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Ana Paula Maia/FOTO: Jornal Rascunho |
Nascida no ano de 1977 em Nova Iguaçu, Riode
Janeiro, Ana Paula Maia é uma das mais
prestigiadas escritoras na literatura contemporânea brasileira.
Na adolescência, tocou numa banda de punk rock e estudou
piano. Escreveu o roteiro do curta-metragem O
entregador de pizza (2001) e foi co-autora (com Mauro Santa Cecília e
Ricardo Petraglia) do monólogo teatral O
rei dos escombros, montado em 2003 por Moacyr Chaves. Seu primeiro romance,
O habitante das falhas subterrâneas,
foi publicado em 2003.
É autora da trilogia A
saga dos brutos, iniciada com as novelas Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos e O trabalho sujo dos outros (publicadas em volume únido) e concluída
com o romance Carvão animal.
Influenciada por Dostoievsky, pelo cinema de Quentin
Tarantino e Sergio Leone, pelos folhetins e pela literatura pulp, entre outros,
suas obras são marcadas pela violência e pelo tratamento seco dado aos personagens,
muitas vezes com elementos escatológicos. (sic, wikipédia)
LIVROS
2011: Carvão animal - Editora Record
2009: Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos -
Editora Record
2007: A guerra dos bastardos - Língua geral
2003: O habitante das falhas subterrâneas - Editora 7
Letras
ANTOLOGIAS
2011: Geração Zero Zero (org. Nelson de Oliveira) -
Editora Record
2009: 10 cariocas (org. Federico Lavezzo) - Ferreyra
editor (Argentina)
90-00 - Cuentos brasileños contemporáneos (org. Nelson de
Oliveira e Maria Alzira Brum)
Todas as Guerras - Volume 1 - Tempos modernos (org.
Nelson de Oliveira) - Editora Bertrand Brasil
Blablablogue - crônicas & confissões (org. Nelson de
Oliveira) - Editora Terracota
2007: 35 segredos para chegar a lugar nenhum (org. Ivana
Arruda Leite) - Editora Bertrand Brasil
2005: Contos sobre tela (org. Marcelo Moutinho) - Editora
Pinakotheke
Sex´n´Bossa - Antologia di narrativa erotica brasiliana
(org. Patrizia di Malta) - Editora Mondadori (Itália)
2004: 25 mulheres que estão fazendo a nova literatura
brasileira (org. Luiz Rufatto) - Editora Record
CONTO DE ANA PAULA MAIA
Teu sangue em meus
sapatos engraxados
“Purificam-se
manchando-se com outro sangue, como se alguém, entrando na lama, em lama se
lavasse.”
[Aristócrito]
Para Santiago
Nazarian
Eu tive um dia cujo
sol foi da cor do desespero e a lua, a lua está embaçada e um tanto desgastada,
e não tem outra opção senão refletir a luz do sol, e outra vez há mais
desespero sobre minha cabeça. Ainda bem que não preciso matar a lua ou o sol
todos os dias, mas se tivesse, eu resplandeceria a sua cor.
Sigo calado,
esgotado e embaçado como a lua que esforça-se por desaparecer. Certamente, se
vivesse nas alturas eu desapareceria quando as coisas atingissem essa
tonalidade.
Cutuco o nariz
nervoso, porque posso sentir resíduos de pó agarrado nos pelos; do punhadinho
do pó branco depositado sobre a mesa do quarto, aquela pequena montanha mágica
que desci esquiando por suas depressões, esquivando-me de suas falhas. Com o
cabo da colher, a montanha transformou-se em trilhas paralelas e consegui
construir três fileiras curtas. Trilhas breves, limitadas como a vida para
algumas pessoas.
Tapo a narina
direita e arrasto como um porco o focinho sobre a mesa. Absorvo o estado bruto
da liberdade, da mudança e apago da mesa os três caminhos que criei, e já não
há mais caminhos ou rastros, eu os absorvi e tornei-me o próprio, o dono de
minhas trilhas.
