Joaquim Branco* - Brasil
João Cabral de Melo Neto |
Lirismo e antilirismo na poesia de
Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto, em confronto comparativo, a partir
da noção bipolarizada que se tem de suas obras, que situa o primeiro como
escritor mais voltado para o lirismo e o segundo como um poeta-engenheiro, com
o objetivo de se dessacralizar esta visão puramente maniqueísta da crítica em
relação aos dois autores.
Palavras-chave: Poesia moderna. Tradição. Ruptura.
Lirismo. Antilirismo.
Rondó
dos cavalinhos no canavial
Por
princípio seria cômodo e esquemático estabelecer criticamente as
características do lirismo de Manuel Bandeira e do antilirismo de João Cabral
de Melo Neto, como projetos antagônicos do fazer poético.
Mas
não é essa a nossa proposta. O que pretendemos é pesquisar algo de lírico e de
antilírico nas obras de ambos, confrontá-las, e perceber como esta bifurcação
se une e volta a se concretizar na construção de obras igualmente importantes
para o nosso tempo.
Onde
se esboçam – aparentemente – tantos antagonismos podem-se cruzar pontos de
identificação, como na teoria do filósofo Mário Ferreira dos Santos em sua obra
Filosofia concreta, citada pelo historiador Sidney Silveira em artigo de
jornal, a propósito de Marcel Proust e Machado de Assis (Silveira, 2000, p. 4)
E
Bandeira e João Cabral situam-se muito bem, o primeiro como um dos mestres do
nosso Modernismo, cuja poesia atuou (veja-se “Os sapos”) criticando o
passadismo de nossos parnasianos, mesmo não tendo participado pessoalmente da
Semana de Arte Moderna; e o segundo, como consolidador da estética moderna,
erguendo os alicerces de uma poética que apontou para novos caminhos no
pós-moderno e construindo uma obra de características universais.
Ambos
alinham-se com Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Cecília Meireles,
Mário e Oswald de Andrade, para formar um conjunto de nomes cujas obras têm um
lugar de destaque na formação de uma nova literatura no Brasil.
Esses
dois pernambucanos, com dicções tão diferentes na formulação de sua comunicação
poética, se identificam no rasgo imaginativo, na coerência ética, na
preocupação com o próximo (leia-se: com o social) e principalmente na qualidade
e agudeza dos trabalhos.
A
lira no tempo
Foi no século XIX, período do
Romantismo, que a poesia lírica, encontrando terreno propício, se desenvolveu,
adquiriu contornos próprios, firmando-se definitivamente como gênero.
Tempo propenso às efusões do subjetivo
e das emoções, a época romântica deu aos poetas a liberdade de que precisavam
para sua expressão. Anteriormente, no Trovadorismo, quando apenas iniciava seu
desenvolvimento, no Classicismo – com acento no épico – e no Neoclassicismo –
entre o pastoreio, o barroco e o Iluminismo –, não houve uma valorização maior
da chamada poesia lírica.
No século XX, grandes transformações
vieram sacudir a literatura e a sociedade, e com isso sobraram caminhos,
faltando, no entanto, um lugar mais claro e determinado para a poesia lírica,
mesmo porque a prosa de ficção, que se desenvolvera a partir do Oitocentos,
ocupava cada vez mais um lugar de destaque.
Como situar o poeta numa sociedade
mecanicista e desprovida da Corte e dos saraus novecentistas, das belezas do
campo e vivendo a própria crise do belo?
Como entender esta figura colocada
dentro da urbe, entre o comércio varejista e as vitrines dos grandes magazins, perdido entre ruelas e boulevards,
entre passantes e automóveis, dentro de vagões e transatlânticos?
Sem o seu pedestal erguido junto às
aristocracias e sem poder ou função perto da nova burguesia – demasiadamente
prosaica ou desinteressada –, o poeta moderno viu-se de repente tendo que
procurar dentro de si novas forças, o que significou a busca desesperada de uma
saída. E parece que ele foi encontrar na linguagem a solução para as suas
angústias e interrogações.
Só que o lirismo – racional e
controlado no Classicismo e atordoadamente voltado para a problemática pessoal
no Romantismo, – iria encontrar eco num eu-lírico super-ampliado pela própria
noção de gênero que se esfacelava frente às demandas de formas renovadoras de
expressão. O texto então se repartiu entre autor e leitor, e este ganhou uma
função complementar através da leitura participativa. Jorge Luis Borges chegou
a afirmar, certa vez, que a parte que cabe ao leitor é tão importante quanto a
do escritor, pois pertence a ele a fase da consumação (e do consumo) da obra de
arte, e daí toda a teoria da recepção do texto.
Entre uma nova maneira de ver o mundo
e o manejo da linguagem, em que a forma muitas vezes pode ensejar o conteúdo, é
imprescindível a existência de um novo artista, lírico ou não: o poeta moderno.
Enfim, o poeta encontra o seu lugar.
Não no olhar subjetivo para dentro de si, como o caracol simbolista, nem na
prisão na torre de marfim parnasiana, sequer nas masturbações românticas, mas
na matéria-prima de que sempre se utilizou para criar: a linguagem, fonte e
tema para sua viagem fantástica através das páginas dos livros, dos jornais e
das revistas.
O
canivete contra a faca só lâmina
Manuel Bandeira |
Conhecido pela leveza de estilo, como
poeta-cronista, cantor das andorinhas, e por isso injustamente chamado de
“poeta menor”, Manuel Bandeira criou um confortável nicho, na ampla faixa de
tempo em que atuou, pela emoção trazida na sua vara de condão, com poderes para
fazer aparecer à nossa frente as três mulheres do sabonete Araxá ou as duas
índias do leste.
