Eduardo Quive - Moçambique
Santos em algures da Ilha de Luanda durante a caminhada na calçada ainda em construção, encontrou-me a falar de peito trancado sobre quão custava-me conhecer os nomes daquela cidade, sei que o lugar chama-se ilha, uma autêntica face do futuro que Luanda procura para si, investindo rigorosamente na (re)construção.
Santos vem de longe, mas tão perto para si que muito gosta da vista marítima que acompanha os sons da maquinaria da Monta-Engil Angola.
Lá vem o menino de 10. De lá vem para cá vai. Santos caminha para junto de um desconhecido que sou para si. Pára e conversa. Giro a sua volta e inicio uma nova marcha a favor da direcção que ele toma.
Lado a lado, Santos conversa. Vai andando enquanto contempla a sua cidade que está ansiosa para o futuro.
Inquilino da sua amizade, também converso feliz por ter achado, finalmente, um amigo nesta terra que me é difícil relacionar com as coisas, com as gentes, com os códigos e com as ruelas. Uns verdadeiros mussques ditos e bem descritos por Luandino Vieira nos derradeiros momentos da (re)novação de que Luanda é vitima. A ilha é mesmo um lugar inexistente. O potencial que este invisível cercado de mar tem é de embalar emoções
Santos tem noção disso e por isso vai cantando e contando.
_ Antes a estrada era aqui, agora é ali. Isto está mesmo a mudar – reconhece, Santos, o meu amigo.
Ele conta-me que está a caminho de casa, mas antes passará de casa de alguns amigos. Diz-me que foi “enxotado” da sala de aulas porque não trazia o caderno da prova. Mas não é assim que contou.
_ De onde vens?
_ …da escola.
_ Ah, que bom! Eu também estudo. A que horas entraste?
_ Entro às seis horas.
_ … E sais a esta hora?
_ Não.
_ Não! Então porque é que te encontras aqui? Fugiste?
_ Não fugi, tinha prova.
_ Então como foi?
_ Não fiz porque não trazia o caderno da prova. Esqueci em casa.
_ Como assim? Tu tens a prova e deixas o caderno em casa? Eu nunca deixo o caderno.
O rapaz calou-se e consentiu, para de repente voltar à conversa.
_ Em que escola você estuda?
_Bem, eu estudo na Escola de Jornalismo em Moçambique. Sou moçambicano. Consideram-me jornalista.
Santos levanta a cabecinha e olha-me já com desdém. “Não é possível que este gajo seja jornalista, está a gozar comigo” imagino que ele pensa enquanto continua com o riso irónico para a minha cara.
Olho para aquele menino com emoção. “Ele é meu amiguinho” – digo para mim mesmo.
_ Sabes que tenho um sobrinho assim como tu? Ele anda na 5ª classe.
_ Tenho um amigo na 4ª e eu vou passar para li encontrar.
_O meu sobrinho chama-se Helder e tu?
_ Meu nome é Santos. Os meus amigos chamam-me de Kutchu, mas a minha mãe
chama-me de Santos.
_ Santos, grande nome! Eu também sou Santos.
_Mentira…
_ Pois, menti mesmo. O meu nome é Edu, Eduardo… Edu.
_ És Eduardo.
_ Isso mesmo.
E vai se fazendo esta amizade enquanto contra-peamos a calçada olhando para o mar, os peixes, homens e as respectivas mulheres quase nuas.
_ Eu vou daqui – aponta a estrada.
_ E vais atravessar a estrada, sozinho!
_Não. Estou contigo.
Segurei na sua mão e atravessamos para a direcção que ele bem conhece. Apercebido que fui “vitima”das tentações deste grande amigo, já não me saem perguntas. Apenas cumpro ordens inspirado no letreiro da Base Marinha de Luanda cuja ilustração é do presidente José Eduardo dos Santos “Comandante em Chefe, às suas ordens. Ordene, ordene, ordene”diz o cartaz.
Calo-me e contemplo. Angola é um país de ordens também! Santos bem sabe as dar. Ordena-me e eu cumpro. “Às suas ordens, Santos”. Caminhamos agora intercalando as casas sobrepostas, cheirando a peixe e outros mariscos com águas turvas à mistura. “Isto é Mafalala!” reconheço as igualdades. Aqui há cães vadios. Cães que atentam a moral, fazendo sexo na rua no olhar dos homens. Cães que matchimbam na rua atentando a saúde pública. Isto é mesmo Mafalala e Chamanculo, Unidade “7”, Urbanização, Maxaquene e etc. É daqui que saem os poetas, dançarinos, timbileiros, actores e outros grandes artistas.
Mulheres cobertas de capulanas sentadas de pernas para o ar conversam num silêncio inquietante. As raparigas, mulheres adultas e crianças, decoradas a moda Tchuna-Baby, vão mostrando as suas pernas decoradas de varizes que nem se quer respeitam a idade. Aqui, os homens andam sem camisas e as raparigas apenas de panos que só lis cobre os seios. É tudo gente de Santos.
Enquanto caminhamos ele saúda essa gente. Os homens de calções e descamisados, uns com peixes nas mãos, mulheres de mini-saias e jeans rasgado. Mulheres adultas na moda. São todos conhecidos de Santos.
Casa pintada a cor-de-rosa e com antena de TV digital é da sua avó. E me mostra esses lugares, o meu amigo, preocupado em apresentar-me, principalmente à sua tia-mãe, como ele intitula e à sua mãe.
Chegados no seu beco, Santos saúda a sua tia que o indaga sobre o porquê de estar ali naquela hora “já para casa”, vociferou. Logo na porta da varanda, o único quintal que a casa tem, saúda uma mulher que não consigo ver o rosto. É sua mãe.
Calado, senti que era aquele, o fim da nossa amizade, pois aos que me perguntavam apenas dizia que o ajudava a atravessar a estrada.
Ele apresentou-me as pressas à sua mãe que zangada pela sua chegada antes da hora habitual, nem se que presta-me alguma atenção.
_ Ele é meu amigo mãe.
Da sala saia uma menina. Tão linda! Devia ser irmã de Santos. Olha para mim e pisca os olhos em jeito de saudação. Que criança linda e espertinha! Mas não me alongo, dispenso-me da família e do meu grande amigo, o Santos.
Dia inesquecível este 17 de Abril de 2012. Dia ímpar naquela ilha anexa à cidade de Luanda onde nem amigos tinha, além de poetas. Agora, um já figura a minha lista. Seu nome é Santos.
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