Isso pode ser
daninho e doce feito mel apodrecido em dias com o sol da cor do desespero. Estou
com fome e devoraria qualquer substância orgânica nessa hora. Não me lembro de
ter comido nada durante todo o dia. Talvez agora tivesse um almoço. Nu.
Através de uma
janela pouco maior que minha televisão vinte polegadas, no centro da sala é
onde vejo meu tempo escoar. Ter um horizonte com menos de vinte polegadas não
deve ser o sonho de ninguém e só entendemos isso quando nos acordam. Um
terrível pesadelo é ótimo para te fazer acordar. O sono da razão pode produzir
monstros, mas o sono da inabilidade pode te paralisar. As imagens ali são
sempre do meu próprio tempo acelerado, um desperdício. Prefiro os monstros.
Sempre os preferi e comecei a me afeiçoar a eles, meus monstros entranhados no
lago do meu espírito, tão sombrio que quando retorno à superfície, o ar
rarefeito me deixa anestesiado.
Não falo de amor ou
ódio, falo dos monstros que me deixam acordado. Que me fazem avançar, sombras
que me perseguem, rastejando, tentando abocanhar meu calcanhar. E eu posso
sentir a nuvem de fuligem espessa armazenada sobre minha cabeça. É a lua,
entende? Esse maldito satélite sem luz própria que traz o desespero do sol, do
péssimo dia que tive. Quanto mais eu ando, mais percebo que a lua corre
depressa. Não dá para alcançá-la e as estrelas já estão mortas... brilham, mas
não existem mais. Mortas imortais vivendo a morte de uns, morrendo a vida de
outros tantos.
Olho para meus pés
e vejo que esqueci de trocar os sapatos. Meus sapatos manchados de sangue que
secou faz tempo, quando ainda fazia sol e quando eu ainda pensava se devia ou
não matar aquele monstro. Monstros que te acusam, que te amam e te esquecem,
que te fazem sofrer, mas não falo de amor, isso não cabe em minhas linhas, nem
no meu coração ou no mais profundo lago do espírito. Pouca coisa cabe aqui e
quando me sufocam eu afundo tudo para o lago, na parte mais sombria e
esquecida, depois lavo minhas mãos, troco meus sapatos e o sangue é sempre
lavado, levado pelas águas.
Os monstros são
daninhos e doces feito mel apodrecido, alguns o chamam de amor ou ódio, para
mim mel estragado. Frias mandíbulas trituradoras no seu encalço. Não deixaria
que alguém me fizesse isso de novo, te esquecem e te fazem sofrer. Eu a quero
ainda, e só consigo pensar que meus sapatos carregam um pouco dela. Suas
hemácias ressecadas. E por todos os lados eu a vejo como sombras se cruzando,
mas a culpa é da lua que insiste em manter tudo aceso. Eu posso fazer
novamente, afogar mais alguns monstros até que as nuvens decidam escondê-la, eu
posso avançar mais alguns passos enquanto suspiro minha possível maldade.
Nunca me arrependo.
Sempre sigo em frente, tossindo pedaços do meu pulmão doente, embalado por
bebida barata. O caos da expansão do meu microcosmo, esse tipo de necessidade
meramente humana. Predadores não tiram férias, resvalam na consciência de um
possível ajuste, mas nunca deixam de acossar. Seu sangue em meus sapatos
engraxados ontem; estavam limpos e reluzentes como fazia o sol quando você
derramou-se sobre eles. E ainda a vejo e continuo avançando sobre as sombras
que me cruzam e cortam feito navalha, na carne e na alma, mas nunca falo de
amor, só do mel apodrecido que ela deixou na minha boca. Já estou tão perto que
já sinto o perfume dos monstros e eles ainda não sabem, mas vão lavar seu
sangue dos meus sapatos.
[publicado na
coletânea "Contos sobre Tela"]
www.killing-travis.blogspot.com
www.carvaoanimal.blogspot.com
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