E com essa emoção, surge um eu-lírico
todo especial, ora vazado na circunstância transformada em eternidade, ora na
meditação sobre um passado cuidadosamente desembrulhado para o leitor. Toda
essa disposição por assim dizer lírica pode de repente se transmutar para o
épico-moderno misturado com brincadeiras e ironias adolescentes:
Em Pasárgada tem tudo
é outra civilização
tem um processo seguro
de impedir a concepção
tem telefone automático
tem alcalóide à vontade
tem prostitutas bonitas
para a gente namorar.
(Bandeira, 1961, p. 87)
A estrutura concretista foi visitada
por Manuel Bandeira que, do mesmo modo que Drummond, Murilo e Cassiano Ricardo,
fez os seus experimentos, mostrando uma espécie de adaptação para a poesia que
surgia nos anos 50/60, como neste “A onda”:
a onda anda
aonde anda
a onda?
a onda anda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda a onda
(Idem,
1963, p. 61)
Do
Beco das Carmelitas ao Engenho Trapuá
João Cabral, por seu turno, traçando
trajetória oposta, inscreveu o poema na pedra, nos trapos dos algodoais, na
lâmina da cana, com o chicote do vento e o arremedo da moenda. Mas não deixa
escapar o momento lírico, como neste “A palavra seda”:
A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.
E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.
É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.
(Melo Neto, 1975, p. 158)
Seu eu-lírico, com o peito aberto,
enfrenta o canavial, na agrura do agreste pernambucano, nos mistérios de
Sevilha, ou na Mancha, mas ao sentir como o “automobilista infundioso” os
frescos cheiros da Provença, pode ir, num átimo, “do timo à alfazema”, para
surgir plena e exuberantemente lírico.
[...]
É viajar nos cheiros castos,
ainda vegetais, em mato:
do casto normal de planta,
do sadio, de criança.
(Idem, 1968, p. 52)
Ou em “Paisagem pelo telefone”, em que
o poeta não consegue esconder a variação lírica tal a sua intensidade para
retratar uma cena em que está inteiro o componente feminino:
[...]
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,
fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,
[...]
(Ibid., p. 135)
Demonstrada em páginas de teoria e de
entrevistas, a visão cabralina quer parecer de pedra, dura, cerebral,
preparando o torpedo milimetricamente para atingir “seu alvo no Pacífico”, mas,
nas mãos de pilão ou nos dedos do canavial, na onda que vira musa recostando o
perfil contra a paisagem marinha, de repente deparamos com o mais sensível dos
humanos.
Bandeira – um passarinho que passou a
vida à toa, à toa – se identifica com os joões gostosos moídos diariamente no
grosso tecido social brasileiro, que vai sendo rasgado e remendado nas páginas
dos jornais e na tragicidade das noites. E não se conforma com as pessoas
simplesmente paradas na porta do bar, vendo o enterro passar indiferentes. Em
“O cacto” revela-se o Bandeira bem terra-a-terra, quase irreconhecível para os
que só conhecem o poeta das noites de São João e das saudades da infância:
[...]
O cacto tombou atravessado na rua,
quebrou os beirais do casario fronteiro,
impediu o trânsito de bondes, automóveis e
carroças,
arrebentou os cabos elétricos e durante vinte
e quatro horas
privou a cidade de iluminação e energia.
– Era belo, áspero, intratável.
(Bandeira, 1967, p. 246)
Manuel
e João
É Bandeira quem afirma, em entrevistas
e na praxis, a primazia da inspiração, tal como sempre se professou entre os
poetas mais antigos. Do outro lado, estaria a transpiração cabralina em altas
porcentagens. Bandeira navega no fio da navalha, dentro de um lirismo
controlado pela intuição poética que orienta e não deixa nunca resvalar para o
lugar-comum e o lacrimejante, mas numa perigosa fronteira em que muitos poetas
já se perderam.
Cabral usa um ‘falso’ prosaísmo, o
antídoto ‘graciliano-ramos’ da dissecação, o poema a palo seco, o filtro anti-meloso, como a prevenir contra uma
possível recaída da nova poesia em horizontes romântico-penumbrosos. Sua
maneira é esta. Fala, exagera até na contenção e na fala. É a sua preparação de
fortes diques contra os fantasmas dos clichês e frases-feitas e da onda
anti-modernista de seu tempo. Com isso, precisa negar a sua lírica, que no
entanto existe, é pungente e nos conforta ao revelar um poeta mais que
completo.
Dialogam os dois na poesia e na vida,
brigando contra o ranço e a estagnação que impregnam a má tradição literária.
São ambos poetas da mais alta estirpe, e suas obras estão aí para comprovar
essa afirmação. É só conferir e, para isso, ler.
BIBLIOGRAFIA
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SILVEIRA, Sidney. “Memória, humor e
amor em Proust e Machado: semelhantes na diferença”, in O Globo, supl.
Prosa e Verso, 22.7.2000.
VERNIERI, Susana. O Capibaribe de
João Cabral em O cão sem plumas e O rio: duas águas? São Paulo: Annablume,
1999.
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(*) Joaquim Branco
Nome completo: Joaquim Branco Ribeiro
Filho
Instituição: FIC – Faculdades
Integradas de Cataguases
Função: professor doutor (Literatura
Brasileira)
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