a afirmação de supremacias separatistas, idealizadas fora do
território africano e, por vezes, com o beneplácito de forças transnacionais regra
geral, non-state actors (NSAs) que perseguem determinados interesses
neocoloniais. Face a este panorama, avulta cada vez mais a necessidade da
transdisciplinaridade no sentido de ultrapassar os saberes disciplinares
tradicionais e abrir a porta à transmodernidade, isto é, à diversidade
epistémica do mundo e às epistemologias descolonais, com vista à descolonização
do capitalismo global e à emergência das epistemologias descoloniais, sem
perder de vista, que os países africanos contemporâneos abrangem sempre uma
pluralidade de mundos que coexistem, se sobrepõem e interpenetram, que se
encontram envolvidos em processos muitas vezes acelerados de mutação, e cuja
configuração complexa está muito longe de corresponder à ideia de sociedades
«nacionais» coerentes e sedimentadas, para já não falar em homogéneas. É nesta
realidade, com problemáticas parcelares e fragmentadas, que os estudos
africanos em ciências sociais se devem localizar e contextualizar. O desafio
epistemológico e metodológico traduz-se assim por um esforço de investigação que
deve assentar na desconstrução do que é possível trabalhar com a formulação das
proposições adequadas que conduzam à capacidade de se estabelecer modelos de
análise interdisciplinar e transdisciplinar e recorrer, numa perspectiva de
complementaridade, «aos olhares de dentro e de fora». Caso contrário, por muito
legítimas e pertinentes que sejam as afirmações de que a filosofia africana
tombou e enlouqueceu ou de que em África há "uma filosofia sem filósofos,
o que se está a fazer mais não é do que a evocar os suspeitos do costume,
aquilo que todos sabem de África: o discurso estafado da cor, das ideias e do
abuso das ideias. É um discurso que faz parte do passado. E que só aí se deve
manter.
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